31 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 32/37

CAPÍTULO CXXV



Uma Comparação

Príamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquele que lhe matou o filho.

Homero é que relata isto, e é um bom autor, não obstante contá-lo em verso, mas há narrações exatas em

verso, e até mau verso. Compara tu a situação de Príamo com a minha; eu acabava de louvar as virtudes

do homem que recebera, defunto, aqueles olhos... É impossível que algum Homero não tirasse da minha

situação muito melhor efeito, ou quando menos, igual. Nem digas que nos faltam Homeros, pela causa

apontada em Camões; não, senhor, faltam-nos, é certo, mas é porque os Príamos procuram a sombra e o

silêncio. As lágrimas, se as têm, são enxugadas atrás da porta, para que as caras apareçam limpas e

serenas; os discursos são antes de alegria que de melancolia, e tudo passa como se Aquiles não matasse

Heitor.



CAPÍTULO CXXVI

Cismando

Pouco depois de sair do cemitério, rasguei o discurso e deitei os pedaços pela

portinhola fora, sem embargo dos esforços de José Dias para impedi-lo.

– Não presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentação de dá-lo a

imprimir, fica já destruído de uma vez. Não presta, não vale nada.

José Dias demonstrou longamente o contrário, depois elogiou o enterro, e por

último fez o panegírico do morto, uma grande alma, espírito ativo, coração reto, amigo,

bom amigo, digno da esposa amantíssima que Deus lhe dera...

Neste ponto do discurso, deixei-o falar sozinho e peguei a cismar comigo. O que

cismei foi tão escuro e confuso que não me deixou tomar pé. No Catete mandei parar o

carro, disse a José Dias que fosse buscar as senhoras ao Flamengo e as levasse para

casa; eu iria a pé.

– Mas...

– Vou fazer uma visita.

A razão disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que fosse adequada

ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas; estas iriam pausadas ou não,

podiam afrouxar o passo, parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabeça cismasse à

vontade. Fui andando e cismando. Tinha já comparado o gesto de Sancha na véspera e o

desespero daquele dia; eram inconciliáveis. A viúva era realmente amantíssima. Assim

se desvaneceu de todo a ilusão da minha vaidade. Não seria o mesmo caso de Capitu?

Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajuntamento de pessoas que

devia naturalmente impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que

aqui vai por ordem lógica e dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de idéias e

sensações, graças aos solavancos do carro e às interrupções de José Dias. Agora, porém,

raciocinava e evocava claro e bem. Concluí de mim para mim que era a antiga paixão

que me ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre.

Quando cheguei a esta conclusão final, chegava também à porta de casa, mas voltei para trás, e

subi outra vez a Rua do Catete. Eram as dúvidas que me afligiam ou a necessidade de afligir Capitu com a

minha grande demora? Ponhamos que eram as duas causas; andei largo espaço, até que me senti sossegar,

e endireitei para a casa. Batiam oito horas numa padaria.



CAPÍTULO CXXVII

O Barbeiro

Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a rabeca e

não tocava inteiramente mal. Na ocasião em que ia passando, executava não sei que

peça. Parei na calçada a ouvi-lo (tudo são pretextos a um coração agoniado), ele viu-me,

e continuou a tocar. Não atendeu a um freguês, e logo a outro, que ali foram a despeito

da hora e de ser domingo, confiar-lhe as caras à navalha. Perdeu-os sem perder uma

nota; ia tocando para mim. Esta consideração fez-me chegar francamente à porta da

loja, voltado para ele. Ao fundo, levantando a cortina de chita que fechava o interior da

casa, vi apontar uma moça trigueira, vestido claro, flor no cabelo. Era a mulher dele;

creio que me descobriu de dentro, e veio agradecer-me com a presença o favor que eu

fazia ao marido. Se me não engano, chegou a dizê-lo com os olhos. Quanto ao marido,

tocava agora com mais calor; sem ver a mulher, sem ver fregueses, grudava a face ao

instrumento, passava a alma ao arco, e tocava, tocava...

