31 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 32/37

CAPÍTULO CXXV



Uma Comparação

Príamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquele que lhe matou o filho.

Homero é que relata isto, e é um bom autor, não obstante contá-lo em verso, mas há narrações exatas em

verso, e até mau verso. Compara tu a situação de Príamo com a minha; eu acabava de louvar as virtudes

do homem que recebera, defunto, aqueles olhos... É impossível que algum Homero não tirasse da minha

situação muito melhor efeito, ou quando menos, igual. Nem digas que nos faltam Homeros, pela causa

apontada em Camões; não, senhor, faltam-nos, é certo, mas é porque os Príamos procuram a sombra e o

silêncio. As lágrimas, se as têm, são enxugadas atrás da porta, para que as caras apareçam limpas e

serenas; os discursos são antes de alegria que de melancolia, e tudo passa como se Aquiles não matasse

Heitor.



CAPÍTULO CXXVI

Cismando

Pouco depois de sair do cemitério, rasguei o discurso e deitei os pedaços pela

portinhola fora, sem embargo dos esforços de José Dias para impedi-lo.

– Não presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentação de dá-lo a

imprimir, fica já destruído de uma vez. Não presta, não vale nada.

José Dias demonstrou longamente o contrário, depois elogiou o enterro, e por

último fez o panegírico do morto, uma grande alma, espírito ativo, coração reto, amigo,

bom amigo, digno da esposa amantíssima que Deus lhe dera...

Neste ponto do discurso, deixei-o falar sozinho e peguei a cismar comigo. O que

cismei foi tão escuro e confuso que não me deixou tomar pé. No Catete mandei parar o

carro, disse a José Dias que fosse buscar as senhoras ao Flamengo e as levasse para

casa; eu iria a pé.

– Mas...

– Vou fazer uma visita.

A razão disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que fosse adequada

ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas; estas iriam pausadas ou não,

podiam afrouxar o passo, parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabeça cismasse à

vontade. Fui andando e cismando. Tinha já comparado o gesto de Sancha na véspera e o

desespero daquele dia; eram inconciliáveis. A viúva era realmente amantíssima. Assim

se desvaneceu de todo a ilusão da minha vaidade. Não seria o mesmo caso de Capitu?

Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajuntamento de pessoas que

devia naturalmente impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que

aqui vai por ordem lógica e dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de idéias e

sensações, graças aos solavancos do carro e às interrupções de José Dias. Agora, porém,

raciocinava e evocava claro e bem. Concluí de mim para mim que era a antiga paixão

que me ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre.

Quando cheguei a esta conclusão final, chegava também à porta de casa, mas voltei para trás, e

subi outra vez a Rua do Catete. Eram as dúvidas que me afligiam ou a necessidade de afligir Capitu com a

minha grande demora? Ponhamos que eram as duas causas; andei largo espaço, até que me senti sossegar,

e endireitei para a casa. Batiam oito horas numa padaria.



CAPÍTULO CXXVII

O Barbeiro

Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a rabeca e

não tocava inteiramente mal. Na ocasião em que ia passando, executava não sei que

peça. Parei na calçada a ouvi-lo (tudo são pretextos a um coração agoniado), ele viu-me,

e continuou a tocar. Não atendeu a um freguês, e logo a outro, que ali foram a despeito

da hora e de ser domingo, confiar-lhe as caras à navalha. Perdeu-os sem perder uma

nota; ia tocando para mim. Esta consideração fez-me chegar francamente à porta da

loja, voltado para ele. Ao fundo, levantando a cortina de chita que fechava o interior da

casa, vi apontar uma moça trigueira, vestido claro, flor no cabelo. Era a mulher dele;

creio que me descobriu de dentro, e veio agradecer-me com a presença o favor que eu

fazia ao marido. Se me não engano, chegou a dizê-lo com os olhos. Quanto ao marido,

tocava agora com mais calor; sem ver a mulher, sem ver fregueses, grudava a face ao

instrumento, passava a alma ao arco, e tocava, tocava...

Divina arte! Ia-se formando um grupo, deixei a porta da loja e vim andando para casa; enfiei

pelo corredor e subi as escadas sem estrépito. Nunca me esqueceu o caso deste barbeiro, ou por estar

ligado a um momento grave da minha vida, ou por esta máxima, que os compiladores podem tirar daqui e

inserir nos compêndios de escola. A máxima é que a gente esquece devagar as boas ações que pratica, e

verdadeiramente não as esquece nunca. Pobre barbeiro! Perdeu duas barbas naquela noite, que eram o pão

do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um transeunte. Supõe agora que este, em vez de ir-se embora,

como eu fui, ficava à porta a ouvi-lo e a namorar-lhe a mulher; então é que ele, todo arco, todo rabeca,

tocaria desesperadamente. Divina arte!



CAPÍTULO CXXVIII

Punhado de Sucessos

Como ia dizendo, subi as escadas sem estrépito, empurrei a cancela, que estava

apenas encostada, e dei com prima Justina e José Dias jogando cartas na saleta próxima.

Capitu levantou-se do canapé e veio a mim. O rosto dela era agora sereno e puro. Os

outros suspenderam o jogo, e todos falamos do desastre e da viúva. Capitu censurou a

imprudência de Escobar, e não dissimulou a tristeza que lhe trazia a dor da amiga.

Perguntei-lhe por que não ficara com Sancha aquela noite.

– Tem lá muita gente; ainda assim ofereci-me, mas não quis. Também lhe disse

que era melhor vir para cá, e passar aqui uns dias conosco.

– Também não quis?

– Também não.

– Entretanto, a vista do mar há de ser-lhe penosa, todas as manhãs, ponderou

José Dias, e não sei como poderá...

– Mas passa; o que é que não passa? atalhou prima Justina.

E como em torno desta idéia, começássemos uma troca de palavras, Capitu saiu

para ver se o filho dormia. Ao passar pelo espelho, concertou os cabelos tão demoradamente

que pareceria afetação, se não soubéssemos que ela era muito amiga de si.

Quando tornou trazia os olhos vermelhos; disse-nos que, ao mirar o filho dormindo,

pensara na filhinha de Sancha, e na aflição da viúva. E, sem se lhe dar das visitas, nem

reparar se havia algum criado, abraçou-me e disse-me que, se quisesse pensar nela, era

preciso pensar primeiro na minha vida. José Dias achou a frase “líndíssima”, e

perguntou a Capitu por que é que não fazia versos. Tentei meter o caso à bulha, e assim

a noite.

No dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, não que quisesse dálo

a imprimir, mas era lembrança do finado. Pense em recompô-lo, mas só achei frases

soltas, que uma vez juntas não tinham sentido. Também pensei em fazer outro, mas era

já difícil, e podia ser apanhado em falso pelos que me tinham ouvido no cemitério.

Quanto a recolher os pedacinhos de papel deitados à rua, era tarde; estariam já varridos.

Inventariei as lembranças de Escobar, livros, um tinteiro de bronze, uma bengala

de marfim, um pássaro, o álbum de Capitu, duas paisagens do Paraná e outras. Também

ele as possuía de minha mão. Vivemos assim a trocar memórias e regalos, ora em dia de

anos, ora sem razão particular. Tudo isso me empanava os olhos... Vieram os jornais do

dia: davam notícia do desastre e da morte de Escobar, os estudos e os negócios deste, as

qualidades pessoais, a simpatia do comércio, e também falavam dos bens deixados, da

mulher e da filha. Tudo isso foi na segunda-feira. Na terça-feira foi aberto o testamento,

que me nomeava segundo testamenteiro; o primeiro lugar cabia à mulher. Não me

deixava nada, mas as palavras que me escrevera em carta separada eram sublimes de

amizade e estima. Capitu desta vez chorou muito; mas compôs-se depressa.

Testamento, inventário, tudo andou quase tão depressa como aqui vai dito. Ao cabo de pouco

tempo, Sancha retirou-se para a casa dos parentes no Paraná.

29 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 31/37

CAPÍTULO CXXI



A Catástrofe

No melhor deles, ouvi passos precipitados na escada, a campainha soou, soaram

palmas, golpes na cancela, vozes, acudiram todos, acudi eu mesmo. Era um escravo da

casa de Sancha que me chamava:

– Para ir lá... sinhô nadando, sinhô morrendo.

Não disse mais nada, ou eu não lhe ouvi o resto. Vesti-me, deixei recado a

Capitu e corri ao Flamengo.

Em caminho, fui adivinhando a verdade. Escobar meteu-se a nadar, como usava fazer, arriscouse

um pouco mais fora que de costume, apesar do mar bravio, foi enrolado e morreu. As canoas que

acudiram mal puderam trazer-lhe o cadáver.



CAPÍTULO CXXII

O Enterro

A viúva... Poupo-vos as lágrimas da viúva, as minhas, as da outra gente. Saí de

lá cerca de onze horas; Capitu e prima Justina esperavam-me, uma com o parecer

abatido e estúpido, outra enfastiada apenas.

– Vão fazer companhia à pobre Sanchinha; eu vou cuidar do enterro.

Assim fizemos. Quis que o enterro fosse pomposo, e a afluência dos amigos foi

numerosa. Praia, ruas, Praça da Glória, tudo eram carros, muitos deles particulares. A

casa não sendo grande, não podiam lá caber todos; muitos estavam na praia, falando do

desastre, apontando o lugar em que Escobar falecera, ouvindo referir a chegada do

morto. José Dias ouviu também falar dos negócios do finado, divergindo alguns na

avaliação dos bens, mas havendo acordo em que o passivo devia ser pequeno. Elogiavam

as qualidades de Escobar. Um ou outro discutia o recente gabinete Rio Branco;

estávamos em março de 1871. Nunca me esqueceu o mês nem o ano.

Como eu houvesse resolvido falar no cemitério, escrevi algumas linhas e

mostrei-as em casa a José Dias, que as achou realmente dignas do morto e de mim.

Pediu-me o papel, recitou lentamente o discurso, pesando as palavras, e confirmou a

primeira opinião; no Flamengo espalhou a notícia. Alguns conhecidos vieram

interrogar-me:

– Então, vamos ouvi-lo?

– Quatro palavras.

Poucas mais seriam. Tinha-as escrito com receio de que a emoção me impedisse de improvisar.

No tílburi em que andei uma ou duas horas, não fizera mais que recordar o tempo do seminário, as

relações de Escobar, as nossas simpatias, a nossa amizade, começada, continuada e nunca interrompida,

até que um lance da fortuna fez separar para sempre duas criaturas que prometiam ficar por muito tempo

unidas. De quando em quando enxugava os olhos. O cocheiro aventurou duas ou três perguntas sobre a

minha situação moral; não me arrancando nada, continuou o seu ofício. Chegando a casa, deitei aquelas

emoções ao papel; tal seria o discurso.



CAPÍTULO CXXIII

Olhos de Ressaca

Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do

marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam

também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si

mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela,

Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que

não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...

As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela. Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para

a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a

retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o

pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos; como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar

também o nadador da manhã.



CAPÍTULO CXXIV

O Discurso

– Vamos, são horas...

