1 de nov. de 2011

Leitura diária - Postagem 33/37

CAPÍTULO CXXIX



A D. Sancha

D. Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até aqui,

abandone o resto. Basta fechá-lo; melhor será queimá-lo, para lhe não dar tentação e

abri-lo outra vez. Se, apesar do aviso, quiser ir até o fim, a culpa é sua; não respondo

pelo mal que receber. O que já lhe tiver feito, contando os gestos daquele sábado, esse

acabou, uma vez que os acontecimentos, e eu com eles, desmentimos a minha ilusão;

mas o que agora a alcançar, esse é indelével. Não, amiga minha, não leia mais. Vá

envelhecendo, sem marido nem filha, que eu faço a mesma coisa, e é ainda o melhor

que se pode fazer depois da mocidade. Um dia, iremos daqui até a porta do céu, onde

nos encontraremos renovados, como as plantas novas, come piante novelle,

Rinovellate di novelle fronde.

O resto em Dante.



CAPÍTULO CXXX

Um Dia...

Porquanto um dia Capitu quis saber o que é que me fazia andar calado e

aborrecido. E propôs-me a Europa, Minas, Petrópolis, uma série de bailes, mil desses

remédios aconselhados aos melancólicos. Eu não sabia que lhe respondesse; recusei as

diversões. Como insistisse, repliquei-lhe que os meus negócios andavam mal. Capitu

sorriu para animar-me. E que tinha que andassem mal? Tornariam a andar bem, e até lá

as jóias, os objetos de algum valor seriam vendidos, e iríamos residir em algum beco.

Viveríamos sossegados e esquecidos; depois tornaríamos à tona da água. A ternura com

que me disse isto era de comover as pedras. Pois nem assim. Respondi-lhe secamente

que não era preciso vender nada. Deixei-me estar calado e aborrecido. Ela propôs-me

jogar cartas ou damas, um passeio a pé, uma visita a Matacavalos; e, como eu não

aceitasse nada, foi para a sala, abriu o piano, e começou a tocar; eu aproveitei a

ausência, peguei do chapéu e saí.

...Perdão, mas este capítulo devia ser precedido de outro, em que contasse um incidente, ocorrido

poucas semanas antes, dois meses depois da partida de Sancha. Vou escrevê-lo; podia antepô-lo a este,

antes de mandar o livro ao prelo, mas custa muito alterar o número das páginas; vai assim mesmo, depois

a narração seguirá até o fim. Demais, é curto.



CAPÍTULO CXXXI

Anterior ao Anterior

Foi o caso que a minha vida era outra vez doce e plácida, a banca do advogado

rendia-me bastante. Capitu estava mais bela, Ezequiel ia crescendo. Começava o ano de

1872.

– Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita?

perguntou-me Capitu. Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto

Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado de papai, não precisa revirar

os olhos, assim, assim...

Era depois de jantar, estávamos ainda à mesa, Capitu brincava com o filho, ou

ele com ela, ou um com outro, porque, em verdade, queriam-se muito, mas é também

certo que ele me queria ainda mais a mim. Aproximei-me de Ezequiel, achei que Capitu

tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não me pareceram esquisitos por isso.

Afinal não haveria mais que meia dúzia de expressões no mundo, e muitas semelhanças

se dariam naturalmente. Ezequiel não entendeu nada, olhou espantado para ela e para

mim, e afinal saltou-me ao colo:

– Vamos passear, papai?

– Logo, meu filho.

Capitu, alheia a ambos, fitava agora a outra borda da mesa; mas, dizendo-lhe eu que, na beleza,

os olhos de Ezequiel saíam aos da mãe, Capitu sorriu, abanando a cabeça com um ar que nunca achei em

mulher alguma, provavelmente porque não gostei tanto das outras. As pessoas valem o que vale a afeição

da gente, e é daí que mestre Povo tirou aquele adágio que quem o feio ama bonito lhe parece. Capitu tinha

meia dúzia de gestos únicos na terra. Aquele entrou-me pela alma dentro. Assim fica explicado que eu

corresse à minha esposa e amiga e lhe enchesse a cara de beijos; mas este outro incidente não é

radicalmente necessário à compreensão do capítulo passado e dos futuros; fiquemos nos olhos de

Ezequiel.