Divina arte! Ia-se formando um grupo, deixei a porta da loja e vim andando para casa; enfiei

pelo corredor e subi as escadas sem estrépito. Nunca me esqueceu o caso deste barbeiro, ou por estar

ligado a um momento grave da minha vida, ou por esta máxima, que os compiladores podem tirar daqui e

inserir nos compêndios de escola. A máxima é que a gente esquece devagar as boas ações que pratica, e

verdadeiramente não as esquece nunca. Pobre barbeiro! Perdeu duas barbas naquela noite, que eram o pão

do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um transeunte. Supõe agora que este, em vez de ir-se embora,

como eu fui, ficava à porta a ouvi-lo e a namorar-lhe a mulher; então é que ele, todo arco, todo rabeca,

tocaria desesperadamente. Divina arte!



CAPÍTULO CXXVIII

Punhado de Sucessos

Como ia dizendo, subi as escadas sem estrépito, empurrei a cancela, que estava

apenas encostada, e dei com prima Justina e José Dias jogando cartas na saleta próxima.

Capitu levantou-se do canapé e veio a mim. O rosto dela era agora sereno e puro. Os

outros suspenderam o jogo, e todos falamos do desastre e da viúva. Capitu censurou a

imprudência de Escobar, e não dissimulou a tristeza que lhe trazia a dor da amiga.

Perguntei-lhe por que não ficara com Sancha aquela noite.

– Tem lá muita gente; ainda assim ofereci-me, mas não quis. Também lhe disse

que era melhor vir para cá, e passar aqui uns dias conosco.

– Também não quis?

– Também não.

– Entretanto, a vista do mar há de ser-lhe penosa, todas as manhãs, ponderou

José Dias, e não sei como poderá...

– Mas passa; o que é que não passa? atalhou prima Justina.

E como em torno desta idéia, começássemos uma troca de palavras, Capitu saiu

para ver se o filho dormia. Ao passar pelo espelho, concertou os cabelos tão demoradamente

que pareceria afetação, se não soubéssemos que ela era muito amiga de si.

Quando tornou trazia os olhos vermelhos; disse-nos que, ao mirar o filho dormindo,

pensara na filhinha de Sancha, e na aflição da viúva. E, sem se lhe dar das visitas, nem

reparar se havia algum criado, abraçou-me e disse-me que, se quisesse pensar nela, era

preciso pensar primeiro na minha vida. José Dias achou a frase “líndíssima”, e

perguntou a Capitu por que é que não fazia versos. Tentei meter o caso à bulha, e assim

a noite.

No dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, não que quisesse dálo

a imprimir, mas era lembrança do finado. Pense em recompô-lo, mas só achei frases

soltas, que uma vez juntas não tinham sentido. Também pensei em fazer outro, mas era

já difícil, e podia ser apanhado em falso pelos que me tinham ouvido no cemitério.

Quanto a recolher os pedacinhos de papel deitados à rua, era tarde; estariam já varridos.

Inventariei as lembranças de Escobar, livros, um tinteiro de bronze, uma bengala

de marfim, um pássaro, o álbum de Capitu, duas paisagens do Paraná e outras. Também

ele as possuía de minha mão. Vivemos assim a trocar memórias e regalos, ora em dia de

anos, ora sem razão particular. Tudo isso me empanava os olhos... Vieram os jornais do

dia: davam notícia do desastre e da morte de Escobar, os estudos e os negócios deste, as

qualidades pessoais, a simpatia do comércio, e também falavam dos bens deixados, da

mulher e da filha. Tudo isso foi na segunda-feira. Na terça-feira foi aberto o testamento,

que me nomeava segundo testamenteiro; o primeiro lugar cabia à mulher. Não me

deixava nada, mas as palavras que me escrevera em carta separada eram sublimes de

amizade e estima. Capitu desta vez chorou muito; mas compôs-se depressa.

Testamento, inventário, tudo andou quase tão depressa como aqui vai dito. Ao cabo de pouco

tempo, Sancha retirou-se para a casa dos parentes no Paraná.

Nenhum comentário:

Postar um comentário