Era José Dias que me convidava a fechar o ataúde. Fechamo-lo, e eu peguei

numa das argolas; rompeu o alarido final. Palavra que, quando cheguei à porta, vi o sol

claro, tudo gente e carros, as cabeças descobertas, tive um daqueles meus impulsos que

nunca chegavam à execução: foi atirar à rua caixão, defunto e tudo. No carro disse a

José Dias que se calasse. No cemitério tive de repetir a cerimônia da casa, desatar as

correias, e ajudar a levar o féretro à cova. O que isto me custou imagina. Descido o

cadáver à cova, trouxeram a cal e a pá; sabes disto, terás ido a mais de um enterro, mas

o que não sabes nem pode saber nenhum dos teus amigos, leitor, ou qualquer outro

estranho, é a crise que me tomou quando vi todos os olhos em mim, os pés quietos, as

orelhas atentas, e, ao cabo de alguns instantes de total silêncio, um sussurro vago,

algumas vozes interrogativas, sinais, e alguém, José Dias, que me dizia ao ouvido:

– Então, fale.

Era o discurso. Queriam o discurso. Tinham jus ao discurso anunciado. Maquinalmente, meti a

mão no bolso, saquei o papel e li-o aos trambolhões, não todo, nem seguido, nem claro; a voz parecia-me

entrar em vez de sair, as mãos tremiam-me. Não era só a emoção nova que me fazia assim, era o próprio

texto, as memórias do amigo, as saudades confessadas, os louvores à pessoa e aos seus méritos; tudo isto

que eu era obrigado a dizer e dizia mal. Ao mesmo tempo, temendo que me adivinhassem a verdade,

forcejava por escondê-la bem. Creio que poucos me ouviram, mas o gesto geral foi de compreensão e de

aprovação. As mãos que me deram a apertar eram de solidariedade; alguns diziam: “Muito bonito! muito

bem! magnífico!” José Dias achou que a eloqüência estivera na altura da piedade. Um homem, que me

pareceu jornalista, pediu-me licença para levar o manuscrito e imprimi-lo. Só a minha grande turvação

recusaria um obséquio tão simples.

28 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 30/37

CAPÍTULO CXVII



Amigos Próximos

Já então Escobar deixara Andaraí e comprara uma casa no Flamengo, casa que

ainda ali vi, há dias, quando me deu na gana experimentar se as sensações antigas

estavam mortas ou dormiam só; não posso dizê-lo bem, porque os sonos quando são

pesados, confundem vivos e defuntos, a não ser a respiração. Eu respirava um pouco,

mas pode ser que fosse do mar, meio agitado. Enfim, passei, acendi um charuto, e dei

por mim no Catete; tinha subido pela Rua da Princesa, uma rua antiga... Ó ruas antigas!

ó casas antigas! ó pernas antigas! Todos nós éramos antigos, e não é preciso dizer que

no mau sentido, no sentido de velho e acabado.

Velha é a casa, mas não lhe alteraram nada. Não sei até se ainda tem o mesmo

número. Não digo que número é para não irem indagar e cavar a história. Não é que

Escobar ainda lá more nem sequer viva; morreu pouco depois, por um modo que hei de

contar. Enquanto viveu, uma vez que estávamos tão próximos, tínhamos por assim dizer

uma só casa, eu vivia na dele, ele na minha, e o pedaço de praia entre a Glória e o

Flamengo era como um caminho de uso próprio e particular. Fazia-me pensar nas duas

casas de Matacavalos, com o seu muro de permeio.

Um historiador da nossa língua, creio que João de Barros, põe na boca de um rei

bárbaro algumas palavras mansas, quando os portugueses lhe propunham estabelecer ali

ao pé uma fortaleza; dizia o rei que os bons amigos deviam ficar longe uns dos outros,

não perto, para se não zangarem como as águas do mar que batiam furiosas no rochedo

que eles viam dali. Que a sombra do escritor me perdoe, se eu duvido que o rei dissesse

tal palavra nem que ela seja verdadeira. Provavelmente foi o mesmo escritor que a

inventou para adornar o texto, e não fez mal, porque é bonita; realmente, é bonita. Eu

creio que o mar então batia na pedra, como é seu costume, desde Ulisses e antes. Agora

que a comparação seja verdadeira é que não. Seguramente há inimigos contíguos, mas

também há amigos de perto e do peito. E o escritor esquecia (salvo se ainda não era do

seu tempo), esquecia o adágio: longe dos olhos, longe do coração. Nós não podíamos ter

os corações agora mais perto. As nossas mulheres viviam na casa uma da outra, nós

passávamos as noites cá ou lá conversando, jogando ou mirando o mar. Os dois

pequenos passavam dias, ora no Flamengo, ora na Glória.

Como eu observasse que podia acontecer com eles o que se dera entre mim e

Capitu, acharam todos que sim, e Sancha acrescentou que até já se iam parecendo. Eu

expliquei:

– Não; é porque Ezequiel imita os gestos dos outros.

Escobar concordou comigo, e insinuou que alguma vez as crianças que se

freqüentam muito acabam parecendo-se umas com as outras. Opinei de cabeça, como

me sucedia nas matérias que eu não sabia bem nem mal. Tudo podia ser. O certo é que

eles se queriam muito, e podiam acabar casados, mas não acabaram casados.



CAPÍTULO CXVIII

A Mão de Sancha

Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo

o que dura dura muito tempo. Esta segunda parte não acha crentes fáceis; ao contrário, a

idéia de que um castelo de vento dura mais que o mesmo vento de que é feito,

dificilmente se despegará da cabeça, e é bom que seja assim, para que se não perca o

costume daquelas construções quase eternas.

O nosso castelo era sólido, mas um domingo... Na véspera tínhamos passado a

noite no Flamengo, não só os dois casais inseparáveis, como ainda o agregado e prima

Justina. Foi então que Escobar, falando-me à janela, disse-me que fossemos lá jantar no

dia seguinte; precisávamos falar de um projeto em família, um projeto para os quatro.

– Para os quatro? Uma contradança.

– Não. Não és capaz de adivinhar o que seja, nem eu digo. Vem amanhã.

Sancha não tirava os olhos de nós durante a conversa, ao canto da janela. Quando o marido saiu,

veio ter comigo. Perguntou-me de que é que faláramos; disse-lhe que de um projeto que eu não sabia qual

fosse; ela pediu-me segredo, e revelou-me o que era: uma viagem à Europa dali a dois anos. Disse isto de

costas para dentro, quase suspirando. O mar batia com grande força na praia; havia ressaca.

– Vamos todos? perguntei por fim.

– Vamos.

Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, graças às

relações dela e Capitu, não se me daria beijá-la na testa. Entretanto, os olhos de Sancha

não convidavam a expansões fraternais, pareciam quentes e intimativos, diziam outra

coisa, e não tardou que se afastassem da janela, onde eu fiquei olhando para o mar,

pensativo. A noite era clara.

Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os em

caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns dos outros, uns esperando que os

outros passassem, mas nenhuns passavam. Tal se dá na rua entre dois teimosos. A

cautela desligou-nos; eu tornei a voltar-me para fora. E assim posto entrei a cavar na

memória se alguma vez olhara para ela com a mesma expressão, e fiquei incerto. Tive

uma certeza só, é que um dia pensei nela, como se pensa na bela desconhecida que

passa; mas então dar-se-ia que ela adivinhando... Talvez o simples pensamento me

transluzisse cá fora, e ela me fugisse outrora irritada ou acanhada, e agora por um

movimento invencível... invencível; esta palavra foi como uma bênção de padre à missa,

que a gente recebe e repete em si mesma.

– O mar amanhã está de desafiar a gente, disse-me a voz de Escobar, ao pé de

mim.

– Você entra no mar amanhã?

– Tenho entrado com mares maiores, muito maiores. Você não imagina o que é

um bom mar em hora bravia. É preciso nadar bem, como eu, e ter estes pulmões, disse

ele batendo no peito, e estes braços; apalpa.

Apalpei-lhe os braços, como se fosse os de Sancha. Custa-me esta confissão,

mas não posso suprimi-la; era jarretar a verdade. Não só os apalpei com essa idéia, mas

ainda senti outra coisa: achei-os mais grossos e fortes que os meus, e tive-lhes inveja;

acresce que sabiam nadar.

Quando saímos, tornei a falar com os olhos à dona da casa. A mão dela apertou

muito a minha, e demorou-se mais que de costume.

A modéstia pedia então, como agora, que eu visse naquele gesto de Sancha uma

sanção ao projeto do marido e um agradecimento. Assim devia ser, mas um fluido

particular que me correu todo o corpo desviou de mim a conclusão que deixo escrita.

Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante

de vertigem e de pecado. Passou depressa no relógio do tempo; quando cheguei o

relógio ao ouvido trabalhavam só os minutos da virtude e da razão.

– ...Uma senhora deliciosíssima, concluiu José Dias um discurso que vinha

fazendo.

– Deliciosíssima! repeti com algum ardor, que moderei logo, emendando-me:

Realmente, uma bela noite!

– Como devem ser todas as daquela casa, continuou o agregado. Cá fora, não; cá

fora o mar está zangado; escute.

Ouvia-se o mar forte, – como já se ouvia de casa, – a ressaca era grande e, a

distância, viam-se crescer as ondas. Capitu e prima Justina, que iam adiante, detiveramse

numa das voltas da praia, e fomos conversando os quatro; mas eu conversava mal.

Não havia meio de esquecer inteiramente a mão de Sancha nem os olhos que trocamos.

Agora achava-lhes isto, agora aquilo. Os instantes do diabo intercalavam-se nos minutos

de Deus, e o relógio foi assim marchando alternativamente a minha perdição e a minha

salvação. José Dias despediu-se de nós à porta. Prima Justina dormiu em nossa casa; iria

embora, no dia seguinte, depois do almoço e da missa. Eu recolhi-me ao meu gabinete,

onde me demorei mais que de costume.

O retrato de Escobar, que eu tinha ali, ao pé do de minha mãe, falou-me como se

fosse a própria pessoa. Combati sinceramente os impulsos que trazia do Flamengo;

rejeitei a figura da mulher do meu amigo, e chamei-me desleal. Demais, quem me

afirmava que houvesse alguma intenção daquela espécie no gesto da despedida e nos

anteriores? Tudo podia ligar-se ao interesse da nossa viagem. Sancha e Capitu eram tão

amigas que seria um prazer mais para elas irem juntas. Quando houvesse alguma

intenção sexual, quem me provaria que não era mais que uma sensação fulgurante,

destinada a morrer com a noite e o sono? Há remorsos que não nascem de outro pecado,

nem têm maior duração. Agarrei-me a esta hipótese que se conciliava com a mão de

Sancha, que eu sentia de memória dentro da minha mão, quente e demorada, apertada e

apertando...

Sinceramente, eu achava-me mal entre um amigo e a atração. A timidez pode ser que fosse outra

causa daquela crise; não é só o céu que dá as nossas virtudes, a timidez também, não contando o acaso,

mas o acaso é um mero acidente; a melhor origem delas é o céu. Entretanto, como a timidez vem do céu,

que nos dá a compleição, a virtude, filha dela, é, genealogicamente, o mesmo sangue celestial. Assim

refletiria, se pudesse; mas a princípio vaguei à toa. Paixão não era, nem inclinação. Capricho seria ou

quê? Ao fim de vinte minutos era nada, inteiramente nada. O retrato de Escobar pareceu falar-me; vi-lhe a

atitude franca e simples, sacudi a cabeça e fui deitar-me.



CAPÍTULO CXIX

Não Faça Isso, Querida!

A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar a cavatina de ontem para

a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida; eu

mudo de rumo.



CAPÍTULO CXX

Os Autos

Na manhã seguinte acordei livre das abominações da véspera; chamei-lhes

alucinações, tomei café, percorri os jornais e fui estudar uns autos. Capitu e prima

Justina saíram para a missa das nove, na Lapa. A figura de Sancha desapareceu

inteiramente no meio das alegações da parte adversa, que eu ia lendo nos autos,

alegações falsas, inadmissíveis, sem apoio na lei nem nas praxes. Vi que era fácil

ganhar a demanda, consultei Dalloz, Pereira e Sousa...