CAPÍTULO CXXXII

O Debuxo e o Colorido

Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iamse

apurando com o tempo. Eram como um debuxo primitivo que o artista vai enchendo

e colorindo aos poucos, e a figura entra a ver, sorrir, palpitar, falar quase, até que a

família pendura o quadro na parede, em memória do que foi e já não pode ser. Aqui

podia ser e era. O costume valeu muito contra o efeito da mudança; mas a mudança fezse,

não à maneira de teatro, fez-se como a manhã que aponta vagarosa, primeiro que se

possa ler uma carta, depois lê-se a carta na rua, em casa, no gabinete, sem abrir as

janelas; e a luz coada pelas persianas basta a distinguir as letras. Li a carta, mal a

princípio e não toda, depois fui lendo melhor. Fugia-lhe, é certo, metia o papel no bolso,

corria a casa, fechava-me, não abria as vidraças, chegava a fechar os olhos. Quando

novamente abria os olhos e a carta, a letra era clara e a notícia claríssima.

Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se

sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedirme

à noite a bênção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e

praticava-as, para me não descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse

dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que

ninguém. Quando nem mãe nem filho estavam comigo o meu desespero era grande, e eu

jurava matá-los a ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo da morte

todos os minutos da vida embaraçada e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via

no alto da escada a criaturinha que me queria e esperava, ficava desarmado e diferia o

castigo de um dia para outro.

O que se passava entre mim e Capitu naqueles dias sombrios, não se notará aqui,

por ser tão miúdo e repetido, e já tão tarde que não se poderá dizê-lo sem falha nem

canseira. Mas o principal irá. E o principal é que os nossos temporais eram agora

contínuos e terríveis. Antes de descoberta aquela má terra da verdade, tivemos outros de

pouca dura; não tardava que o céu se fizesse azul, o sol claro e o mar chão, por onde

abríamos novamente as velas que nos levavam às ilhas e costas mais belas do universo,

até que outro pé de vento desbaratava tudo, e nós, postos à capa, esperávamos outra

bonança, que não era tardia nem dúbia, antes total, próxima e firme.

Releva-me estas metáforas; cheiram ao mar e à maré que deram morte ao meu

amigo e comborço Escobar. Cheiram também aos olhos de ressaca de Capitu. Assim,

posto sempre fosse homem de terra, conto aquela parte da minha vida, como um marujo

contaria o seu naufrágio.

Já entre nós só faltava dizer a palavra última; nós a líamos, porém, nos olhos um

do outro, vibrante e decisiva, e sempre que Ezequiel vinha para nós não fazia mais que

separar-nos. Capitu propôs metê-lo em um colégio, donde só viesse aos sábados; custou

muito ao menino aceitar esta situação.

– Quero ir com papai! Papai há de ir comigo! bradava ele.

Fui eu mesmo que o levei um dia de manhã, uma segunda-feira. Era no antigo

Largo da Lapa, perto da nossa casa. Levei-o a pé, pela mão, como levara o ataúde do

outro. O pequeno ia chorando e fazendo perguntas a cada passo, se voltaria para casa, e

quando, e se eu iria vê-lo...

– Vou.

– Papai não vai!

– Vou sim.

– Jura, papai!

– Pois sim.

– Papai não diz que jura.

– Pois juro.

E lá o levei e deixei. A ausência temporária não atalhou o mal, e toda a arte fina

de Capitu para fazê-lo atenuar, ao menos, foi como se não fosse; eu sentia-me cada vez

pior. A mesma situação nova agravou a minha paixão. Ezequiel vivia agora mais fora da

minha vista; mas a volta dele, ao fim das semanas, ou pelo descostume em que eu

ficava, ou porque o tempo fosse andando e completando a semelhança, era a volta de

Escobar mais vivo e ruidoso. Até a voz, dentro de pouco, já me parecia a mesma. Aos

sábados, buscava não jantar em casa e só entrar quando ele estivesse dormindo; mas não

escapava ao domingo, no gabinete, quando que me achava entre jornais e autos.

Ezequiel entrava turbulento, expansivo, cheio de riso e de amor, porque o demo do

pequeno cada vez morria mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora uma aversão

que mal podia disfarçar, tanto a ela como aos outros. Não podendo encobrir

inteiramente esta disposição moral, cuidava de me não fazer encontradiço com ele, ou

só o menos que pudesse; ora tinha trabalho que me obrigava a fechar o gabinete, ora

saía ao domingo para ir passear pela cidade e arrabaldes o meu mal secreto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário