26 de nov. de 2011

TOV Internacional




OFICINAS DE ORAÇÃO E VIDA

Uma Nova Evangelização

ENDEREÇO DOS OFICINISTAS

NOME DO GUIA: Cecília e Judite 1º Semestre ( ) 2º Semestre ( ) LOCAL DAS SESSÕES: Paróquia Santa Teresa de Jesus. Clodomiro Amazonas, 50. Itaim Bibi



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5 de nov. de 2011

Leitura diária - Postagem 37/37

CAPÍTULO CXLV



O Regresso

Ora, foi já nesta casa que um dia, estando a vestir-me para almoçar, recebi um

cartão com este nome:

EZEQUIEL A. DE SANTIAGO

– A pessoa está aí? perguntei ao criado.

– Sim, senhor; ficou esperando.

Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns dez ou quinze minutos na sala. Só depois é

que me lembrou que cumpria ter certo alvoroço e correr, abraçá-lo, falar-lhe na mãe. A

mãe, – creio que ainda não disse que estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na

velha Suíça. Acabei de vestir-me às pressas. Quando saí do quarto, tomei ares de pai,

um pai entre manso e crespo, metade Dom Casmurro. Ao entrar na sala, dei com um

rapaz, de costas, mirando o busto de Massinissa, pintado na parede. Vim cauteloso, e

não fiz rumor. Não obstante, ouviu-me os passos, e voltou-se depressa. Conheceu-me

pelos retratos e correu para mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo

e jovem companheiro do seminário de S. José, um pouco mais baixo, menos cheio de

corpo e, salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. Trajava à

moderna, naturalmente, e as maneiras eram diferentes, mas o aspecto geral reproduzia a

pessoa morta. Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar. Era o meu comborço; era o

filho de seu pai. Vestia de luto pela mãe; eu também estava de preto. Sentamo-nos.

– Papai não faz diferença dos últimos retratos, disse-me ele.

A voz era a mesma de Escobar, o sotaque era afrancesado. Expliquei-lhe que

realmente pouco diferia do que era, e comecei um interrogatório para ter menos que

falar e dominar assim a minha emoção. Mas isto mesmo dava animação à cara dele, e o

meu colega do seminário ia ressurgindo cada vez mais do cemitério. Ei-lo aqui, diante

de mim, com igual riso e maior respeito; total, o mesmo obséquio e a mesma graça.

Ansiava por ver-me. A mãe falava muito em mim, louvando-me extraordinariamente,

como o homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido.

– Morreu bonita, concluiu.

– Vamos almoçar.

Se pensas que o almoço foi amargo, enganas-te. Teve seus minutos de

aborrecimento, é verdade; a princípio doeu-me que Ezequiel não fosse realmente meu

filho, que me não completasse e continuasse. Se o rapaz tem saído à mãe, eu acabava

crendo tudo, tanto mais facilmente quanto que ele parecia haver-me deixado na véspera,

evocava a meninice, cenas e palavras, a ida para o colégio...

– Papai ainda se lembra quando me levou para o colégio? perguntou rindo.

– Pois não hei de lembrar-me?

– Era na Lapa; eu ia desesperado, e papai não parava, dava-me cada puxão, e eu

com as perninhas... Sim, senhor, aceito.

Estendeu o copo ao vinho que eu lhe oferecia, bebeu um gole, e continuou a

comer. Escobar comia assim também, com a cara metida no prato. Contou-me a vida na

Europa, os estudos, particularmente os de arqueologia, que era a sua paixão. Falava da

antigüidade com amor, contava o Egito e os seus milhares de séculos, sem se perder nos

algarismos; tinha a cabeça aritmética do pai. Eu, posto que a idéia da paternidade do

outro me estivesse já familiar, não gostava da ressurreição. Às vezes, fechava os olhos

para não ver gestos nem nada, mas o diabrete falava e ria, e o defunto falava e ria por

ele.

Não havendo remédio senão ficar com ele, fiz-me pai deveras. A idéia de que

pudesse ter visto alguma fotografia de Escobar, que Capitu por descuido levasse

consigo, não me acudiu, nem, se acudisse, persistiria. Ezequiel cria em mim, como na

mãe. Se fosse vivo José Dias, acharia nele a minha própria pessoa. Prima Justina quis

vê-lo, mas, estando enferma, pediu-me que o levasse lá. Conhecia aquela parenta. Creio

que o desejo de ver Ezequiel era para o fim de verificar no moço o debuxo que

porventura houvesse achado no menino. Seria um regalo último; atalhei-o a tempo.

– Está muito mal, disse eu a Ezequiel que queria ir vê-la, qualquer emoção pode

trazer-lhe a morte. Iremos vê-la, quando ficar melhor.

Não fomos; a morte levou-a dentro de poucos dias. Ela descansa no Senhor ou

como quer que seja. Ezequiel viu-lhe a cara no caixão e não a conheceu, nem podia, tão

outra a fizeram os anos e a morte. No caminho para o cemitério, iam-lhe lembrando

uma porção de coisas, alguma rua, alguma torre, um trecho de praia, e era todo alegria.

Assim acontecia sempre que voltava para casa, ao fim do dia; contava-me as

recordações que ia recebendo das ruas e das casas. Admirava-se que muitas destas

fossem as mesmas que ele deixara, como se as casas morressem meninas.

Ao cabo de seis meses, Ezequiel falou-me em uma viagem à Grécia, ao Egito, e

à Palestina, viagem científica, promessa feita a alguns amigos.

– De que sexo? perguntei rindo.

Sorriu vexado, e respondeu-me que as mulheres eram criaturas tão da moda e do dia que nunca

haviam de entender uma ruína de trinta séculos. Eram dois colegas da universidade. Prometi-lhe recursos,

e dei-lhe logo os primeiros dinheiros precisos. Comigo disse que uma das conseqüências dos amores

furtivos do pai era pagar eu as arqueologias do filho; antes lhe pagasse a lepra... Quando esta idéia me

atravessou o cérebro, senti-me tão cruel e perverso que peguei no rapaz, e quis apertá-lo ao coração, mas

recuei; encarei-o depois, como se faz a um filho de verdade; os olhos que ele me deitou foram ternos e

agradecidos.