Uma só vez olhei para o retrato de Escobar. Era uma bela fotografia tirada um

ano antes. Estava de pé, sobrecasaca abotoada, a mão esquerda no dorso de uma cadeira,

a direita metida ao peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo e

naturalidade. A moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatória, escrita

embaixo, não nas costas do cartão: “Ao meu querido Bentinho o seu querido Escobar.

20-4-70.” Estas palavras fortaleceram-me os pensamentos daquela manhã, e espancaram

de todo as recordações da véspera. Naquele tempo a minha vista era boa; eu podia lê-las

do lugar em que estava. Tornei aos autos.

27 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 29/37

CAPÍTULO CXIII



Embargos de Terceiro

Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso dela, não

continuei a sê-lo apesar do filho e dos anos. Sim, senhor, continuei. Continuei a tal

ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer;

muita vez só a indiferença bastava. Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um

vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou

desconfiança. É certo que Capitu gostava de ser vista, e o meio mais próprio a tal fim

(disse-me uma senhora, um dia) é ver também, e não há ver sem mostrar que se vê.

A senhora que me disse isto cuido que gostou de mim, e foi naturalmente por

não achar da minha parte correspondência aos seus afetos que me explicou daquela

maneira os seus olhos teimosos. Outros olhos me procuravam também, não muitos, e

não digo nada sobre eles, tendo aliás confessado a princípio as minhas aventuras

vindouras, mas eram ainda vindouras. Naquele tempo, por mais mulheres bonitas que

achasse, nenhuma receberia a mínima parte do amor que tinha a Capitu. A minha

própria mãe não queria mais que metade. Capitu era tudo e mais que tudo; não vivia

nem trabalhava que não fosse pensando nela. Ao teatro íamos juntos; só me lembra que

fosse duas vezes sem ela, um benefício de ator, e uma estréia de ópera, a que ela não foi

por ter adoecido, mas quis por força que eu fosse. Era tarde para mandar o camarote a

Escobar; saí, mas voltei no fim do primeiro ato. Encontrei Escobar à porta do corredor.

– Vinha falar-te, disse-me ele.

Expliquei que tinha saído para o teatro donde voltara receoso de Capitu, que

ficara doente.

– Doente de quê? perguntou Escobar.

– Queixava-se da cabeça e do estômago.

– Então, vou-me embora. Vinha para aquele negócio dos embargos...

Eram uns embargos de terceiros; ocorrera um incidente importante, e, tendo ele

jantado na cidade, não quis ir para casa sem dizer-me o que era, mas já agora falaria

depois...

– Não, falemos já, sobe, ela pode estar melhor. Se estiver pior, desces.

Capitu estava melhor e até boa. Confessou-me que apenas tivera uma dor de

cabeça de nada, mas agravara o padecimento para que eu fosse divertir-me. Não falava

alegre, o que me fez desconfiar que mentia, para me não meter medo, mas jurou que era

a verdade pura. Escobar sorriu e disse:

– A cunhadinha está tão doente como você ou eu. Vamos aos embargos.



CAPÍTULO CXIV

Em que se Explica o Explicado

Antes de ir aos embargos, expliquemos ainda um ponto que já ficou explicado,

mas não bem explicado. Viste que eu pedi (cap. CX) a um professor de música de S.

Paulo que me escrevesse a toada daquele pregão de doces de Matacavalos. Em si, a

matéria é chocha, e não vale a pena de um capítulo, quanto mais dois; mas há matérias

tais que trazem ensinamentos interessantes, se não agradáveis. Expliquemos o

explicado.

Capitu e eu tínhamos jurado não esquecer mais aquele pregão; foi em momento

de grande ternura, e o tabelião divino sabe as coisas que se juram em tais momentos, ele

que as registra nos livros eternos.

– Você jura?

– Juro, disse ela estendendo tragicamente o braço.

Aproveitei o gesto para beijar-lhe a mão; estava ainda no seminário. Quando fui

para S. Paulo, querendo um dia relembrar a toada, vi que a ia perdendo inteiramente;

consegui recordá-la e corri ao professor, que me fez o obséquio de a escrever no

pedacinho de papel. Foi para não faltar ao juramento que fiz isto. Mas hás de crer que,

quando corri aos papéis velhos, naquela noite da Glória, também me não lembrava já da

toada nem do texto? Fiz-me de pontual ao juramento, e este é que foi o meu pecado;

esquecer, qualquer esquece.

Ao certo, ninguém sabe se há de manter ou não um juramento. Coisas futuras! Portanto, a nossa

constituição política, transferindo o juramento à afirmação simples, é profundamente moral. Acabou com

um pecado terrível. Faltar ao compromisso é sempre infidelidade, mas a alguém que tenha mais temor a

Deus que aos homens não lhe importará mentir, uma vez ou outra, desde que não mete a alma no

purgatório. Não confundam purgatório com inferno, que é o eterno naufrágio. Purgatório é uma casa de

penhores, que empresta sobre todas as virtudes, a juro alto e prazo curto. Mas os prazos renovam-se, até

que um dia uma ou duas virtudes medianas pagam os pecados grandes e pequenos.



CAPÍTULO CXV

Dúvidas sobre Dúvidas

Vamos agora aos embargos... E por que iremos aos embargos? Deus sabe o que

custa escrevê-los, quanto mais contá-los. Da circunstância nova que Escobar me trazia

apenas digo o que lhe disse então, isto é, que não valia nada.

– Nada?

– Quase nada.

– Então vale alguma coisa.

– Para reforçar as razões que já temos vale menos que o chá que você vai tomar

comigo.

– É tarde para tomar chá.

– Tomaremos depressa.

Tomamos depressa. Durante ele, Escobar olhava para mim desconfiado, como se

cuidasse que recusava a circunstância nova por forrar-me a escrevê-la; mas tal suspeita

não ia com a nossa amizade.

Quando ele saiu, referi as minhas dúvidas a Capitu; ela as desfez com a arte fina

que possuía, um jeito, uma graça toda sua, capaz de dissipar as mesmas tristezas de

Olímpio.

– Seria o negócio dos embargos, concluiu; e ele que veio até aqui, a esta hora, é

que está impressionado com a demanda.

– Tens razão.

Palavra puxa palavra, falei outras dúvidas. Eu era então um poço delas;

coaxavam dentro de mim, como verdadeiras rãs, a ponto de me tirarem o sono algumas

vezes. Disse-lhe que começava a achar minha mãe um tanto fria e arredia com ela. Pois

aqui mesmo valeu a arte fina de Capitu!

– Já disse a você o que é; coisas de sogra. Mamãezinha tem ciúmes de você;

logo que eles passem e as saudades aumentem, ela torna a ser o que era. Em lhe faltando

o neto...

– Mas eu tenho notado que já é fria também com Ezequiel. Quando ele vai

comigo, mamãe não lhe faz as mesmas graças.

– Quem sabe se não anda doente?

– Vamos nós jantar com ela amanhã?

– Vamos... Não... Pois vamos.

Fomos jantar com a minha velha. Já lhe podia chamar assim, posto que os seus

cabelos brancos não o fossem todos nem totalmente, e o rosto estivesse

comparativamente fresco; era uma espécie de mocidade qüinquagenária ou de

ancianidade viçosa, à escolha... Mas nada de melancolias; não quero falar dos olhos

molhados, à entrada e à saída. Pouco entrou na conversação. Também não era diferente

da costumada. José Dias falou do casamento e suas belezas, da política, da Europa e da

homeopatia, tio Cosme das suas moléstias, prima Justina da vizinhança, ou de José

Dias, quando este saía da sala.

Quando voltamos, à noite, viemos por ali a pé, falando das minhas dúvidas. Capitu novamente

me aconselhou que esperássemos. Sogras eram todas assim; lá vinha um dia e mudavam. Ao passo que

me falava, recrudescia de ternura. Dali em diante foi cada vez mais doce comigo; não me ia esperar à

janela, para não espertar-me os ciúmes, mas quando eu subia, via no alto da escada, entre as grades da

cancela, a cara deliciosa da minha amiga e esposa, risonha como toda a nossa infância. Ezequiel às vezes

estava com ela; nós o havíamos acostumado a ver o ósculo da chegada e da saída, e ele enchia-me a cara

de beijos.



CAPÍTULO CXVI

Filho do Homem

Apalpei José Dias sobre as maneiras novas de minha mãe; ficou espantado. Não

havia nada, nem podia haver coisa nenhuma, tantos eram os louvores incessantes que

ele ouvia “à bela e virtuosa Capitu”.

– Agora, quando os ouço, entro também no coro; mas a princípio ficava

envergonhadíssimo. Para quem chegou, como eu, a arrenegar deste casamento, era duro

confessar que ele foi uma verdadeira bênção do céu. Que digna senhora nos saiu a

criança travessa de Matacavalos! O pai é que nos separou um pouco, enquanto não nos

conhecíamos, mas tudo acabou em bem. Pois, sim, senhor, quando D. Glória elogia a

sua nora e comadre...

– Então mamãe?...

– Perfeitamente!

– Mas, por que é que não nos visita há tanto tempo?

– Creio que tem andado mais achacada dos seus reumatismos. Este ano tem feito

muito frio... Imagine a aflição dela, que andava o dia inteiro, agora é obrigada a estar

quieta, ao pé do irmão, que lá tem o seu mal...

Quis observar-lhe que tal razão explicava a interrupção das visitas, e não a frieza

quando íamos nós a Matacavalos; mas não estendi tão longe a intimidade do agregado.

José Dias pediu para ver o nosso “profetazinho” (assim chamava o Ezequiel) e fez-lhe

as festas do costume. Desta vez falou ao modo bíblico (estivera na véspera a folhear o

livro de Ezequiel, como soube depois) e perguntava-lhe: “Como vai isso, filho do

homem?” “Dize-me, filho do homem, onde estão os teus brinquedos?” “Queres comer

doce, filho do homem?”

– Que filho do homem é esse? perguntou Capitu agastada.

– São os modos de dizer da Bíblia.

– Pois eu não gosto deles, replicou ela com aspereza.

– Tem razão, Capitu, concordou o agregado. Você não imagina como a Bíblia é

cheia de expressões cruas e grosseiras. Eu falava assim para variar... Tu como vais, meu

anjo? Meu anjo, como é que eu ando na rua?

– Não, atalhou Capitu; já lhe vou tirando esse costume de imitar os outros.

– Mas tem muita graça; a mim, quando ele copia os meus gestos, parece-me que

sou eu mesmo, pequenino. Outro dia chegou a fazer um gesto de D. Glória, tão bem que

ela lhe deu um beijo em paga. Vamos, como é que eu ando?

– Não, Ezequiel, disse eu, mamãe não quer.

Eu mesmo achava feio tal sestro. Alguns dos gestos já lhe iam ficando mais

repetidos, como o das mãos e pés de Escobar; ultimamente, até apanhara o modo de

voltar a cabeça deste, quando falava, e o de deixá-la cair, quando ria. Capitu ralhava.

Mas o menino era travesso, como o diabo; apenas começávamos a falar de outra coisa,

saltou ao meio da sala, dizendo a José Dias:

– O senhor anda assim.

Não pudemos deixar de rir, eu mais que ninguém. A primeira pessoa que fechou

a cara, que o repreendeu e chamou a si foi Capitu.

– Não quero isso, ouviu?

