CAPÍTULO CXXIX
A D. Sancha
D. Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até aqui,
abandone o resto. Basta fechá-lo; melhor será queimá-lo, para lhe não dar tentação e
abri-lo outra vez. Se, apesar do aviso, quiser ir até o fim, a culpa é sua; não respondo
pelo mal que receber. O que já lhe tiver feito, contando os gestos daquele sábado, esse
acabou, uma vez que os acontecimentos, e eu com eles, desmentimos a minha ilusão;
mas o que agora a alcançar, esse é indelével. Não, amiga minha, não leia mais. Vá
envelhecendo, sem marido nem filha, que eu faço a mesma coisa, e é ainda o melhor
que se pode fazer depois da mocidade. Um dia, iremos daqui até a porta do céu, onde
nos encontraremos renovados, como as plantas novas, come piante novelle,
Rinovellate di novelle fronde.
O resto em Dante.
CAPÍTULO CXXX
Um Dia...
Porquanto um dia Capitu quis saber o que é que me fazia andar calado e
aborrecido. E propôs-me a Europa, Minas, Petrópolis, uma série de bailes, mil desses
remédios aconselhados aos melancólicos. Eu não sabia que lhe respondesse; recusei as
diversões. Como insistisse, repliquei-lhe que os meus negócios andavam mal. Capitu
sorriu para animar-me. E que tinha que andassem mal? Tornariam a andar bem, e até lá
as jóias, os objetos de algum valor seriam vendidos, e iríamos residir em algum beco.
Viveríamos sossegados e esquecidos; depois tornaríamos à tona da água. A ternura com
que me disse isto era de comover as pedras. Pois nem assim. Respondi-lhe secamente
que não era preciso vender nada. Deixei-me estar calado e aborrecido. Ela propôs-me
jogar cartas ou damas, um passeio a pé, uma visita a Matacavalos; e, como eu não
aceitasse nada, foi para a sala, abriu o piano, e começou a tocar; eu aproveitei a
ausência, peguei do chapéu e saí.
...Perdão, mas este capítulo devia ser precedido de outro, em que contasse um incidente, ocorrido
poucas semanas antes, dois meses depois da partida de Sancha. Vou escrevê-lo; podia antepô-lo a este,
antes de mandar o livro ao prelo, mas custa muito alterar o número das páginas; vai assim mesmo, depois
a narração seguirá até o fim. Demais, é curto.
CAPÍTULO CXXXI
Anterior ao Anterior
Foi o caso que a minha vida era outra vez doce e plácida, a banca do advogado
rendia-me bastante. Capitu estava mais bela, Ezequiel ia crescendo. Começava o ano de
1872.
– Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita?
perguntou-me Capitu. Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto
Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado de papai, não precisa revirar
os olhos, assim, assim...
Era depois de jantar, estávamos ainda à mesa, Capitu brincava com o filho, ou
ele com ela, ou um com outro, porque, em verdade, queriam-se muito, mas é também
certo que ele me queria ainda mais a mim. Aproximei-me de Ezequiel, achei que Capitu
tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não me pareceram esquisitos por isso.
Afinal não haveria mais que meia dúzia de expressões no mundo, e muitas semelhanças
se dariam naturalmente. Ezequiel não entendeu nada, olhou espantado para ela e para
mim, e afinal saltou-me ao colo:
– Vamos passear, papai?
– Logo, meu filho.
Capitu, alheia a ambos, fitava agora a outra borda da mesa; mas, dizendo-lhe eu que, na beleza,
os olhos de Ezequiel saíam aos da mãe, Capitu sorriu, abanando a cabeça com um ar que nunca achei em
mulher alguma, provavelmente porque não gostei tanto das outras. As pessoas valem o que vale a afeição
da gente, e é daí que mestre Povo tirou aquele adágio que quem o feio ama bonito lhe parece. Capitu tinha
meia dúzia de gestos únicos na terra. Aquele entrou-me pela alma dentro. Assim fica explicado que eu
corresse à minha esposa e amiga e lhe enchesse a cara de beijos; mas este outro incidente não é
radicalmente necessário à compreensão do capítulo passado e dos futuros; fiquemos nos olhos de
Ezequiel.
