5 de nov. de 2011

Leitura diária - Postagem 37/37

CAPÍTULO CXLV



O Regresso

Ora, foi já nesta casa que um dia, estando a vestir-me para almoçar, recebi um

cartão com este nome:

EZEQUIEL A. DE SANTIAGO

– A pessoa está aí? perguntei ao criado.

– Sim, senhor; ficou esperando.

Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns dez ou quinze minutos na sala. Só depois é

que me lembrou que cumpria ter certo alvoroço e correr, abraçá-lo, falar-lhe na mãe. A

mãe, – creio que ainda não disse que estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na

velha Suíça. Acabei de vestir-me às pressas. Quando saí do quarto, tomei ares de pai,

um pai entre manso e crespo, metade Dom Casmurro. Ao entrar na sala, dei com um

rapaz, de costas, mirando o busto de Massinissa, pintado na parede. Vim cauteloso, e

não fiz rumor. Não obstante, ouviu-me os passos, e voltou-se depressa. Conheceu-me

pelos retratos e correu para mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo

e jovem companheiro do seminário de S. José, um pouco mais baixo, menos cheio de

corpo e, salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. Trajava à

moderna, naturalmente, e as maneiras eram diferentes, mas o aspecto geral reproduzia a

pessoa morta. Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar. Era o meu comborço; era o

filho de seu pai. Vestia de luto pela mãe; eu também estava de preto. Sentamo-nos.

– Papai não faz diferença dos últimos retratos, disse-me ele.

A voz era a mesma de Escobar, o sotaque era afrancesado. Expliquei-lhe que

realmente pouco diferia do que era, e comecei um interrogatório para ter menos que

falar e dominar assim a minha emoção. Mas isto mesmo dava animação à cara dele, e o

meu colega do seminário ia ressurgindo cada vez mais do cemitério. Ei-lo aqui, diante

de mim, com igual riso e maior respeito; total, o mesmo obséquio e a mesma graça.

Ansiava por ver-me. A mãe falava muito em mim, louvando-me extraordinariamente,

como o homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido.

– Morreu bonita, concluiu.

– Vamos almoçar.

Se pensas que o almoço foi amargo, enganas-te. Teve seus minutos de

aborrecimento, é verdade; a princípio doeu-me que Ezequiel não fosse realmente meu

filho, que me não completasse e continuasse. Se o rapaz tem saído à mãe, eu acabava

crendo tudo, tanto mais facilmente quanto que ele parecia haver-me deixado na véspera,

evocava a meninice, cenas e palavras, a ida para o colégio...

– Papai ainda se lembra quando me levou para o colégio? perguntou rindo.

– Pois não hei de lembrar-me?

– Era na Lapa; eu ia desesperado, e papai não parava, dava-me cada puxão, e eu

com as perninhas... Sim, senhor, aceito.

Estendeu o copo ao vinho que eu lhe oferecia, bebeu um gole, e continuou a

comer. Escobar comia assim também, com a cara metida no prato. Contou-me a vida na

Europa, os estudos, particularmente os de arqueologia, que era a sua paixão. Falava da

antigüidade com amor, contava o Egito e os seus milhares de séculos, sem se perder nos

algarismos; tinha a cabeça aritmética do pai. Eu, posto que a idéia da paternidade do

outro me estivesse já familiar, não gostava da ressurreição. Às vezes, fechava os olhos

para não ver gestos nem nada, mas o diabrete falava e ria, e o defunto falava e ria por

ele.

Não havendo remédio senão ficar com ele, fiz-me pai deveras. A idéia de que

pudesse ter visto alguma fotografia de Escobar, que Capitu por descuido levasse

consigo, não me acudiu, nem, se acudisse, persistiria. Ezequiel cria em mim, como na

mãe. Se fosse vivo José Dias, acharia nele a minha própria pessoa. Prima Justina quis

vê-lo, mas, estando enferma, pediu-me que o levasse lá. Conhecia aquela parenta. Creio

que o desejo de ver Ezequiel era para o fim de verificar no moço o debuxo que

porventura houvesse achado no menino. Seria um regalo último; atalhei-o a tempo.

– Está muito mal, disse eu a Ezequiel que queria ir vê-la, qualquer emoção pode

trazer-lhe a morte. Iremos vê-la, quando ficar melhor.

Não fomos; a morte levou-a dentro de poucos dias. Ela descansa no Senhor ou

como quer que seja. Ezequiel viu-lhe a cara no caixão e não a conheceu, nem podia, tão

outra a fizeram os anos e a morte. No caminho para o cemitério, iam-lhe lembrando

uma porção de coisas, alguma rua, alguma torre, um trecho de praia, e era todo alegria.

Assim acontecia sempre que voltava para casa, ao fim do dia; contava-me as

recordações que ia recebendo das ruas e das casas. Admirava-se que muitas destas

fossem as mesmas que ele deixara, como se as casas morressem meninas.

Ao cabo de seis meses, Ezequiel falou-me em uma viagem à Grécia, ao Egito, e

à Palestina, viagem científica, promessa feita a alguns amigos.

– De que sexo? perguntei rindo.

Sorriu vexado, e respondeu-me que as mulheres eram criaturas tão da moda e do dia que nunca

haviam de entender uma ruína de trinta séculos. Eram dois colegas da universidade. Prometi-lhe recursos,

e dei-lhe logo os primeiros dinheiros precisos. Comigo disse que uma das conseqüências dos amores

furtivos do pai era pagar eu as arqueologias do filho; antes lhe pagasse a lepra... Quando esta idéia me

atravessou o cérebro, senti-me tão cruel e perverso que peguei no rapaz, e quis apertá-lo ao coração, mas

recuei; encarei-o depois, como se faz a um filho de verdade; os olhos que ele me deitou foram ternos e

agradecidos.



CAPÍTULO CXLVI

Não Houve Lepra

Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas, sejam velhas ou

novas. Onze meses depois, Ezequiel morreu de febre tifóide, e foi enterrado nas

imediações de Jerusalém, onde os dois amigos da universidade lhe levantaram um

túmulo com esta inscrição, tirada do profeta Ezequiel, em grego. “Tu eras perfeito nos

teus caminhos”. Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o desenho da sepultura,

a conta de despesas e o resto do dinheiro que ele levava; pagaria o triplo para não tornar

a vê-lo.

Como quisesse verificar o texto, consultei a minha Vulgata, e achei que era

exato, mas tinha ainda um completo; “Tu eras perfeito nos teus caminhos, desde o dia

da tua criação.” Parei e perguntei calado: “Quando seria o dia da criação de Ezequiel?”

Ninguém me respondeu. Eis aí mais um mistério para ajuntar aos tantos deste mundo.

Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro.



CAPÍTULO CXLVII

A Exposição Retrospectiva

Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou aí para

um canto como uma flor lívida e solitária. Não lhe dei essa cor ou descor. Vivi o melhor

que pude sem me faltarem amigas que me consolassem da primeira. Caprichos de pouca

dura, é verdade. Elas é que me deixavam como pessoas que assistem a uma exposição

retrospectiva, e, ou se fartam de vê-la, ou a luz da sala esmorece. Uma só dessas visitas

tinha carro à porta e cocheiro de libré. As outras iam modestamente, calcante pede, e, se

chovia, eu é que ia buscar um carro de praça, e as metia dentro, com grandes

despedidas, e maiores recomendações.

– Levas o catálogo?

– Levo; até amanhã.

– Até amanhã.

Não voltavam mais. Eu ficava à porta, esperando, ia até a esquina, espiava,

consultava o relógio, e não via nada nem ninguém. Então, se aparecia outra visita, davalhe

o braço, entrávamos, mostrava-lhe as paisagens, os quadros históricos ou de gênero,

uma aquarela, um pastel, uma gouache, e também esta cansava, e ia embora com o

catálogo na mão...



CAPÍTULO CXLVIII

E Bem, e o Resto?

Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira

amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de

cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto é

saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se foi

mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse

dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. I: “Não tenhas ciúmes

de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti.”

Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina,

hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.

E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o

resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão

extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e

enganando-me... A terra lhes seja leve! Vamos à História dos Subúrbios.

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