26 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 28/37

CAPÍTULO CIX



Um Filho Único

Ezequiel, quando começou o capítulo anterior, não era ainda gerado; quando

acabou era cristão e católico. Este outro é destinado a fazer chegar o meu Ezequiel aos

cinco anos, um rapagão bonito, com os seus olhos claros, já inquietos, como se

quisessem namorar todas as moças da vizinhança, ou quase todas.

Agora, se considerares que ele foi único, que nenhum outro veio, certo nem incerto, morto nem

vivo, um só e único, imaginarás os cuidados que nos deu, os sonos que nos tirou, e que sustos nos

meteram as crises dos dentes e outras, a menor febrícula, toda a existência comum das crianças. A tudo

acudíamos, segundo cumpria e urgia, coisa que não era necessário dizer, mas há leitores tão obtusos, que

nada entendem, se se lhes não relata tudo e o resto. Vamos ao resto.



CAPÍTULO CX

Rasgos da Infância

O resto come-me ainda muitos capítulos; há vidas que os têm menos, e fazem-se

ainda assim completas e acabadas.

Aos cinco e seis anos, Ezequiel não parecia desmentir os meus sonhos da praia

da Glória; ao contrário, adivinhavam-se nele todas as vocações possíveis, desde vadio

até apóstolo. Vadio é aqui posto no bom sentido, no sentido de homem que pensa e cala;

metia-se às vezes consigo, e nisto fazia lembrar a mãe, desde pequena. Assim também,

agitava-se todo e instava por ir persuadir às vizinhas que os doces que eu lhe trazia eram

doces deveras; não o fazia antes de farto deles, mas também os apóstolos não levam a

boa doutrina senão depois de a terem toda no coração. Escobar, bom negociante,

opinava que a causa principal desta outra inclinação, talvez fosse convidar

implicitamente as vizinhas a igual apostolado, quando os pais lhe trouxessem doces; e

ria-se da própria graça, e anunciava-me que o faria seu sócio.

Gostava de música, não menos que de doce, e eu disse a Capitu que lhe tirasse

ao piano o pregão do preto das cocadas de Matacavalos...

– Não me lembra.

– Não diga isso; você não se lembra daquele preto que vendia doce, às tardes...

Lembro-me de um preto que vendia doce, mas não sei mais da toada.

– Nem das palavras?

– Nem das palavras.

– A leitora, que ainda se lembrará das palavras, dado que me tenha lido com

atenção, ficará espantada de tamanho esquecimento, tanto mais que lhe lembrarão ainda

as vozes da sua infância e adolescência; haverá olvidado algumas, mas nem tudo fica na

cabeça. Assim me replicou Capitu, e não achei tréplica. Fiz, porém, o que ela não

esperava; corri aos meus papéis velhos. Em S. Paulo, quando estudante, pedi a um

professor de música que me transcrevesse a toada do pregão; ele o fez com prazer

(bastou-me repetir-lho de memória), e eu guardei o papelinho; fui procurá-lo. Daí a

pouco interrompi um romance que ela tocava, com o pedacinho de papel na mão.

Expliquei-lho; ela teclou as dezesseis notas.

Capitu achou à toada um sabor particular, quase delicioso; contou ao filho a

história do pregão, e assim o cantava e teclava. Ezequiel aproveitou a música para pedirme

que desmentisse o texto, dando-lhe algum dinheiro.

Fazia de médico, de militar, de ator e bailarino. Nunca lhe dei oratórios; mas

cavalos de pau e espada à cinta eram com ele. Já não falo dos batalhões que passavam

na rua, e que ele corria a ver; todas as crianças o fazem. O que nem todos fazem é ter os

olhos que esta tinha. Em nenhuma vi as ânsias de gosto com que assistia à passagem da

tropa e ouvia a marcha dos tambores.

– Olha, papai! olha!

– Estou vendo, meu filho!

– Olha o comandante! Olha o cavalo do comandante! Olha os soldados!

Um dia amanheceu tocando corneta com a mão; dei-lhe uma cornetinha de

metal. Comprei-lhe soldadinhos de chumbo, gravuras de batalhas que ele mirava por

muito tempo, querendo que lhe explicasse uma peça de artilharia, um soldado caído,

outro de espada alçada, e todos os seus amores iam para o de espada alçada. Um dia

(ingênua idade!) perguntou-me impaciente:

– Mas, papai, por que é que ele não deixa cair a espada de uma vez?

– Meu filho, é porque é pintado.

– Mas então por que é que ele se pintou?

Ri-me do engano e expliquei que não era o soldado que se tinha pintado no

papel, mas o gravador, e tive de explicar também o que era gravador e o que era

gravura: as curiosidades de Capitu, em suma.

Tais são os principais rasgos da infância: mais um e acabo o capítulo. Um dia, na

chácara de Escobar, deu com um gato que tinha um rato atravessado na boca. O gato

nem deixava a presa, nem via por onde fugisse. Ezequiel não disse nada, deteve-se,

acocorou-se, e ficou olhando. Ao vê-lo assim atento, perguntamos-lhe de longe o que

era; fêz-nos sinal que nos calássemos. Escobar concluiu:

– Vão ver que é o gato que apanhou algum rato. Os ratos continuam a infestar-se

a casa, que é o diabo. Vamos ver.

Capitu quis também ver o filho; acompanhei-os. Efetivamente, era um gato e um

rato, lance banal, sem interesse nem graça. A única circunstância particular era estar o

rato vivo, esperneando, e o meu pequeno enlevado. De resto, o instante foi curto. O

gato, logo que sentiu mais gente, dispôs-se a correr; o menino, sem tirar-lhes os olhos de

cima, fez-nos outro sinal de silêncio; e o silêncio não podia ser maior. Ia dizer religioso,

risquei a palavra, mas aqui a ponho outra vez, não só por significar a totalidade do

silêncio, mas também porque havia naquela ação do gato e do rato alguma coisa que

prendia com ritual. O único rumor eram os últimos guinchos do rato, aliás frouxíssimos,

as pernas mal se lhe moviam e desordenadamente. Um tanto aborrecido, bati palmas

para que o gato fugisse, e o gato fugiu. Os outros nem tiveram tempo de atalhar-me,

Ezequiel ficou abatido.

– Ora, papai!!

– Que foi? A esta hora o rato está comido.

– Pois sim, mas eu queria ver.

Os dois riram-se; eu mesmo achei-lhe graça.



CAPÍTULO CXI

Contado Depressa

Achei-lhe graça, e não lha nego ainda agora, apesar do tempo passado, dos

sucessos ocorridos e da tal ou qual simpatia ao rato que acho em mim; teve graça. Não

me pesa dizê-lo; os que amam a natureza como ela quer ser amada, sem repúdio parcial

nem exclusões injustas, não acham nela nada inferior. Amo o rato, não desamo o gato.

Já pensei em os fazer viver juntos, mas vi que são incompatíveis. Em verdade, um róime

os livros, outro o queijo; mas não é muito que eu lhes perdoe, se já perdoei a um

cachorro que me levou o descanso em piores circunstâncias. Contarei o caso depressa.

Foi quando nasceu Ezequiel; a mãe estava com febre, Sancha vivia ao pé dela, e três cães na

rua latiam toda a noite. Procurei o fiscal, e foi como se procurasse o leitor, que só agora sabe disto. Então

resolvi matá-los; comprei veneno, mandei fazer três bolas de carne, e eu mesmo inseri nelas a droga. De

noite, saí; era uma hora; nem a doente, nem a enfermeira podiam dormir, com a bulha dos cães. Quando

eles me viram, afastaram-se, dois desceram para o lado da praia do Flamengo, um ficou a curta distância,

como que esperando. Fui-me a ele, assobiando e dando estalinhos com os dedos. O diabo ainda latiu, mas

fiado nos sinais de amizade, foi-se calando, até que se calou de todo. Como eu continuasse, ele veio a

mim, devagar, mexendo a cauda, que é o seu modo de rir deles; eu tinha já na mão as bolas envenenadas,

e ia deitar-lhe uma delas, quando aquele riso especial, carinho, confiança ou o que quer que seja, me atou

a vontade; fiquei assim não sei como, tocado de pena e guardei as bolas no bolso. Ao leitor pode parecer

que foi o cheiro da carne que remeteu o cão ao silêncio. Não digo que não; eu cuido que ele não me quis

atribuir perfídia ao gesto, e entregou-se-me. A conclusão é que se livrou.



CAPÍTULO CXII

As Imitações de Ezequiel

Tal não faria Ezequiel. Não comporia bolas envenenadas, suponho, mas não as recusaria

também. O que faria com certeza era ir atrás dos cães, à pedrada, até onde lhe dessem as pernas. E se

tivesse um pau, iria a pau. Capitu morria por aquele batalhador futuro.

– Não sai a nós, que gostamos da paz, disse-me ela um dia, mas papai em moço

era assim também; mamãe é que contava.

– Sim, não sairá maricas, repliquei; eu só lhe descubro um defeitozino, gosta de

imitar os outros.

– Imitar como?

– Imitar os gestos, os modos, as atitudes; imita prima Justina, imita José Dias; já

lhe achei até um jeito dos pés de Escobar e dos olhos...

Capitu deixou-se estar pensando e olhando para mim, e disse afinal que era

preciso emendá-lo. Agora reparava que realmente era vezo do filho, mas parecia-lhe que

era só imitar por imitar, como sucede a muitas pessoas grandes, que tomam as maneiras

dos outros; e para que não fosse mais longe...

– Também não vamos mortificá-lo. Sempre há tempo de corrigi-lo.

– Há, vou ver. Você também não era assim, quando se zangava com alguém...

– Quando me zangava, concordo; vingança de menino.

– Sim, mas eu não gosto de imitações em casa.

– E naquele tempo gostavas de mim? disse eu batendo-lhe na face.

A resposta de Capitu foi um riso doce de escárnio, um desses risos que não se

descrevem, e apenas se pintarão; depois estirou os braços e atirou-os sobre os ombros,

tão cheios de graça que pareciam (velha imagem!) um colar de flores. Eu fiz o mesmo

aos meus, e senti não haver ali um escultor que nos transferisse a atitude a um pedaço de

mármore. Só brilharia o artista, é certo. Quando uma pessoa ou um grupo saem bem,

ninguém quer saber do modelo, mas da obra, e a obra é que fica. Não importa; nós

saberíamos que éramos nós.

25 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 27/37

CAPÍTULO CV



Os Braços

No mais, tudo corria bem. Capitu gostava de rir e divertir-se, e, nos primeiros

tempos, quando íamos a passeios ou espetáculos, era como um pássaro que saísse da

gaiola. Arranjava-se com graça e modéstia. Embora gostasse de jóias, como as outras

moças, não queria que eu lhe comprasse muitas nem caras, e um dia afligiu-se tanto que

prometi não comprar mais nenhuma; mas foi só por pouco tempo.

A nossa vida era mais ou menos plácida. Quando não estávamos com a família

ou com amigos, ou se não íamos a algum espetáculo ou serão particular (e estes eram

raros), passávamos as noites à nossa janela da Glória, mirando o mar e o céu, a sombra

das montanhas e dos navios, ou a gente que passava na praia. Às vezes, eu contava a

Capitu a história da cidade, outras dava-lhe notícias de astronomia; notícias de amador

que ela escutava atenta e curiosa, nem sempre tanto que não cochilasse um pouco. Não

sabendo piano, aprendeu depois de casada, e depressa, e daí a pouco tocava nas casas de

amizade. Na Glória era uma das nossas recreações; também cantava, mas pouco e raro,

por não ter voz; um dia chegou a entender que era melhor não cantar nada e cumpriu o

alvitre. De dançar gostava, e enfeitava-se com amor quando ia a um baile; os braços é

que... Os braços merecem um período.