CAPÍTULO CXLVI

Não Houve Lepra

Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas, sejam velhas ou

novas. Onze meses depois, Ezequiel morreu de febre tifóide, e foi enterrado nas

imediações de Jerusalém, onde os dois amigos da universidade lhe levantaram um

túmulo com esta inscrição, tirada do profeta Ezequiel, em grego. “Tu eras perfeito nos

teus caminhos”. Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o desenho da sepultura,

a conta de despesas e o resto do dinheiro que ele levava; pagaria o triplo para não tornar

a vê-lo.

Como quisesse verificar o texto, consultei a minha Vulgata, e achei que era

exato, mas tinha ainda um completo; “Tu eras perfeito nos teus caminhos, desde o dia

da tua criação.” Parei e perguntei calado: “Quando seria o dia da criação de Ezequiel?”

Ninguém me respondeu. Eis aí mais um mistério para ajuntar aos tantos deste mundo.

Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro.



CAPÍTULO CXLVII

A Exposição Retrospectiva

Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou aí para

um canto como uma flor lívida e solitária. Não lhe dei essa cor ou descor. Vivi o melhor

que pude sem me faltarem amigas que me consolassem da primeira. Caprichos de pouca

dura, é verdade. Elas é que me deixavam como pessoas que assistem a uma exposição

retrospectiva, e, ou se fartam de vê-la, ou a luz da sala esmorece. Uma só dessas visitas

tinha carro à porta e cocheiro de libré. As outras iam modestamente, calcante pede, e, se

chovia, eu é que ia buscar um carro de praça, e as metia dentro, com grandes

despedidas, e maiores recomendações.

– Levas o catálogo?

– Levo; até amanhã.

– Até amanhã.

Não voltavam mais. Eu ficava à porta, esperando, ia até a esquina, espiava,

consultava o relógio, e não via nada nem ninguém. Então, se aparecia outra visita, davalhe

o braço, entrávamos, mostrava-lhe as paisagens, os quadros históricos ou de gênero,

uma aquarela, um pastel, uma gouache, e também esta cansava, e ia embora com o

catálogo na mão...



CAPÍTULO CXLVIII

E Bem, e o Resto?

Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira

amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de

cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto é

saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se foi

mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse

dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. I: “Não tenhas ciúmes

de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti.”

Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina,

hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.

E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o

resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão

extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e

enganando-me... A terra lhes seja leve! Vamos à História dos Subúrbios.

4 de nov. de 2011

Leitura diária - Postagem 36/37

CAPÍTULO CXLI



A Solução

Aqui está o que fizemos. Pegamos em nós e fomos para a Europa, não passear,

nem ver nada, novo nem velho; paramos na Suíça. Uma professora do Rio Grande, que

foi conosco, ficou de companhia a Capitu, ensinando a língua materna a Ezequiel, que

aprenderia o resto nas escolas do país. Assim regulada a vida, tornei ao Brasil.

Ao cabo de alguns meses, Capitu começara a escrever-me cartas, a que respondi com brevidade e

sequidão. As dela eram submissas, sem ódio, acaso afetuosas, e para o fim saudosas; pedia-me que a fosse

ver. Embarquei um ano depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o mesmo resultado. Na volta,

os que se lembravam dela, queriam notícias, e eu dava-lhas, como se acabasse de viver com ela;

naturalmente as viagens eram feitas com o intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião. Um dia,

finalmente...



CAPÍTULO CXLII

Uma Santa

Entenda-se que, se nas viagens que fiz à Europa, José Dias não foi comigo, não é que lhe faltasse

vontade; ficava de companhia a tio Cosme, quase inválido, e a minha mãe, que envelheceu depressa.

Também ele estava velho, posto que rijo. Ia a bordo despedir-se de mim, e as palavras que me dizia, os

gestos de lenço, os próprios olhos que enxugava eram tais que me comoviam também. A última vez não

foi a bordo.

– Venha...

– Não posso.

– Está com medo?

– Não; não posso. Agora, adeus, Bentinho, não sei se me verá mais; creio que

vou para a outra Europa, a eterna...

Não foi logo; minha mãe embarcou primeiro. Procura no cemitério de S. João

Batista uma sepultura sem nome, com esta única indicação: Uma santa. É aí. Fiz fazer

essa inscrição com alguma dificuldade. O escultor achou-a esquisita; o administrador do

cemitério consultou o vigário da paróquia; este ponderou-me que as santas estão no altar

e no céu.

– Mas, perdão, atalhei, eu não quero dizer que naquela sepultura está uma

canonizada. A minha idéia é dar com tal palavra uma definição terrena de todas as

virtudes que a finada possuiu na vida. Tanto é assim que, sendo a modéstia uma delas,

desejo conservá-la póstuma, não lhe escrevendo o nome.

– Todavia, o nome, a filiação, as datas...

– Quem se importará com datas, filiação, nem nomes, depois que eu acabar?

– Quer dizer que era uma santa senhora, não?

– Justamente. O Protonotário Cabral, se fosse vivo, confirmaria aqui o que lhe

digo.

– Nem eu contesto a verdade, hesito só na fórmula. Conheceu então o

protonotário?

– Conheci-o. Era um padre-modelo.

– Bom canonista, bom latinista, pio e caridoso, continuou o vigário.

– E possuía algumas prendas de sociedade, disse eu; lá em casa sempre ouvi que

era insigne parceiro ao gamão...

– Tinha muito bom dado! suspirou lentamente o vigário. Um dado de mestre!

– Então, parece-lhe?...

– Uma vez que não há outro sentido, nem poderia havê-lo, sim, senhor, admitese...

José Dias assistiu a estas diligências com grande melancolia. No fim, quando

saímos, disse mal do padre, chamou-lhe meticuloso. Só lhe achava desculpa por não ter

conhecido minha mãe, nem ele nem os outros homens do cemitério.

– Não a conheceram; se a conhecessem mandariam esculpir santíssima.



CAPÍTULO CXLIII

O Último Superlativo

Não foi o último superlativo de José Dias. Outros teve que não vale a pena

escrever aqui, até que veio o último, o melhor deles, o mais doce, o que lhe fez da morte

um pedaço de vida. Já então morava comigo; posto que minha mãe lhe deixasse uma

pequena lembrança, veio dizer-me que, com legado ou sem ele, não se separaria de

mim. Talvez a esperança dele fosse enterrar-me. Correspondia-se com Capitu, a quem

pedia que lhe mandasse o retrato de Ezequiel, mas Capitu ia adiando a remessa de

correio a correio, até que ele não pediu mais nada, a não ser o coração do jovem

estudante; pedi-lhe também que não deixasse de falar a Ezequiel no velho amigo do pai

e do avô, “destinado pelo céu a amar o mesmo sangue”. Era assim que ele preparava os

cuidados da terceira geração; mas a morte veio antes de Ezequiel. A doença foi rápida.

Mandei chamar um médico homeopata.

– Não, Bentinho, disse ele; basta um alopata; em todas as escolas se morre. De

mais, foram idéias da mocidade, que o tempo levou; converto-me à fé de meus pais. A

alopatia é o catolicismo da medicina...

Morreu sereno, após uma agonia curta. Pouco antes ouviu que o céu estava

lindo, e pediu que abríssemos a janela.

– Não, o ar pode fazer-lhe mal.

– Que mal? Ar é vida.

Abrimos a janela. Realmente, estava um céu azul e claro. José Dias soergueu-se e olhou para

fora; após alguns instantes, deixou cair a cabeça, murmurando: Lindíssimo! Foi a última palavra que

proferiu neste mundo. Pobre José Dias! Por que hei de negar que chorei por ele?



CAPÍTULO CXLIV

Uma Pergunta Tardia

Assim chorem por mim todos os olhos de amigos e amigas que deixo neste

mundo, mas não é provável. Tenho-me feito esquecer. Moro longe e saio pouco. Não é

que haja efetivamente ligado as duas pontas da vida. Esta casa do Engenho Novo,

conquanto reproduza a de Matacavalos, apenas me lembra aquela, e mais por efeito de

comparação e de reflexão que de sentimento. Já disse isto mesmo.

Hão de perguntar-me por que razão, tendo a própria casa velha, na mesma rua

antiga, não impedi que a demolissem e vim reproduzi-la nesta. A pergunta devia ser

feita a princípio, mas aqui vai a resposta. A razão é que, logo que minha mãe morreu,

querendo ir para lá, fiz primeiro uma longa visita de inspeção por alguns dias, e toda a

casa me desconheceu. No quintal a aroeira e a pitangueira, o poço, a caçamba velha e o

lavadouro, nada sabia de mim. A casuarina era a mesma que eu deixara ao fundo, mas o

tronco, em vez de reto, como outrora, tinha agora um ar de ponto de interrogação;

naturalmente pasmava do intruso. Corri os olhos pelo ar, buscando algum pensamento

que ali deixasse, e não achei nenhum. Ao contrário, a ramagem começou a sussurrar

alguma coisa que não entendi logo, e parece que era a cantiga das manhãs novas. Ao pé

dessa música sonora e jovial, ouvi também o grunhir dos porcos, espécie de troça

concentrada e filosófica.

Tudo me era estranho e adverso. Deixei que demolissem a casa, e, mais tarde, quando vim para o

Engenho Novo, lembrou-me fazer esta reprodução por explicações que dei ao arquiteto, segundo contei

em tempo.

3 de nov. de 2011

Leitura diária - Postagem 35/37

CAPÍTULO CXXXVII



Segundo Impulso

Se eu não olhasse para Ezequiel, é provável que não estivesse aqui escrevendo

este livro, porque o meu primeiro ímpeto foi correr ao café e bebê-lo. Cheguei a pegar

na xícara, mas o pequeno beijava-me a mão, como de costume, e a vista dele, como o

gesto, deu-me outro impulso que me custa dizer aqui; mas vá lá, diga-se tudo. Chamemme

embora assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo

impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomara café.

– Já, papai; vou à missa com mamãe.

– Toma outra xícara, meia xícara só.

– E papai?

– Eu mando vir mais; anda, bebe!

Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que quase a entornei,

mas disposto a fazê-la cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a

temperatura, porque o café estava frio... Mas não sei que senti que me fez recuar. Pus a

xícara em cima da mesa, e dei por mim a beijar doidamente a cabeça do menino.

– Papai! papai! exclamava Ezequiel.

– Não, não, eu não sou teu pai!



CAPÍTULO CXXXVIII

Capitu que Entra

Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitu diante de mim. Eis aí outro

lance, que parecerá de teatro, e é tão natural como o primeiro, uma vez que a mãe e o

filho iam à missa, e Capitu não saía sem falar-me. Era já um falar seco e breve; a mor

parte das vezes, eu nem olhava para ela. Ela olhava sempre, esperando.

Desta vez, ao dar com ela, não sei se era dos meus olhos, mas Capitu pareceume

lívida. Segui-se um daqueles silêncios, a que, sem mentir, se podem chamar de um

século, tal é a extensão do tempo nas grandes crises. Capitu recompôs-se; disse ao filho

que se fosse embora, e pediu-me que lhe explicasse...

– Não há que explicar, disse eu.

– Há tudo; não entendo as tuas lágrimas nem as de Ezequiel. Que houve entre

vocês?

– Não ouviu o que lhe disse?

Capitu respondeu que ouvira choro e rumor de palavras. Eu creio que ouvira

tudo claramente, mas confessá-lo seria perder a esperança do silêncio e da

reconciliação; por isso negou a audiência e confirmou unicamente a vista. Sem lhe

contar o episódio do café, repeti-lhe as palavras do final do capítulo.

– O quê? perguntou ela como se ouvira mal.

– Que não é meu filho.

Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu,

tão naturais ambas que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do nosso foro.

Já ouvi que as há para vários casos, questão de preço; eu não creio, tanto mais que a

pessoa que me contou isso acabava de perder uma demanda. Mas, haja ou não

testemunhas alugadas, a minha era verdadeira; a própria natureza jurava por si, e eu não

queria duvidar dela. Assim que, sem atender à linguagem de Capitu, aos seus gestos, à

dor que a retorcia, a coisa nenhuma, repeti as palavras ditas duas vezes com tal

resolução que a fizeram afrouxar. Após alguns instantes, disse-me ela:

– Só se pode explicar tal injúria pela convicção sincera; entretanto, você que era

tão cioso dos menores gestos, nunca revelou a menor sombra de desconfiança. Que é

que lhe deu tal idéia? Diga, – continuou vendo que eu não respondia nada, – diga tudo;

depois do que ouvi, posso ouvir o resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu agora tal

convicção? Ande, Bentinho, fale! fale! Despeça-me daqui, mas diga tudo primeiro.

– Há coisas que se não dizem.

– Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo.

Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da mesa. Podia estar um tanto confusa, o

porte não era de acusada. Pedi-lhe ainda uma vez que não teimasse.

– Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que

tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais!

– A separação é coisa decidida, redargüi, pegando-lhe na proposta. Era melhor

que a fizéssemos por meias palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida. Uma

vez, porém, que a senhora insiste, aqui vai o que lhe posso dizer, e é tudo.

Não disse tudo; mal pude aludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome.

Capitu não pôde deixar de rir, de um riso que eu sinto não poder transcrever aqui;

depois, em um tom juntamente irônico e melancólico:

– Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!

Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, enquanto eu, que

não pedia outra coisa mais que a plena justificação dela, disse-lhe não sei que palavras

adequadas a este fim. Capitu olhou para mim com desdém, e murmurou:

– Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se?

É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem

dizer mais nada.



CAPÍTULO CXXXIX

A Fotografia

Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de

alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: – “Mamãe! mamãe! é hora da missa!” restituiume

à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e

depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força

alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não

confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou do filho e saíram para a missa.



CAPÍTULO CXL

Volta da Igreja

Ficando só, era natural pegar do café e bebê-lo. Pois, não, senhor; tinha perdido

o gosto à morte. A morte era uma solução; eu acabava de achar outra, tanto melhor

quanto que não era definitiva, e deixava a porta aberta à reparação, se devesse havê-la.

Não disse perdão, mas reparação, isto é, justiça. Qualquer que fosse a razão do ato,

rejeitei a morte, e esperei o regresso de Capitu. Este foi mais demorado que de costume;

cheguei a temer que ela houvesse ido à casa de minha mãe, mas não foi.

– Confiei a Deus todas as minhas amarguras, disse-me Capitu ao voltar da

igreja; ouvi dentro de mim que a nossa separação é indispensável, e estou às suas

ordens.

Os olhos com que me disse isto eram embuçados, como espreitando um gesto de

recusa ou de espera. Contava com a minha debilidade com a própria incerteza em que

eu podia estar da paternidade do outro, mas falhou tudo. Acaso haveria em mim um

homem novo, um que aparecia agora, desde que impressões novas e fortes o

descobriam? Nesse caso era um homem apenas encoberto. Respondi-lhe que ia pensar, e

faríamos o que eu pensasse. Em verdade vos digo que tudo estava pensado e feito.

No intervalo, evocara as palavras do finado Gurgel, quando me mostrou em casa dele o retrato

da mulher, parecido com Capitu. Hás de lembrar-te delas; se não, relê o capítulo, cujo número não ponho

aqui, por não me lembrar já qual seja, mas não fica longe. Reduzem-se a dizer que há tais semelhanças

inexplicáveis... Pelo dia adiante, e nos outros dias, Ezequiel ia ter comigo ao gabinete, e as feições do

pequeno davam idéia clara das do outro, ou eu ia atentando mais nelas. De envolta, lembravam-me

episódios vagos e remotos, palavras, encontros e incidentes, tudo em que a minha cegueira não pôs

malícia, e a que faltou o meu velho ciúme. Uma vez em que os fui achar sozinhos e calados, um segredo

que me fez rir, uma palavra dela sonhando, todas essas reminiscências vieram vindo agora, em tal

atropelo que me atordoaram... E por que os não enganei um dia, quando desviei os olhos da rua onde

estavam duas andorinhas trepadas no fio telegráfico? Dentro, as minhas outras andorinhas estavam

trepadas no ar, os olhos enfiados nos olhos, mas tão cautelosos que se desenfiaram logo, dizendo-me uma

palavra amiga e alegre. Contei-lhes o namoro das andorinhas de fora, e acharam-lhe graça; Escobar

declarou que, para ele, seria melhor se as andorinhas, em vez de trepadas no fio de arame, estivessem à

mesa do jantar, cozidas. “Nunca comi os ninhos delas, continuou, mas devem ser bons, se os chins os

inventaram.” E ficamos a tratar dos chins e dos clássicos que falaram deles, enquanto Capitu, confessando

que a aborrecíamos, foi a outros cuidados. Agora lembrava-me tudo o que então me pareceu nada.

2 de nov. de 2011

Leitura diária - Postagem 34/37

CAPÍTULO CXXXIII



Uma Idéia

Um dia, – era uma sexta-feira, – não pude mais. Certa idéia, que negrejava em mim, abriu as asas

e entrou a batê-las de um lado para outro, como fazem as idéias que querem sair. O ser sexta-feira creio

que foi acaso, mas também pode ter sido propósito; fui educado no terror daquele dia; ouvi cantar baladas

em casa, vindas da roça e da antiga metrópole, nas quais a sexta-feira era o dia de agouro. Entretanto, não

havendo almanaques no cérebro, é provável que a idéia não batesse as asas senão pela necessidade que

sentia de vir ao ar e à vida. A vida é tão bela que a mesma idéia da morte precisa de vir primeiro a ela,

antes de se ver cumprida. Já me vais entendendo; lê agora outro capítulo.



CAPÍTULO CXXXIV

O Dia de Sábado

A idéia saiu finalmente do cérebro. Era noite, e não pude dormir, por mais que a

sacudisse de mim. Também nenhuma noite me passou tão curta. Amanheceu, quando

cuidava não ser mais que uma ou duas horas. Saí, supondo deixar a idéia em casa; ela

veio comigo. Cá fora tinha a mesma cor escura, as mesmas asas trépidas, e posto

avoasse com elas, era como se fosse fixa; eu a levava na retina, não que me encobrisse

as coisas externas, mas via-as através dela, com a cor mais pálida que de costume, e sem

se demorarem nada.

Não me lembra bem o resto do dia. Sei que escrevi algumas cartas, comprei uma

substância, que não digo, para não despertar o desejo de prová-la. A farmácia faliu, é

verdade; o dono fez-se banqueiro, e o banco prospera. Quando me achei com a morte no

bolso senti tamanha alegria como se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior,

porque o prêmio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta. Fui à casa de minha mãe,

com o fim de despedir-me, a título de visita. Ou de verdade ou por ilusão, tudo ali me

pareceu melhor nesse dia, minha mãe menos triste, tio Cosme esquecido do coração,

prima Justina, da língua. Passei uma hora em paz. Cheguei a abrir mão do projeto. Que

era preciso para viver? Nunca mais deixar aquela casa, ou prender aquela hora a mim

mesmo...



CAPÍTULO CXXXV

Otelo

Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não

vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes

raivas do mouro, por causa de um lenço, – um simples lenço! – e aqui dou matéria à

meditação dos psicólogos deste e de outros Continentes, pois não me pude furtar à

observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais

sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se, hoje são precisos os próprios

lençóis; alguma vez nem lençóis há, e valem só as camisas. Tais eram as idéias que me

iam passando pela cabeça, vagas e turvas, à medida que o mouro rolava convulso, e

Iago destilava a sua calúnia. Nos intervalos não me levantava da cadeira; não queria

expor-me a encontrar algum conhecido. As senhoras ficavam quase todas nos

camarotes, enquanto os homens iam fumar. Então eu perguntava a mim mesmo se

alguma daquelas não teria amado alguém que jazesse agora no cemitério, e vinham

outras incoerências, até que o pano subia e continuava a peça. O último ato mostrou-me

que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras

amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos

frenéticos do público.

– E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo: – que faria o público, se ela

deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um

travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a

consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna

extinção...

Vaguei pelas ruas o resto da noite. Ceei, é verdade, um quase nada, mas o

bastante para ir até à manhã. Vi as últimas horas da noite e as primeiras do dia, vi os

derradeiros passeadores e os primeiros varredores, as primeiras carroças, os primeiros

ruídos, os primeiros albores, um dia que vinha depois do outro e me veria ir para nunca

mais voltar. As ruas que eu andava como que me fugiam por si mesmas. Não tornaria a

contemplar o mar da Glória, nem a serra dos Órgãos, nem a Fortaleza de Santa-Cruz e

as outras. A gente que passava não era tanta, como nos dias comuns da semana, mas era

já numerosa e ia a algum trabalho, que repetiria depois; eu é que não repetiria mais

nada.

Cheguei a casa, abri a porta devagarinho, subi pé ante pé, e meti-me no gabinete; iam dar seis

horas. Tirei o veneno do bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi ainda uma carta, a última, dirigida

a Capitu. Nenhuma das outras era para ela; senti necessidade de lhe dizer uma palavra em que lhe ficasse

o remorso da minha morte. Escrevi dois textos. O primeiro queimei-o por ser longo e difuso. O segundo

continha só o necessário, claro e breve. Não lhe lembrava o nosso passado, nem as lutas havidas, nem

alegria alguma; falava-lhe só de Escobar e da necessidade de morrer.



CAPÍTULO CXXXVI

A Xícara de Café

O meu plano foi esperar o café, dissolver nele a droga e ingeri-la. Até lá, não

tendo esquecido de todo a minha história romana, lembrou-me que Catão, antes de se

matar, leu e releu um livro de Platão. Não tinha Platão comigo; mas um tomo truncado

de Plutarco, em que era narrada a vida do célebre romano; bastou-me a ocupar aquele

pouco tempo, e, para em tudo imitá-lo, estirei-me no canapé. Nem era só imitá-lo nisso;

tinha necessidade de incutir em mim a coragem dele, assim como ele precisara dos

sentimentos do filósofo para intrepidamente morrer. Um dos males da ignorância é não

ter este remédio à última hora. Há muita gente que se mata sem ele, e nobremente

expira; mas estou que muita mais gente poria termo aos seus dias, se pudesse achar essa

espécie de cocaína moral dos bons livros. Entretanto, querendo fugir a qualquer suspeita

de imitação, lembra-me bem que, para não ser encontrado ao pé de mim o livro de

Plutarco, nem ser dada a notícia nas gazetas com a cor das calças que eu então vestia,

assenti de pô-lo novamente no seu lugar, antes de beber o veneno.