CAPÍTULO CXXXII
O Debuxo e o Colorido
Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iamse
apurando com o tempo. Eram como um debuxo primitivo que o artista vai enchendo
e colorindo aos poucos, e a figura entra a ver, sorrir, palpitar, falar quase, até que a
família pendura o quadro na parede, em memória do que foi e já não pode ser. Aqui
podia ser e era. O costume valeu muito contra o efeito da mudança; mas a mudança fezse,
não à maneira de teatro, fez-se como a manhã que aponta vagarosa, primeiro que se
possa ler uma carta, depois lê-se a carta na rua, em casa, no gabinete, sem abrir as
janelas; e a luz coada pelas persianas basta a distinguir as letras. Li a carta, mal a
princípio e não toda, depois fui lendo melhor. Fugia-lhe, é certo, metia o papel no bolso,
corria a casa, fechava-me, não abria as vidraças, chegava a fechar os olhos. Quando
novamente abria os olhos e a carta, a letra era clara e a notícia claríssima.
Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se
sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedirme
à noite a bênção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e
praticava-as, para me não descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse
dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que
ninguém. Quando nem mãe nem filho estavam comigo o meu desespero era grande, e eu
jurava matá-los a ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo da morte
todos os minutos da vida embaraçada e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via
no alto da escada a criaturinha que me queria e esperava, ficava desarmado e diferia o
castigo de um dia para outro.
O que se passava entre mim e Capitu naqueles dias sombrios, não se notará aqui,
por ser tão miúdo e repetido, e já tão tarde que não se poderá dizê-lo sem falha nem
canseira. Mas o principal irá. E o principal é que os nossos temporais eram agora
contínuos e terríveis. Antes de descoberta aquela má terra da verdade, tivemos outros de
pouca dura; não tardava que o céu se fizesse azul, o sol claro e o mar chão, por onde
abríamos novamente as velas que nos levavam às ilhas e costas mais belas do universo,
até que outro pé de vento desbaratava tudo, e nós, postos à capa, esperávamos outra
bonança, que não era tardia nem dúbia, antes total, próxima e firme.
Releva-me estas metáforas; cheiram ao mar e à maré que deram morte ao meu
amigo e comborço Escobar. Cheiram também aos olhos de ressaca de Capitu. Assim,
posto sempre fosse homem de terra, conto aquela parte da minha vida, como um marujo
contaria o seu naufrágio.
Já entre nós só faltava dizer a palavra última; nós a líamos, porém, nos olhos um
do outro, vibrante e decisiva, e sempre que Ezequiel vinha para nós não fazia mais que
separar-nos. Capitu propôs metê-lo em um colégio, donde só viesse aos sábados; custou
muito ao menino aceitar esta situação.
– Quero ir com papai! Papai há de ir comigo! bradava ele.
Fui eu mesmo que o levei um dia de manhã, uma segunda-feira. Era no antigo
Largo da Lapa, perto da nossa casa. Levei-o a pé, pela mão, como levara o ataúde do
outro. O pequeno ia chorando e fazendo perguntas a cada passo, se voltaria para casa, e
quando, e se eu iria vê-lo...
– Vou.
– Papai não vai!
– Vou sim.
– Jura, papai!
– Pois sim.
– Papai não diz que jura.
– Pois juro.
E lá o levei e deixei. A ausência temporária não atalhou o mal, e toda a arte fina
de Capitu para fazê-lo atenuar, ao menos, foi como se não fosse; eu sentia-me cada vez
pior. A mesma situação nova agravou a minha paixão. Ezequiel vivia agora mais fora da
minha vista; mas a volta dele, ao fim das semanas, ou pelo descostume em que eu
ficava, ou porque o tempo fosse andando e completando a semelhança, era a volta de
Escobar mais vivo e ruidoso. Até a voz, dentro de pouco, já me parecia a mesma. Aos
sábados, buscava não jantar em casa e só entrar quando ele estivesse dormindo; mas não
escapava ao domingo, no gabinete, quando que me achava entre jornais e autos.
Ezequiel entrava turbulento, expansivo, cheio de riso e de amor, porque o demo do
pequeno cada vez morria mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora uma aversão
que mal podia disfarçar, tanto a ela como aos outros. Não podendo encobrir
inteiramente esta disposição moral, cuidava de me não fazer encontradiço com ele, ou
só o menos que pudesse; ora tinha trabalho que me obrigava a fechar o gabinete, ora
saía ao domingo para ir passear pela cidade e arrabaldes o meu mal secreto.
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