Eram belos, e na primeira noite que os levou nus a um baile, não creio que

houvesse iguais na cidade, nem os seus, leitora, que eram então de menina, se eram

nascidos, mas provavelmente estariam ainda no mármore, donde vieram, ou nas mãos

do divino escultor. Eram os mais belos da noite, a ponto que me encheram de

desvanecimento. Conversava mal com as outras pessoas, só para vê-los, por mais que

eles se entrelaçassem aos das casacas alheias. Já não foi assim no segundo baile; nesse,

quando vi que os homens não se fartavam de olhar para eles, de os buscar, quase de os

pedir, e que roçavam por eles as mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido. Ao terceiro

não fui, e aqui tive o apoio de Escobar, a quem confiei candidamente os meus tédios;

concordou logo comigo.

– Sanchinha também não vai, ou irá de mangas compridas; o contrário pareceme

indecente.

– Não é? Mas não diga o motivo; hão de chamar-nos seminaristas. Capitu já me

chamou assim.

Nem por isso deixei de contar a Capitu a aprovação de Escobar. Ela sorriu e respondeu que os

braços de Sanchinha eram malfeitos, mas cedeu depressa, e não foi ao baile; a outros foi, mas levou-os

meio vestidos de escumilha ou não sei que, que nem cobria nem descobria inteiramente, como o cendal de

Camões.



CAPÍTULO CVI

Dez Libras Esterlinas

Já disse que era poupada, ou fica dito agora, e não só de dinheiro mas também

de coisas usadas, dessas que se guardam por tradição, por lembrança ou por saudade.

Uns sapatos, por exemplo, uns sapatinhos rasos de fitas pretas que se cruzavam no peito

do pé e princípio da perna, os últimos que usou antes de calçar botinas, trouxe-os para

casa, e tirava-os de longe em longe da gaveta da cômoda, com outras velharias,

dizendo-me que eram pedaços de criança. Minha mãe, que tinha o mesmo gênio,

gostava de ouvir falar e fazer assim.

Quanto às puras economias de dinheiro, direi um caso, e basta. Foi justamente

por ocasião de uma lição de astronomia, à praia da Glória. Sabes que alguma vez a fiz

cochilar um pouco. Uma noite perdeu-se em fitar o mar, com tal força e concentração,

que me deu ciúmes.

– Você não me ouve, Capitu.

– Eu? Ouço perfeitamente.

– O que é que eu dizia?

– Você... você falava de Sírio.

– Qual Sírio, Capitu. Há vinte minutos que eu falei de Sírio.

– Falava de... falava de Marte, emendou ela apressada.

Realmente, era de Marte, mas é claro que só apanhara o som da palavra, não o

sentido. Fiquei sério, e o ímpeto que me deu foi deixar a sala; Capitu, ao percebê-lo,

fez-se a mais mimosa das criaturas, pegou-me na mão, confessou-me que estivera

contando, isto é, somando uns dinheiros para descobrir certa parcela que não achava.

Tratava-se de uma conversão de papel em ouro. A princípio supus que era um recurso

para desenfadar-me, mas daí a pouco estava eu mesmo calculando também, já então

com papel e lápis, sobre o joelho, e dava a diferença que ela buscava.

– Mas que libras são essas? perguntei-lhe no fim.

Capitu fitou-me rindo, e replicou que a culpa de romper o segredo era minha.

Ergueu-se, foi ao quarto e voltou com dez libras esterlinas, na mão; eram as sobras do

dinheiro que eu lhe dava mensalmente para as despesas.

– Tudo isto?

– Não é muito, dez libras só; é o que a avarenta de sua mulher pôde arranjar, em

alguns meses, concluiu fazendo tinir o ouro na mão.

– Quem foi o corretor?

– O seu amigo Escobar.

– Como é que ele não me disse nada?

– Foi hoje mesmo.

– Ele esteve cá?

– Pouco antes de você chegar; eu não disse para que você não desconfiasse.

Tive vontade de gastar o dobro do ouro em algum presente comemorativo, mas

Capitu deteve-me. Ao contrário, consultou-me sobre o que havíamos de fazer daquelas

libras.

– São suas, respondi.

– São nossas, emendou.

– Pois você guarde-as.

No dia seguinte, fui ter com Escobar ao armazém, e ri-me do segredo de ambos.

Escobar sorriu e disse-me que estava para ir ao meu escritório contar-me tudo. A cunhadinha

(continuava a dar este nome a Capitu) tinha-lhe falado naquilo por ocasião de

nossa última visita a Andaraí, e disse-lhe a razão do segredo.

– Quando contei isto a Sanchinha, concluiu ele, ficou espantada: “Como é que

Capitu pode economizar, agora que tudo está tão caro?” – “Não sei, filha; sei que

arranjou dez libras.”

– Vê se ela aprende também.

– Não creio; Sanchinha não é gastadeira, mas também não é poupada; o que lhe

dou chega, mas só chega.

Eu, depois de alguns instantes de reflexão:

– Capitu é um anjo!

Escobar concordou de cabeça, mas sem entusiasmo, como quem sentia não poder dizer o mesmo

da mulher. Assim pensarias tu também, tão certo é que as virtudes das pessoas próximas nos dão tal ou

qual vaidade, orgulho ou consolação.



CAPÍTULO CVII

Ciúmes do Mar

Se não fosse a astronomia, não descobriria eu tão cedo as dez libras de Capitu;

mas não é por isso que torno a ela, é para que não cuide que a vaidade de professor é

que me fez padecer com a desatenção de Capitu e ter ciúmes do mar. Não, meu amigo.

Venho explicar-te que tive tais ciúmes pelo que podia estar na cabeça de minha mulher,

não fora ou acima dela. É sabido que as distrações de uma pessoa podem ser culpadas,

metade culpadas, um terço, um quinto, um décimo de culpadas, pois que em matéria de

culpa a graduação é infinita. A recordação de uns simples olhos basta para fixar outros

que os recordem e se deleitem com a imaginação deles. Não é mister pecado efetivo e

mortal, nem papel trocado, simples palavra, aceno, suspiro ou sinal ainda mais miúdo e

leve. Um anônimo ou anônima que passe na esquina da rua faz com que metamos Sírio

dentro de Marte, e tu sabes, leitor, a diferença que há de um a outro na distância e no

tamanho, mas a astronomia tem dessas confusões. Foi isto que me fez empalidecer,

calar e querer fugir da sala para voltar, Deus sabe quando; provavelmente, dez minutos

depois. Dez minutos depois, estaria eu outra vez na sala, ao piano ou à janela,

continuando a lição interrompida:

– Marte está a distância de...

Tão pouco tempo? Sim, tão pouco tempo, dez minutos. Os meus ciúmes eram

intensos, mas curtos; com pouco derrubaria tudo, mas com o mesmo pouco ou menos

reconstruiria o céu, a terra e as estrelas.

A verdade é que fiquei mais amigo de Capitu, se era possível, ela ainda mais meiga, o ar mais

brando, as noites mais claras, e Deus mais Deus. E não foram propriamente as dez libras esterlinas que

fizeram isto, nem o sentimento de economia que revelavam e que eu conhecia, mas as cautelas que Capitu

empregou para o fim de descobrir-me um dia o cuidado de todos os dias. Escobar também se me fez mais

pegado ao coração. As nossas visitas foram-se tornando mais próximas, e as nossas conversações mais

íntimas.



CAPÍTULO CVIII

Um Filho

Pois nem tudo isso me matava a sede de um filho, um triste menino que fosse,

amarelo e magro, mas um filho, um filho próprio da minha pessoa. Quando íamos a

Andaraí e víamos a filha de Escobar e Sancha, familiarmente Capituzinha, por

diferençá-la de minha mulher, visto que lhe deram o mesmo nome à pia, ficávamos

cheios de invejas. A pequena era graciosa e gorducha, faladeira e curiosa. Os pais, como

os outros pais, contavam as travessuras e agudezas da menina, e nós, quando

voltávamos à noite para a Glória, vínhamos suspirando as nossas invejas, e pedindo

mentalmente ao céu que no-las matassem...

...As invejas morreram, as esperanças nasceram, e não tardou que viesse ao

mundo o fruto delas. Não era escasso nem feio, como eu já pedia, mas um rapagão

robusto e lindo.

A minha alegria quando ele nasceu, não sei dizê-la; nunca a tive igual, nem creio

que a possa haver idêntica, ou que de longe ou de perto se pareça com ela. Foi uma

vertigem e uma loucura. Não cantava na rua por natural vergonha, nem em casa para

não afligir Capitu convalescente. Também não caía, porque há um deus para os pais

novos. Fora, vivia com o espírito no menino; em casa, com os olhos, a observá-lo, a

mirá-lo, a perguntar-lhe donde vinha, e por que é que eu estava tão inteiramente nele, e

várias outras tolices sem palavras, mas pensadas ou deliradas a cada instante. Talvez

perdi algumas causas no foro por descuido.

Capitu não era menos terna para ele e para mim. Dávamos as mãos um ao outro,

e, quando não olhávamos para o nosso filho, conversávamos de nós, do nosso passado e

do nosso futuro. As horas de maior encanto e mistério eram as de amamentação.

Quando eu via o meu filho chupando o leite da mãe, e toda aquela união da natureza

para a nutrição e vida de um ser que não fora nada, mas que o nosso destino afirmou

que seria, e a nossa constância e o nosso amor fizeram que chegasse a ser, ficava que

não sei dizer nem digo; positivamente não me lembra, e receio que o que dissesse me

saísse escuro.

Escusai minúcias. Assim que, não é preciso contar a dedicação de minha mãe e

de Sancha, que também foi passar com Capitu os primeiros dias e noites. Quis rejeitar o

obséquio de Sancha; respondeu-me que eu não tinha nada com isso; também Capitu, em

solteira, fora tratá-la à Rua dos Inválidos.

– Não se lembra que o senhor foi lá vê-la?

– Lembra-me; mas Escobar...

– Eu virei jantar com vocês, e às noites sigo para Andaraí; oito dias, e está tudo

passado. Bem se vê que você é pai de primeira viagem.

– Também você; onde está a segunda?

Usávamos então estas graças em família. Hoje, que me recolhi à minha

casmurrice, não sei se ainda há tal linguagem, mas deve haver. Escobar cumpriu o que

disse; jantava conosco, e ia-se à noite. Sobretarde descíamos à praia ou íamos ao

Passeio Público, fazendo ele os seus cálculos, eu os meus sonhos. Eu via o meu filho

médico, advogado, negociante, meti-o em várias universidades e bancos, e até aceitei a

hipótese de ser poeta. A possibilidade de político foi consultada, e cri que me saísse

orador, e grande orador.

– Pode ser, redargüia Escobar; ninguém diria o que veio a ser Demóstenes.

Escobar acompanhava muita vez as minhas criancices; também interrogava o

futuro. Chegou a falar da hipótese de casar o pequeno com a filha. A amizade existe;

esteve toda nas mãos com que apertei as de Escobar, ao ouvir-lhe isto, e na total

ausência de palavras com que ali assinei o pacto; estas vieram depois, de atropelo,

afinadas pelo coração, que batia com grande força. Aceitei a lembrança, e propus que os

encaminhássemos a este fim, pela educação igual e comum, pela infância unida e

correta.

Era minha idéia que Escobar fosse padrinho do pequeno; a madrinha devia ser e

seria minha mãe. Mas a primeira parte se trocou por intervenção do tio Cosme, que, ao

ver a criança, disse-lhe entre outros carinhos.

– Anda, toma a bênção a teu padrinho, velhaco.

E, voltando-se para mim:

– Não desisto do favor; e há de ser depressa o batizado, antes que a minha

doença me leve de vez.

Contei discretamente a anedota a Escobar, para que ele me compreendesse e desculpasse; riu-se

e não se magoou. Fez mais, quis que o almoço do batizado fosse na chácara dele, e foi. Eu ainda tentei

espaçar a cerimônia a ver se tio Cosme sucumbia primeiro à doença, mas parece que esta era mais de

aborrecer que de matar. Não houve remédio senão levar o menino à pia, onde se lhe deu o nome de

Ezequiel; era o de Escobar, e eu quis suprir deste modo a falta de compadrio.

24 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 26/37

CAPÍTULO CI



No Céu

Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor peque em si, morto de

esperar, e vá espairecer a outra parte; casemo-nos. Foi em 1865, uma tarde de março,

por sinal chovia. Quando chegamos ao alto da Tijuca, onde era o nosso ninho de noivos,

o céu recolheu a chuva e acendeu as estrelas, não só as já conhecidas, mas ainda as que

só serão descobertas daqui a muitos séculos. Foi grande fineza e não foi única. São

Pedro, que tem as chaves do céu, abriu-nos as portas dele, fez-nos entrar, e depois de

tocar-nos com o báculo, recitou alguns versículos da sua primeira epístola: “As

mulheres sejam sujeitas a seus maridos... Não seja o adorno delas o enfeite dos cabelos

riçados ou as rendas de ouro, mas o homem que está escondido no coração... Do mesmo

modo, vós, maridos, coabitai com elas, tratando-as com honra, como a vasos mais

fracos, e herdeiras convosco da graça da vida...” Em seguida, fez sinal aos anjos, e eles

entoaram um trecho do Cântico, tão concertadamente, que desmentiram a hipótese do

tenor italiano, se a execução fosse na terra; mas era no céu. A música ia com o texto,

como se houvessem nascido juntos, à maneira de uma ópera de Wagner. Depois,

visitamos uma parte daquele lugar infinito. Descansa que não farei descrição alguma,

nem a língua humana possui formas idôneas para tanto.

Ao cabo, pode ser que tudo fosse um sonho; nada mais natural a um exseminarista

que ouvir por toda a parte latim e Escritura. É verdade que Capitu, que não

sabia Escritura nem latim, decorou algumas palavras, como estas, por exemplo: “Senteime

à sombra daquele que tanto havia desejado.” Quanto às de S. Pedro, disse-me no dia

seguinte que estava por tudo, que eu era a única renda e o único enfeite que jamais poria

em si. Ao que eu repliquei que a minha esposa teria sempre as mais finas rendas deste

mundo.



CAPÍTULO CII

De Casada

Imagina um relógio que só tivesse pêndulo, sem mostrador, de maneira que não

se vissem as horas escritas. O pêndulo iria de um lado para outro, mas nenhum sinal

externo mostraria a marcha do tempo. Tal foi aquela semana da Tijuca.

De quando em quando, tornávamos ao passado e divertíamo-nos em relembrar

as nossas tristezas e calamidades, mas isso mesmo era um modo de não sairmos de nós.

Assim vivemos novamente a nossa longa espera de namorados, os anos de adolescência,

a denúncia que está nos primeiros capítulos, e ríamos de José Dias que conspirou a

nossa desunião, e acabou festejando o nosso consórcio. Uma ou outra vez, falávamos

em descer, mas as manhãs marcadas eram sempre de chuva ou de sol, e nós

esperávamos um dia encoberto, que teimava em não vir.

Não obstante, achei que Capitu estava um tanto impaciente por descer.

Concordava em ficar, mas ia falando do pai e de minha mãe, da falta de notícias nossas,

disto e daquilo, a ponto que nos arrufamos um pouco. Perguntei-lhe se já estava

aborrecida de mim.

– Eu?

– Parece.

– Você há de ser sempre criança, disse ela fechando-me a cara entre as mãos e

chegando muito os olhos aos meus. Então eu esperei tantos anos para aborrecer-me em

sete dias? Não, Bentinho; digo isto porque é realmente assim, creio que eles podem

estar desejosos de ver-nos e imaginar alguma doença; e confesso, pela minha parte, que

queria ver papai.

– Pois vamos amanhã.

– Não; há de ser com tempo encoberto, redargüiu rindo.

Peguei-lhe no riso e na palavra, mas a impaciência continuou, e descemos com

sol.

A alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o ar de casada com que me deu a mão para

entrar e sair do carro, e o braço para andar na rua, tudo me mostrou que a causa da impaciência de Capitu

eram os sinais exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas

árvores; precisava do resto do mundo, também. E quando eu me vi embaixo, pisando as ruas com ela,

parando, olhando, falando, senti a mesma coisa. Inventava passeios para que me vissem, me

confirmassem e me invejassem. Na rua, muitos voltavam a cabeça curiosos, outros paravam, alguns

perguntavam: “Quem são?” e um sabido explicava: “Este é o Dr. Santiago, que casou há dias com aquela

moça, D. Capitolina, depois de uma longa paixão de crianças; moram na Glória, as famílias residem em

Matacavalos.” E ambos os dois: “É uma mocetona!”



CAPÍTULO CIII

A Felicidade Tem Boa Alma

Mocetona é vulgar; José Dias achou melhor. Foi a única pessoa cá de baixo que nos visitou na

Tijuca, levando abraços dos nossos e palavras suas, mas palavras que eram músicas verdadeiras; não as

ponho aqui para ir poupando papel, mas foram deliciosas. Um dia, comparou-nos a aves criadas em dois

vãos de telhado contíguos. Imagina o resto, as aves emplumando as asas e subindo ao céu, e o céu agora

mais largo para poder contê-las também. Nenhum de nós riu; ambos escutávamos comovidos e

convencidos, esquecendo tudo, desde a tarde de 1858... A felicidade tem boa alma.



CAPÍTULO CIV

As Pirâmides

José Dias dividia-se agora entre mim e minha mãe, alternando os jantares da

Glória com os almoços de Matacavalos. Tudo corria bem. Ao fim de dois anos de

casado, salvo o desgosto grande de não ter um filho, tudo corria bem. Perdera meu

sogro, é verdade, e o tio Cosme estava por pouco, mas a saúde de minha mãe era boa; a

nossa excelente.

Eu era advogado de algumas casas ricas, e os processos vinham chegando.

Escobar contribuíra muito para as minhas estréias no foro. Interveio com um advogado

célebre para que me admitisse à sua banca, e arranjou-me algumas procurações, tudo

espontaneamente.

Demais, as nossas relações de família estavam previamente feitas; Sancha e

Capitu continuavam depois de casadas a amizade da escola, Escobar e eu a do

seminário. Eles moravam em Andaraí, aonde queriam que fôssemos muitas vezes, e,

não podendo ser tantas como desejávamos, íamos lá jantar alguns domingos, ou eles

vinham fazê-lo conosco. Jantar é pouco. Íamos sempre muito cedo, logo depois do

almoço, para gozarmos o dia compridamente, e só nos separávamos às nove, dez e onze

horas, quando não podia ser mais. Agora que penso naqueles dias de Andaraí e da

Glória, sinto que a vida e o resto não sejam tão rijos como as Pirâmides.

Escobar e a mulher viviam felizes; tinham uma filhinha. Em tempo ouvi falar de

uma aventura do marido, negócio de teatro, não sei que atriz ou bailarina, mas se foi

certo, não deu escândalo. Sancha era modesta, o marido trabalhador. Como eu um dia

dissesse a Escobar que lastimava não ter um filho, replicou-me:

– Homem, deixe lá. Deus os dará quando quiser, e se não der nenhum é que os

quer para si, e melhor será que fiquem no céu.

– Uma criança, um filho é o complemento natural da vida.

– Virá, se for necessário.

Não vinha. Capitu pedia-o em suas orações, eu mais de uma vez dava por mim a rezar e a pedilo.

Já não era como em criança; agora pagava antecipadamente, como os aluguéis da casa.

21 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 25/37

CAPÍTULO XCVII



A Saída

Tudo se fez por esse teor. Minha mãe hesitou um pouco, mas acabou cedendo,

depois que o Padre Cabral, tendo consultado o bispo, voltou a dizer-lhe que sim, que

podia ser. Saí do seminário no fim do ano.

Tinha então pouco mais de dezessete... Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fezme

ir atrás da pena, e chego quase ao fim do papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não há

mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo em

resumo. Já esta página vale por meses, outras valerão por anos, e assim chegaremos ao fim. Um dos

sacrifícios que faço a esta dura necessidade é a análise das minhas emoções dos dezessete anos. Não sei

se alguma vez tiveste dezessete anos. Se sim, deves saber que é a idade em que a metade do homem e a

metade do menino formam um só curioso. Eu era um curiosíssimo, diria o meu agregado José Dias, e não

diria mal. O que essa qualidade superlativa me rendeu não poderia nunca dizê-lo aqui, sem cair no erro

que acabo de condenar; a análise das minhas emoções daquele tempo é que entrava no meu plano. Posto

que filho do seminário e de minha mãe, sentia já debaixo do recolhimento casto uns assomos de

petulância e de atrevimento; eram do sangue, mas eram também das moças que na rua ou da janela não

me deixavam viver sossegado. Achavam-me lindo, e diziam-mo; algumas queriam mirar de mais perto a

minha beleza, e a vaidade é um princípio de corrupção.



CAPÍTULO XCVIII

Cinco Anos

Venceu a razão; fui-me aos estudos. Passei os dezoito anos, os dezenove, os

vinte, os vinte e um; aos vinte e dois era bacharel em Direito.

Tudo mudara em volta de mim. Minha mãe resolvera-se a envelhecer; ainda

assim os cabelos brancos vinham de má vontade, aos poucos e espalhadamente; a touca,

os vestidos, os sapatos rasos e surdos eram os mesmos de outrora. Já não andaria tanto

de um lado para outro. Tio Cosme padecia do coração e ia descansar. A prima Justina

apenas estava mais idosa. José Dias também, não tanto que me não fizesse a fineza de ir

assistir à minha graduação, descer comigo a serra, lépido e viçoso, como se o bacharel

fosse ele. A mãe de Capitu falecera, o pai aposentara-se no mesmo cargo em que quis

dar demissão da vida.

Escobar começava a negociar em café depois de haver trabalhado quatro anos

em uma das primeiras casas do Rio de Janeiro. Era opinião de prima Justina que ele

afagara a idéia de convidar minha mãe a segundas núpcias; mas, se tal idéia houve,

cumpre não esquecer a grande diferença de idade. Talvez ele não pensasse em mais que

associá-la aos seus primeiros tentames comerciais, e de fato, a pedido meu, minha mãe

adiantou-lhe alguns dinheiros, que ele lhe restituiu, logo que pôde, não sem este

remoque: “D. Glória é medrosa e não tem ambição.”

A separação não nos esfriou. Ele foi o terceiro na troca das cartas entre mim e Capitu. Desde que

a viu animou-me muito no nosso amor. As relações que travou com o pai de Sancha estreitaram as que já

trazia com Capitu, e fê-lo servir a ambos nós, como amigo. A princípio, custou-lhe a ela aceitá-lo,

preferia José Dias, mas José Dias repugnava-me por um resto de respeito de criança. Venceu Escobar;

posto que vexada, Capitu entregou-lhe a primeira carta, que foi mãe e avó das outras. Nem depois de

casado suspendeu ele o obséquio... Que ele casou, adivinha com quem, – casou com a boa Sancha, a

amiga de Capitu, quase irmã dela, tanto que alguma vez, escrevendo-me, chama a esta a “sua

cunhadinha”. Assim se formam as afeições e os parentescos, as aventuras e os livros.