O copeiro trouxe o café. Ergui-me, guardei o livro, e fui para a mesa onde ficara

a xícara. Já a casa estava em rumores; era tempo de acabar comigo. A mão tremeu-me

ao abrir o papel em que trazia a droga embrulhada. Ainda assim tive ânimo de despejar

a substância na xícara, e comecei a mexer o café, os olhos vagos, a memória em

Desdêmona inocente; o espetáculo da véspera vinha intrometer-se na realidade da

manhã. Mas a fotografia de Escobar deu-me o ânimo que me ia faltando; lá estava ele,

com mão nas costas da cadeira, a olhar ao longe...

– Acabemos com isto, pensei.

Quando ia beber, cogitei se não seria melhor esperar que Capitu e o filho

saíssem para a missa; beberia depois; era melhor. Assim disposto, entrei a passear no

gabinete. Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi-o entrar e correr a mim bradando:

– Papai, papai!

Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por havê-lo inteiramente

esquecido, mas crê que foi belo e trágico. Efetivamente, a figura do pequeno fez-me

recuar até dar de costas na estante. Ezequiel abraçou-me os joelhos, esticou-se na ponta

dos pés, como querendo subir e dar-me o beijo do costume; e repetia, puxando-me:

– Papai! papai!

1 de nov. de 2011

Leitura diária - Postagem 33/37

CAPÍTULO CXXIX



A D. Sancha

D. Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até aqui,

abandone o resto. Basta fechá-lo; melhor será queimá-lo, para lhe não dar tentação e

abri-lo outra vez. Se, apesar do aviso, quiser ir até o fim, a culpa é sua; não respondo

pelo mal que receber. O que já lhe tiver feito, contando os gestos daquele sábado, esse

acabou, uma vez que os acontecimentos, e eu com eles, desmentimos a minha ilusão;

mas o que agora a alcançar, esse é indelével. Não, amiga minha, não leia mais. Vá

envelhecendo, sem marido nem filha, que eu faço a mesma coisa, e é ainda o melhor

que se pode fazer depois da mocidade. Um dia, iremos daqui até a porta do céu, onde

nos encontraremos renovados, como as plantas novas, come piante novelle,

Rinovellate di novelle fronde.

O resto em Dante.



CAPÍTULO CXXX

Um Dia...

Porquanto um dia Capitu quis saber o que é que me fazia andar calado e

aborrecido. E propôs-me a Europa, Minas, Petrópolis, uma série de bailes, mil desses

remédios aconselhados aos melancólicos. Eu não sabia que lhe respondesse; recusei as

diversões. Como insistisse, repliquei-lhe que os meus negócios andavam mal. Capitu

sorriu para animar-me. E que tinha que andassem mal? Tornariam a andar bem, e até lá

as jóias, os objetos de algum valor seriam vendidos, e iríamos residir em algum beco.

Viveríamos sossegados e esquecidos; depois tornaríamos à tona da água. A ternura com

que me disse isto era de comover as pedras. Pois nem assim. Respondi-lhe secamente

que não era preciso vender nada. Deixei-me estar calado e aborrecido. Ela propôs-me

jogar cartas ou damas, um passeio a pé, uma visita a Matacavalos; e, como eu não

aceitasse nada, foi para a sala, abriu o piano, e começou a tocar; eu aproveitei a

ausência, peguei do chapéu e saí.

...Perdão, mas este capítulo devia ser precedido de outro, em que contasse um incidente, ocorrido

poucas semanas antes, dois meses depois da partida de Sancha. Vou escrevê-lo; podia antepô-lo a este,

antes de mandar o livro ao prelo, mas custa muito alterar o número das páginas; vai assim mesmo, depois

a narração seguirá até o fim. Demais, é curto.



CAPÍTULO CXXXI

Anterior ao Anterior

Foi o caso que a minha vida era outra vez doce e plácida, a banca do advogado

rendia-me bastante. Capitu estava mais bela, Ezequiel ia crescendo. Começava o ano de

1872.

– Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita?

perguntou-me Capitu. Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto

Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado de papai, não precisa revirar

os olhos, assim, assim...

Era depois de jantar, estávamos ainda à mesa, Capitu brincava com o filho, ou

ele com ela, ou um com outro, porque, em verdade, queriam-se muito, mas é também

certo que ele me queria ainda mais a mim. Aproximei-me de Ezequiel, achei que Capitu

tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não me pareceram esquisitos por isso.

Afinal não haveria mais que meia dúzia de expressões no mundo, e muitas semelhanças

se dariam naturalmente. Ezequiel não entendeu nada, olhou espantado para ela e para

mim, e afinal saltou-me ao colo:

– Vamos passear, papai?

– Logo, meu filho.

Capitu, alheia a ambos, fitava agora a outra borda da mesa; mas, dizendo-lhe eu que, na beleza,

os olhos de Ezequiel saíam aos da mãe, Capitu sorriu, abanando a cabeça com um ar que nunca achei em

mulher alguma, provavelmente porque não gostei tanto das outras. As pessoas valem o que vale a afeição

da gente, e é daí que mestre Povo tirou aquele adágio que quem o feio ama bonito lhe parece. Capitu tinha

meia dúzia de gestos únicos na terra. Aquele entrou-me pela alma dentro. Assim fica explicado que eu

corresse à minha esposa e amiga e lhe enchesse a cara de beijos; mas este outro incidente não é

radicalmente necessário à compreensão do capítulo passado e dos futuros; fiquemos nos olhos de

Ezequiel.



CAPÍTULO CXXXII

O Debuxo e o Colorido

Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iamse

apurando com o tempo. Eram como um debuxo primitivo que o artista vai enchendo

e colorindo aos poucos, e a figura entra a ver, sorrir, palpitar, falar quase, até que a

família pendura o quadro na parede, em memória do que foi e já não pode ser. Aqui

podia ser e era. O costume valeu muito contra o efeito da mudança; mas a mudança fezse,

não à maneira de teatro, fez-se como a manhã que aponta vagarosa, primeiro que se

possa ler uma carta, depois lê-se a carta na rua, em casa, no gabinete, sem abrir as

janelas; e a luz coada pelas persianas basta a distinguir as letras. Li a carta, mal a

princípio e não toda, depois fui lendo melhor. Fugia-lhe, é certo, metia o papel no bolso,

corria a casa, fechava-me, não abria as vidraças, chegava a fechar os olhos. Quando

novamente abria os olhos e a carta, a letra era clara e a notícia claríssima.

Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se

sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedirme

à noite a bênção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e

praticava-as, para me não descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse

dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que

ninguém. Quando nem mãe nem filho estavam comigo o meu desespero era grande, e eu

jurava matá-los a ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo da morte

todos os minutos da vida embaraçada e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via

no alto da escada a criaturinha que me queria e esperava, ficava desarmado e diferia o

castigo de um dia para outro.

O que se passava entre mim e Capitu naqueles dias sombrios, não se notará aqui,

por ser tão miúdo e repetido, e já tão tarde que não se poderá dizê-lo sem falha nem

canseira. Mas o principal irá. E o principal é que os nossos temporais eram agora

contínuos e terríveis. Antes de descoberta aquela má terra da verdade, tivemos outros de

pouca dura; não tardava que o céu se fizesse azul, o sol claro e o mar chão, por onde

abríamos novamente as velas que nos levavam às ilhas e costas mais belas do universo,

até que outro pé de vento desbaratava tudo, e nós, postos à capa, esperávamos outra

bonança, que não era tardia nem dúbia, antes total, próxima e firme.

Releva-me estas metáforas; cheiram ao mar e à maré que deram morte ao meu

amigo e comborço Escobar. Cheiram também aos olhos de ressaca de Capitu. Assim,

posto sempre fosse homem de terra, conto aquela parte da minha vida, como um marujo

contaria o seu naufrágio.

Já entre nós só faltava dizer a palavra última; nós a líamos, porém, nos olhos um

do outro, vibrante e decisiva, e sempre que Ezequiel vinha para nós não fazia mais que

separar-nos. Capitu propôs metê-lo em um colégio, donde só viesse aos sábados; custou

muito ao menino aceitar esta situação.

– Quero ir com papai! Papai há de ir comigo! bradava ele.

Fui eu mesmo que o levei um dia de manhã, uma segunda-feira. Era no antigo

Largo da Lapa, perto da nossa casa. Levei-o a pé, pela mão, como levara o ataúde do

outro. O pequeno ia chorando e fazendo perguntas a cada passo, se voltaria para casa, e

quando, e se eu iria vê-lo...

– Vou.

– Papai não vai!

– Vou sim.

– Jura, papai!

– Pois sim.

– Papai não diz que jura.

– Pois juro.

E lá o levei e deixei. A ausência temporária não atalhou o mal, e toda a arte fina

de Capitu para fazê-lo atenuar, ao menos, foi como se não fosse; eu sentia-me cada vez

pior. A mesma situação nova agravou a minha paixão. Ezequiel vivia agora mais fora da

minha vista; mas a volta dele, ao fim das semanas, ou pelo descostume em que eu

ficava, ou porque o tempo fosse andando e completando a semelhança, era a volta de

Escobar mais vivo e ruidoso. Até a voz, dentro de pouco, já me parecia a mesma. Aos

sábados, buscava não jantar em casa e só entrar quando ele estivesse dormindo; mas não

escapava ao domingo, no gabinete, quando que me achava entre jornais e autos.

Ezequiel entrava turbulento, expansivo, cheio de riso e de amor, porque o demo do

pequeno cada vez morria mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora uma aversão

que mal podia disfarçar, tanto a ela como aos outros. Não podendo encobrir

inteiramente esta disposição moral, cuidava de me não fazer encontradiço com ele, ou

só o menos que pudesse; ora tinha trabalho que me obrigava a fechar o gabinete, ora

saía ao domingo para ir passear pela cidade e arrabaldes o meu mal secreto.

31 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 32/37

CAPÍTULO CXXV



Uma Comparação

Príamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquele que lhe matou o filho.

Homero é que relata isto, e é um bom autor, não obstante contá-lo em verso, mas há narrações exatas em

verso, e até mau verso. Compara tu a situação de Príamo com a minha; eu acabava de louvar as virtudes

do homem que recebera, defunto, aqueles olhos... É impossível que algum Homero não tirasse da minha

situação muito melhor efeito, ou quando menos, igual. Nem digas que nos faltam Homeros, pela causa

apontada em Camões; não, senhor, faltam-nos, é certo, mas é porque os Príamos procuram a sombra e o

silêncio. As lágrimas, se as têm, são enxugadas atrás da porta, para que as caras apareçam limpas e

serenas; os discursos são antes de alegria que de melancolia, e tudo passa como se Aquiles não matasse

Heitor.



CAPÍTULO CXXVI

Cismando

Pouco depois de sair do cemitério, rasguei o discurso e deitei os pedaços pela

portinhola fora, sem embargo dos esforços de José Dias para impedi-lo.

– Não presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentação de dá-lo a

imprimir, fica já destruído de uma vez. Não presta, não vale nada.

José Dias demonstrou longamente o contrário, depois elogiou o enterro, e por

último fez o panegírico do morto, uma grande alma, espírito ativo, coração reto, amigo,

bom amigo, digno da esposa amantíssima que Deus lhe dera...

Neste ponto do discurso, deixei-o falar sozinho e peguei a cismar comigo. O que

cismei foi tão escuro e confuso que não me deixou tomar pé. No Catete mandei parar o

carro, disse a José Dias que fosse buscar as senhoras ao Flamengo e as levasse para

casa; eu iria a pé.

– Mas...

– Vou fazer uma visita.

A razão disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que fosse adequada

ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas; estas iriam pausadas ou não,

podiam afrouxar o passo, parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabeça cismasse à

vontade. Fui andando e cismando. Tinha já comparado o gesto de Sancha na véspera e o

desespero daquele dia; eram inconciliáveis. A viúva era realmente amantíssima. Assim

se desvaneceu de todo a ilusão da minha vaidade. Não seria o mesmo caso de Capitu?

Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajuntamento de pessoas que

devia naturalmente impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que

aqui vai por ordem lógica e dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de idéias e

sensações, graças aos solavancos do carro e às interrupções de José Dias. Agora, porém,

raciocinava e evocava claro e bem. Concluí de mim para mim que era a antiga paixão

que me ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre.

Quando cheguei a esta conclusão final, chegava também à porta de casa, mas voltei para trás, e

subi outra vez a Rua do Catete. Eram as dúvidas que me afligiam ou a necessidade de afligir Capitu com a

minha grande demora? Ponhamos que eram as duas causas; andei largo espaço, até que me senti sossegar,

e endireitei para a casa. Batiam oito horas numa padaria.



CAPÍTULO CXXVII

O Barbeiro

Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a rabeca e

não tocava inteiramente mal. Na ocasião em que ia passando, executava não sei que

peça. Parei na calçada a ouvi-lo (tudo são pretextos a um coração agoniado), ele viu-me,

e continuou a tocar. Não atendeu a um freguês, e logo a outro, que ali foram a despeito

da hora e de ser domingo, confiar-lhe as caras à navalha. Perdeu-os sem perder uma

nota; ia tocando para mim. Esta consideração fez-me chegar francamente à porta da

loja, voltado para ele. Ao fundo, levantando a cortina de chita que fechava o interior da

casa, vi apontar uma moça trigueira, vestido claro, flor no cabelo. Era a mulher dele;

creio que me descobriu de dentro, e veio agradecer-me com a presença o favor que eu

fazia ao marido. Se me não engano, chegou a dizê-lo com os olhos. Quanto ao marido,

tocava agora com mais calor; sem ver a mulher, sem ver fregueses, grudava a face ao

instrumento, passava a alma ao arco, e tocava, tocava...

Divina arte! Ia-se formando um grupo, deixei a porta da loja e vim andando para casa; enfiei

pelo corredor e subi as escadas sem estrépito. Nunca me esqueceu o caso deste barbeiro, ou por estar

ligado a um momento grave da minha vida, ou por esta máxima, que os compiladores podem tirar daqui e

inserir nos compêndios de escola. A máxima é que a gente esquece devagar as boas ações que pratica, e

verdadeiramente não as esquece nunca. Pobre barbeiro! Perdeu duas barbas naquela noite, que eram o pão

do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um transeunte. Supõe agora que este, em vez de ir-se embora,

como eu fui, ficava à porta a ouvi-lo e a namorar-lhe a mulher; então é que ele, todo arco, todo rabeca,

tocaria desesperadamente. Divina arte!



CAPÍTULO CXXVIII

Punhado de Sucessos

Como ia dizendo, subi as escadas sem estrépito, empurrei a cancela, que estava

apenas encostada, e dei com prima Justina e José Dias jogando cartas na saleta próxima.

Capitu levantou-se do canapé e veio a mim. O rosto dela era agora sereno e puro. Os

outros suspenderam o jogo, e todos falamos do desastre e da viúva. Capitu censurou a

imprudência de Escobar, e não dissimulou a tristeza que lhe trazia a dor da amiga.

Perguntei-lhe por que não ficara com Sancha aquela noite.

– Tem lá muita gente; ainda assim ofereci-me, mas não quis. Também lhe disse

que era melhor vir para cá, e passar aqui uns dias conosco.

– Também não quis?

– Também não.

– Entretanto, a vista do mar há de ser-lhe penosa, todas as manhãs, ponderou

José Dias, e não sei como poderá...

– Mas passa; o que é que não passa? atalhou prima Justina.

E como em torno desta idéia, começássemos uma troca de palavras, Capitu saiu

para ver se o filho dormia. Ao passar pelo espelho, concertou os cabelos tão demoradamente

que pareceria afetação, se não soubéssemos que ela era muito amiga de si.

Quando tornou trazia os olhos vermelhos; disse-nos que, ao mirar o filho dormindo,

pensara na filhinha de Sancha, e na aflição da viúva. E, sem se lhe dar das visitas, nem

reparar se havia algum criado, abraçou-me e disse-me que, se quisesse pensar nela, era

preciso pensar primeiro na minha vida. José Dias achou a frase “líndíssima”, e

perguntou a Capitu por que é que não fazia versos. Tentei meter o caso à bulha, e assim

a noite.

No dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, não que quisesse dálo

a imprimir, mas era lembrança do finado. Pense em recompô-lo, mas só achei frases

soltas, que uma vez juntas não tinham sentido. Também pensei em fazer outro, mas era

já difícil, e podia ser apanhado em falso pelos que me tinham ouvido no cemitério.

Quanto a recolher os pedacinhos de papel deitados à rua, era tarde; estariam já varridos.

Inventariei as lembranças de Escobar, livros, um tinteiro de bronze, uma bengala

de marfim, um pássaro, o álbum de Capitu, duas paisagens do Paraná e outras. Também

ele as possuía de minha mão. Vivemos assim a trocar memórias e regalos, ora em dia de

anos, ora sem razão particular. Tudo isso me empanava os olhos... Vieram os jornais do

dia: davam notícia do desastre e da morte de Escobar, os estudos e os negócios deste, as

qualidades pessoais, a simpatia do comércio, e também falavam dos bens deixados, da

mulher e da filha. Tudo isso foi na segunda-feira. Na terça-feira foi aberto o testamento,

que me nomeava segundo testamenteiro; o primeiro lugar cabia à mulher. Não me

deixava nada, mas as palavras que me escrevera em carta separada eram sublimes de

amizade e estima. Capitu desta vez chorou muito; mas compôs-se depressa.

Testamento, inventário, tudo andou quase tão depressa como aqui vai dito. Ao cabo de pouco

tempo, Sancha retirou-se para a casa dos parentes no Paraná.