CAPÍTULO XCIX

O Filho é a Cara do Pai

Minha mãe, quando eu regressei bacharel quase estalou de felicidade. Ainda

ouço a voz de José Dias, lembrando o evangelho de São João, e dizendo ao ver-nos

abraçados:

– Mulher, eis aí o teu filho! Filho, eis aí a tua mãe!

Minha mãe, entre lágrimas:

– Mano Cosme, é a cara do pai, não é?

– Sim, tem alguma coisa, os olhos, a disposição do rosto. É o pai, um pouco

mais moderno, concluiu por chalaça. E diga-me agora, mana Glória, não foi melhor que

ele não teimasse em ser padre? Veja se este peralta daria um padre capaz.

– Como vai o meu substituto?

– Vai indo, ordena-se para o ano, respondeu tio Cosme. Hás de ir ver a

ordenação; eu também se o meu senhor coração consentir. É bom que te sintas na alma

do outro, como se recebesses em ti mesmo a sagração.

– Justamente! exclamou minha mãe. Mas veja bem, mano Cosme, veja se não é

a figura do meu defunto. Olha, Bentinho, olha bem para mim. Sempre achei que te

parecias com ele, agora é muito mais. O bigode é que desfaz um pouco...

– Sim, mana Glória, o bigode realmente... mas é muito parecido.

E minha mãe beijava-me com uma ternura que não sei escrever. Tio Cosme, para

alegrá-la, chamava-me doutor, José Dias também, e todos em casa, a prima, os escravos,

as visitas, Pádua, a filha, e ela mesma repetiam-me o título.



CAPÍTULO C

“Tu Serás Feliz, Bentinho!”

No quarto, desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel de dentro da lata, ia

pensando na felicidade e na glória. Via o casamento e a carreira ilustre, enquanto José

Dias me ajudava, calado e zeloso. Uma fada invisível, desceu ali e me disse em voz

igualmente macia e cálida: “Tu serás feliz, Bentinho; tu vais ser feliz.”

– E por que não seria feliz? perguntou José Dias, endireitando o tronco e fitandome.

– Você ouviu? perguntei eu erguendo-me também, espantado.

– Ouviu o quê?

– Ouviu uma voz que dizia que eu serei feliz?

– É boa! Você mesmo é que está dizendo...

Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada; naturalmente as fadas,

expulsas dos contos e dos versos, meteram-se no coração da gente e falam de dentro

para fora. Esta, por exemplo, muita vez a ouvi clara e distinta. Há de ser prima das

feiticeiras da Escócia: “Tu serás rei, Macbeth!” – “Tu serás feliz, Bentinho!” Ao cabo, é

a mesma predição, pela mesma toada universal e eterna. Quando voltei do meu espanto,

ouvi o resto do discurso de José Dias:

– ...Há de ser feliz, como merece, assim como mereceu esse diploma que ali

está, que não é favor de ninguém. A distinção que tirou em todas as matérias é prova

disso; já lhe contei que ouvi da boca dos lentes, em particular, os maiores elogios.

Demais, a felicidade não é só a glória, é também outra coisa... Ah! você não confiou

tudo ao velho José Dias! O pobre José Dias está aí para um canto, é caju chupado, não

vale nada; agora são os novos, os Escobares... Não lhe nego que é moço muito distinto,

e trabalhador, e marido de truz; mas, enfim, velho também sabe amar...

– Mas que é?

– Que há de ser? Quem é que não sabe tudo?... Aquela intimidade de vizinhos

tinha de acabar nisto, que é verdadeiramente uma bênção do céu, porque ela é um anjo,

é um anjíssimo... Perdoe a cincada, Bentinho, foi um modo de acentuar a perfeição

daquela moça. Cuidei o contrário, outrora; confundi os modos de criança com

expressões de caráter, e não vi que essa menina travessa e já de olhos pensativos era a

flor caprichosa de um fruto sadio e doce... Por que é que não me contou também o que

outros sabem, e cá em casa está mais que adivinhado e aprovado?

– Mamãe aprova deveras?

– Pois então? Temos falado sobre isto, e ela fez-me o favor de pedir a minha

opinião. Pergunte-lhe o que é que eu lhe disse em termos claros e positivos; perguntelhe.

Disse-lhe que não podia desejar melhor nora para si, boa, discreta, prendada, amiga

da gente... e uma dona de casa, que não lhe digo nada. Depois da morte da mãe, tomou

conta de tudo. Pádua, agora que se aposentou, não faz mais que receber o ordenado e

entregá-lo à filha. A filha é que distribui o dinheiro, para as contas, faz o rol das

despesas, cuida de tudo, mantimento, roupa, luz; você já a viu o ano passado. E quanto à

formosura você sabe, melhor que ninguém...

– Mas, deveras, mamãe consultou o senhor sobre o nosso casamento?

– Positivamente, não; fez-me o favor de perguntar se Capitu não daria uma boa

esposa; eu é que, na resposta, falei em nora. D. Glória não negou e até deu um ar de

riso.

– Mamãe sempre que me escrevia, falava de Capitu.

– Você sabe que elas se dão muito, e por isso é que sua prima anda cada vez

mais amuada. Talvez agora case mais depressa.

– Prima Justina?

– Não sabe? São contos, naturalmente; mas enfim, o Dr. João da Costa enviuvou

há poucos meses, e dizem (não sei, o protonotário é que me contou), dizem que os dois

andam meio inclinados a acabar com a viuvez, entre si, casando-se. Há de ver que não

há nada, mas não é fora de propósito, conquanto ela sempre achasse que o doutor era

um feixe de ossos... Só se ela é um cemitério, comentou rindo; e logo sério: Digo isto

por gracejo...

Não ouvi o resto. Ouvia só a voz da minha fada interior, que me repetia, mas já

então sem palavras: “Tu serás feliz, Bentinho!” E a voz de Capitu me disse a mesma

coisa, com termos diversos, e assim também a de Escobar, os quais ambos me

confirmaram a notícia de José Dias pela sua própria impressão. Enfim, minha mãe,

algumas semanas depois, quando lhe fui pedir licença para casar, além do

consentimento, deu-me igual profecia, salva a redação própria de mãe: “Tu serás feliz,

meu filho!”

20 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 24/37

CAPÍTULO XCIII



Um Amigo por um Defunto

Quanto à outra pessoa que teve a força obliterativa, foi o meu colega Escobar

que no domingo, antes do meio-dia, veio ter a Matacavalos. Um amigo supria assim um

defunto, e tal amigo que durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre

as suas, como se me não visse desde longos meses.

– Você janta comigo, Escobar?

– Vim para isto mesmo.

Minha mãe agradeceu-lhe a amizade que me tinha, e ele respondeu com muita

polidez, ainda que um tanto atado, como se carecesse de palavra pronta. Já viste que não

era assim, a palavra obedecia-lhe, mas o homem não é sempre o mesmo em todos os

instantes. O que ele disse, em resumo, foi que me estimava pelas minhas boas

qualidades e aprimorada educação; no seminário todos me queriam bem, nem podia

deixar de ser assim, acrescentou. Insistia na educação, nos bons exemplos, “na doce e

rara mãe”, que o céu me deu... Tudo isso com a voz engasgada e trêmula.

Todos ficaram gostando dele. Eu estava tão contente como se Escobar fosse

invenção minha. José Dias desfechou-lhe dois superlativos, tio Cosme dois capotes, e

prima Justina não achou tacha que lhe pôr; depois, sim, no segundo ou terceiro

domingo, veio ela confessar-nos que o meu amigo Escobar era um tanto metediço e

tinha uns olhos policiais a que não escapava nada.

– São os olhos dele, expliquei.

– Nem eu digo que sejam de outro.

– São olhos refletidos, opinou tio Cosme.

– Seguramente, acudiu José Dias; entretanto, pode ser que a Sr.ª D. Justina tenha

alguma razão. A verdade é que uma coisa não impede outra, e a reflexão casa-se muito

bem à curiosidade natural. Parece curioso, isso parece, mas...

– A mim parece-me um mocinho muito sério, disse minha mãe.

– Justamente! confirmou José Dias para não discordar dela.

Quando eu referi a Escobar aquela opinião de minha mãe (sem lhe contar as

outras, naturalmente), vi que o prazer dele foi extraordinário. Agradeceu, dizendo que

eram bondades, e elogiou também minha mãe, senhora grave, distinta e moça, muito

moça... Que idade teria?

– Já fez quarenta, respondi eu vagamente por vaidade.

– Não é possível! exclamou Escobar. Quarenta anos! Nem parece trinta; está

muito moça e bonita. Também a alguém há de você sair, com esses olhos que Deus lhe

deu; são exatamente os dela. Enviuvou há muitos anos?

Contei-lhe o que sabia da vida dela e de meu pai. Escobar escutava atento,

perguntando mais, pedindo explicação das passagens omissas ou só escuras. Quando eu

lhe disse que não me lembrava nada da roça, tão pequenino viera, contou-me duas ou

três reminiscências dos seus três anos de idade, ainda agora frescas. E não contávamos

voltar à roça?

– Não, agora não voltamos mais. Olhe, aquele preto que ali vai passando, é de lá.

Tomás!

– Nhonhô!

Estávamos na horta de minha casa, e o preto andava em serviço; chegou-se a nós

e esperou.

– É casado, disse eu para Escobar. Maria onde está?

– Está socando milho, sim, senhor.

– Você ainda se lembra da roça, Tomás?

– Alembra, sim, senhor.

– Bem, vá-se embora.

Mostrei outro, mais outro, e ainda outro, este Pedro, aquele José, aquele outro

Damião...

– Todas as letras do alfabeto, interrompeu Escobar.

Com efeito, eram diferentes letras, e só então reparei nisto; apontei ainda outros

escravos, alguns com os mesmos nomes, distinguindo-se por um apelido, ou da pessoa,

como João Fulo, Maria Gorda, ou de nação como Pedro Benguela, Antônio

Moçambique...

– E estão todos aqui em casa? perguntou ele.

– Não, alguns andam ganhando na rua, outros estão alugados. Não era possível

ter todos em casa. Nem são todos os da roça; a maior parte ficou lá.

– O que me admira é que D. Glória se acostumasse logo a viver em casa da

cidade, onde tudo é apertado; a de lá é naturalmente grande.

– Não sei, mas parece. Mamãe tem outras casas maiores que esta; diz porém que

há de morrer aqui. As outras estão alugadas. Algumas são bem grandes, como a da Rua

da Quitanda...

– Conheço essa; é bonita.

– Tem também no Rio Comprido, na Cidade-Nova, uma no Catete...

– Não lhe hão de faltar tetos, concluiu ele sorrindo com simpatia.

Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante aí, mirando a pedra de

bater roupa e fazendo reflexões a propósito do asseio; depois continuamos. Quais foram as reflexões não

me lembra agora; lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, ele riu também. A minha alegria acordava a

dele, e o céu estava tão azul, e o ar tão claro, que a natureza parecia rir também conosco. São assim as

boas horas deste mundo. Escobar confessou esse acordo do interno com o externo, por palavras tão finas e

altas que me comoveram; depois, a propósito da beleza moral que se ajusta à física, tornou a falar de

minha mãe, “um anjo dobrado”, disse ele.



CAPÍTULO XCIV

Idéias Aritméticas

Não digo o mais, que foi muito. Nem ele sabia só elogiar e pensar, sabia também

calcular depressa e bem. Era das cabeças aritméticas de Holmes (2 + 2 = 4). Não se

imagina a facilidade com que ele somava ou multiplicava de cor. A divisão, que foi

sempre uma das operações difíceis para mim, era para ele como nada: cerrava um pouco

os olhos, voltados para cima, e sussurrava as denominações dos algarismos: estava

pronto. Isto com sete, treze, vinte algarismos. A vocação era tal que o fazia amar os

próprios sinais das somas, e tinha esta opinião que os algarismos, sendo poucos, eram

muito mais conceituosos que as vinte e cinco letras do alfabeto.

– Há letras inúteis e letras dispensáveis, dizia ele. Que serviço diverso prestam o

d e o t? Têm quase o mesmo som. O mesmo digo do b e do p, o mesmo do s, do c e do

z, o mesmo do k e do g, etc. São trapalhices caligráficas. Veja os algarismos: não há

dois que façam o mesmo ofício; 4 é 4, e 7 é 7. E admire a beleza com que um 4 e um 7

formam esta coisa que se exprime por 11. Agora dobre 11 e terá 22; multiplique por

igual número, dá 484, e assim por diante. Mas onde a perfeição é maior é no emprego

do zero. O valor do zero é, em si mesmo, nada; mas o ofício deste sinal negativo é

justamente aumentar. Um 5 sozinho é um 5; ponha-lhe dois 00, é 500. Assim, o que não

vale nada faz valer muito, coisa que não fazem as letras dobradas, pois eu tanto aprovo

com um p como com dois pp.

Criado na ortografia de meus pais, custava-me a ouvir tais blasfêmias, mas não

ousava refutá-lo. Contudo, um dia, proferi algumas palavras de defesa, ao que ele

respondeu que era um preconceito, e acrescentou que as idéias aritméticas podiam ir ao

infinito, com a vantagem que eram mais fáceis de menear. Assim que, eu não era capaz

de resolver de momento um problema filosófico ou lingüístico, ao passo que ele podia

somar, em três minutos, quaisquer quantias.

– Por exemplo... dê-me um caso, dê-me uma porção de números que eu não

saiba nem possa saber antes... olhe, dê-me o número das casas de sua mãe e os aluguéis

de cada uma, e se eu não disser a soma total em dois, em um minuto, enforque-me!

Aceitei a aposta, e na semana seguinte levei-lhe escritos em um papel os

algarismos das casas e dos aluguéis. Escobar pegou no papel, passou-os pelos olhos a

fim de os decorar, e enquanto eu fitava o relógio, ele erguia as pupilas, cerrava as

pálpebras, e sussurrava... Oh! o vento não é mais rápido! Foi dito e feito; em meio

minuto bradava-me:

– Dá tudo 1:070$000 mensais.

Fiquei pasmado. Considera que eram não menos de nove casas, e que os

aluguéis variavam de uma para outra, indo de 70$000 a 180$000. Pois tudo isto em que

eu gastaria três ou quatro minutos, – e havia de ser no papel, – fê-lo Escobar de cor,

brincando. Olhando-me triunfalmente, e perguntava se não era exato. Eu, só por lhe

mostrar que sim, tirei do bolso o papelinho que levava com a soma total, e mostrei-lho;

era aquilo mesmo, nem um erro: 1:070$000.

– Isto prova que as idéias aritméticas são mais simples, e portanto mais naturais.

A natureza é simples. A arte é atrapalhada.

Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não pude

deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão; um padre

que estava com eles não gostou.

– A modéstia, disse-nos, não consente esses gestos excessivos; podem estimar-se

com moderação.

Escobar observou-me que os outros e o padre falavam de inveja e propôs-me

viver separados. Interrompi-o dizendo que não; se era inveja, tanto pior para eles.

– Quebremos-lhe a castanha na boca!

– Mas...

– Fiquemos ainda mais amigos que até aqui.

Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem os dedos. É ilusão,

decerto, se não é efeito das longas horas que tenho estado a escrever sem parar. Suspendamos a pena por

alguns instantes...



CAPÍTULO XCV

O Papa

A amizade de Escobar fez-se grande e fecunda; a de José Dias não lhe quis ficar

atrás. Na primeira semana disse-me este em casa:

– Agora é certo que você vai sair já do seminário.

– Como?

– Espere até amanhã. Vou jogar com eles que me chamaram; amanhã, lá no

quarto, no quintal, ou na rua, indo à missa, conto-lhe o que há. A idéia é tão santa que

não está mal no santuário. Amanhã, Bentinho.

– Mas é coisa certa?

– Certíssima!

No dia seguinte revelou-me o mistério. Ao primeiro aspecto, confesso que fiquei

deslumbrado. Trazia uma nota de grandeza e de espiritualidade que falava aos meus

olhos de seminarista. Era não menos que isto. Minha mãe, ao parecer dele, estava

arrependida do que fizera, e desejaria ver-me cá fora, mas entendia que o vínculo moral

da promessa a prendia indissoluvelmente. Cumpria rompê-lo, e para tanto valia a

Escritura, com o poder de desligar dado aos apóstolos. Assim que, ele e eu iríamos a

Roma pedir a absolvição do Papa... Que me parecia?

– Parece-me bem, respondi depois de alguns segundos de reflexão. Pode ser um

bom remédio.

– É o único, Bentinho, é o único! Vou já hoje conversar com D. Glória,

expondo-lhe tudo, e podemos partir daqui a dois meses, ou antes...

– Melhor é falar domingo que vem; deixe-me pensar primeiro...

– Oh! Bentinho! interrompeu o agregado. Pensar em quê? Você o que quer...

Digo? Não se amofina com o seu velho? Você o que quer é consultar a uma pessoa.

Rigorosamente, eram duas pessoas, Capitu e Escobar, mas eu neguei a pés juntos

que quisesse consultar ninguém. E que pessoa, o reitor? Não era natural que lhe

confiasse tal assunto. Não, nem reitor, nem professor, nem ninguém; era só o tempo de

refletir uma semana, no domingo daria a resposta, e desde já lhe dizia que a idéia não

me parecia má.

– Não?

– Não.

– Pois resolvamos hoje mesmo.

– Não se vai a Roma brincando.

– Quem tem boca vai a Roma, e boca no nosso caso é a moeda. Ora, você pode

muito bem gastar consigo... Comigo, não; um par de calças, três camisas e o pão diário,

não preciso mais. Serei como São Paulo, que vivia do ofício enquanto ia pregando a

palavra divina. Pois eu vou, não pregá-la, mas buscá-la. Levaremos cartas do

internúncio e do bispo, cartas para nosso ministro, cartas de capuchinhos... Bem sei a

objeção que se pode opor a esta idéia; dirão que é dado pedir a dispensa cá de longe;

mas, além do mais que não digo basta refletir que é muito mais solene e bonito ver

entrar no Vaticano, e prostrar-se aos pés do papa o próprio objeto do favor, o levita

prometido, que vai pedir para sua mãe terníssima e dulcíssima a dispensa de Deus.

Considere o quadro, você beijando o pé ao príncipe dos apóstolos; Sua Santidade, com o

sorriso evangélico, inclina-se, interroga, ouve, absolve e abençoa. Os anjos o

contemplam, a Virgem recomenda ao santíssimo filho que todos os seu desejos,

Bentinho, sejam santificados, e que o que você amar na terra seja igualmente amado no

céu...

Não digo mais, porque é preciso acabar o capítulo, e ele não acabou o discurso. Falou a todos os

meus sentimentos de católico e de namorado. Vi a alma aliviada de minha mãe, vi a alma feliz de Capitu,

ambas em casa, e eu com elas, e ele conosco, tudo mediante uma pequena viagem a Roma, que eu só

geograficamente sabia onde ficava; espiritualmente, também, mas a distância que estaria da vontade de

Capitu é que não. Eis o ponto essencial. Se Capitu achasse longe, não iria; mas era preciso ouvi-la, e

assim também a Escobar, que me daria um bom conselho.



CAPÍTULO XCVI

Um Substituto

Expus a Capitu a idéia de José Dias. Ouviu-me atentamente, e acabou triste.

– Você indo, disse ela, esquece-me inteiramente.

– Nunca!

– Esquece. A Europa dizem que é tão bonita, e a Itália principalmente. Não é de

lá que vêm as cantoras? Você esquece-me, Bentinho. E não haverá outro meio? D.

Glória está morta para que você saia do seminário.

– Sim, mas julga-se presa pela promessa.

Capitu não achava outra idéia, nem acabava de adotar esta. De caminho, pediume

que, se acaso fosse a Roma, jurasse que no fim de seis meses estaria de volta.

– Juro.

– Por Deus?

– Por Deus, por tudo. Juro que no fim de seis meses estarei de volta.

– Mas se o Papa não tiver ainda soltado a você?

– Mando dizer isso mesmo.

– E se você mentir?

Esta palavra doeu-me muito, e não achei logo que lhe replicasse. Capitu meteu o

negócio à bulha, rindo e chamando-me disfarçado. Depois, declarou crer que eu

cumpriria o juramento, mas ainda assim não consentiu logo; ia ver se não haveria outra

coisa, e eu que visse também por meu lado.

Quando voltei ao seminário, contei tudo ao meu amigo Escobar, que me ouviu

com igual atenção e acabou com a mesma tristeza da outra. Os olhos, de costume

fugidios, quase me comeram de contemplação. De repente, vi-lhe no rosto um clarão;

um reflexo de idéia. E ouvi-lhe dizer com volubilidade:

– Não, Bentinho, não é preciso isso. Há melhor, – não digo melhor, porque o

Santo Padre vale sempre mais que tudo, – mas há coisa que produz o mesmo efeito.

– Que é?

– Sua mãe fez promessa a Deus de lhe dar um sacerdote, não é? Pois bem, dê-lhe

um sacerdote, que não seja você. Ela pode muito bem tomar a si algum mocinho órfão,

fazê-lo ordenar à sua custa, está dado um padre ao altar, sem que você...

– Entendo, entendo, é isto mesmo.

– Não acha? continuou ele. Consulte sobre isto o protonotário; ele lhe dirá se não

é a mesma coisa, ou eu mesmo consulto, se quer; e se ele hesitar, fala-se ao senhor

bispo.

Eu, refletindo:

– Sim, parece que é isso; realmente, a promessa cumpre-se, não se perdendo o

padre.

Escobar observou que, pelo lado econômico, a questão era fácil; minha mãe

gastaria o mesmo que comigo, e um órfão não precisaria grandes comodidades. Citou a

soma dos aluguéis das casas, 1:070$000, além dos escravos...

– Não há outra coisa, disse eu.

– E saímos juntos.

– Você também?

– Também eu. Vou melhorar o meu latim e saio; nem dou teologia. O próprio

latim não é preciso; para que, no comércio?

– In hoc signo vinces, disse eu rindo.

Sentia-me pilhérico. Oh! como a esperança alegra tudo. Escobar sorriu,

parecendo gostar da resposta. Depois ficamos a cuidar de nós mesmos, cada um com os

seus olhos perdidos, provavelmente. Os dele estavam assim, quando tornei de longe, e

agradeci de novo o plano lembrado; não podia havê-lo melhor. Escobar ouviu-me

contentíssimo.

– Ainda uma vez, disse ele gravemente, a religião e a liberdade fazem boa companhia.