CAPÍTULO CXXV
Uma Comparação
Príamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquele que lhe matou o filho.
Homero é que relata isto, e é um bom autor, não obstante contá-lo em verso, mas há narrações exatas em
verso, e até mau verso. Compara tu a situação de Príamo com a minha; eu acabava de louvar as virtudes
do homem que recebera, defunto, aqueles olhos... É impossível que algum Homero não tirasse da minha
situação muito melhor efeito, ou quando menos, igual. Nem digas que nos faltam Homeros, pela causa
apontada em Camões; não, senhor, faltam-nos, é certo, mas é porque os Príamos procuram a sombra e o
silêncio. As lágrimas, se as têm, são enxugadas atrás da porta, para que as caras apareçam limpas e
serenas; os discursos são antes de alegria que de melancolia, e tudo passa como se Aquiles não matasse
Heitor.
CAPÍTULO CXXVI
Cismando
Pouco depois de sair do cemitério, rasguei o discurso e deitei os pedaços pela
portinhola fora, sem embargo dos esforços de José Dias para impedi-lo.
– Não presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentação de dá-lo a
imprimir, fica já destruído de uma vez. Não presta, não vale nada.
José Dias demonstrou longamente o contrário, depois elogiou o enterro, e por
último fez o panegírico do morto, uma grande alma, espírito ativo, coração reto, amigo,
bom amigo, digno da esposa amantíssima que Deus lhe dera...
Neste ponto do discurso, deixei-o falar sozinho e peguei a cismar comigo. O que
cismei foi tão escuro e confuso que não me deixou tomar pé. No Catete mandei parar o
carro, disse a José Dias que fosse buscar as senhoras ao Flamengo e as levasse para
casa; eu iria a pé.
– Mas...
– Vou fazer uma visita.
A razão disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que fosse adequada
ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas; estas iriam pausadas ou não,
podiam afrouxar o passo, parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabeça cismasse à
vontade. Fui andando e cismando. Tinha já comparado o gesto de Sancha na véspera e o
desespero daquele dia; eram inconciliáveis. A viúva era realmente amantíssima. Assim
se desvaneceu de todo a ilusão da minha vaidade. Não seria o mesmo caso de Capitu?
Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajuntamento de pessoas que
devia naturalmente impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que
aqui vai por ordem lógica e dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de idéias e
sensações, graças aos solavancos do carro e às interrupções de José Dias. Agora, porém,
raciocinava e evocava claro e bem. Concluí de mim para mim que era a antiga paixão
que me ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre.
Quando cheguei a esta conclusão final, chegava também à porta de casa, mas voltei para trás, e
subi outra vez a Rua do Catete. Eram as dúvidas que me afligiam ou a necessidade de afligir Capitu com a
minha grande demora? Ponhamos que eram as duas causas; andei largo espaço, até que me senti sossegar,
e endireitei para a casa. Batiam oito horas numa padaria.
CAPÍTULO CXXVII
O Barbeiro
Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a rabeca e
não tocava inteiramente mal. Na ocasião em que ia passando, executava não sei que
peça. Parei na calçada a ouvi-lo (tudo são pretextos a um coração agoniado), ele viu-me,
e continuou a tocar. Não atendeu a um freguês, e logo a outro, que ali foram a despeito
da hora e de ser domingo, confiar-lhe as caras à navalha. Perdeu-os sem perder uma
nota; ia tocando para mim. Esta consideração fez-me chegar francamente à porta da
loja, voltado para ele. Ao fundo, levantando a cortina de chita que fechava o interior da
casa, vi apontar uma moça trigueira, vestido claro, flor no cabelo. Era a mulher dele;
creio que me descobriu de dentro, e veio agradecer-me com a presença o favor que eu
fazia ao marido. Se me não engano, chegou a dizê-lo com os olhos. Quanto ao marido,
tocava agora com mais calor; sem ver a mulher, sem ver fregueses, grudava a face ao
instrumento, passava a alma ao arco, e tocava, tocava...
Divina arte! Ia-se formando um grupo, deixei a porta da loja e vim andando para casa; enfiei
pelo corredor e subi as escadas sem estrépito. Nunca me esqueceu o caso deste barbeiro, ou por estar
ligado a um momento grave da minha vida, ou por esta máxima, que os compiladores podem tirar daqui e
inserir nos compêndios de escola. A máxima é que a gente esquece devagar as boas ações que pratica, e
verdadeiramente não as esquece nunca. Pobre barbeiro! Perdeu duas barbas naquela noite, que eram o pão
do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um transeunte. Supõe agora que este, em vez de ir-se embora,
como eu fui, ficava à porta a ouvi-lo e a namorar-lhe a mulher; então é que ele, todo arco, todo rabeca,
tocaria desesperadamente. Divina arte!
CAPÍTULO CXXVIII
Punhado de Sucessos
Como ia dizendo, subi as escadas sem estrépito, empurrei a cancela, que estava
apenas encostada, e dei com prima Justina e José Dias jogando cartas na saleta próxima.
Capitu levantou-se do canapé e veio a mim. O rosto dela era agora sereno e puro. Os
outros suspenderam o jogo, e todos falamos do desastre e da viúva. Capitu censurou a
imprudência de Escobar, e não dissimulou a tristeza que lhe trazia a dor da amiga.
Perguntei-lhe por que não ficara com Sancha aquela noite.
– Tem lá muita gente; ainda assim ofereci-me, mas não quis. Também lhe disse
que era melhor vir para cá, e passar aqui uns dias conosco.
– Também não quis?
– Também não.
– Entretanto, a vista do mar há de ser-lhe penosa, todas as manhãs, ponderou
José Dias, e não sei como poderá...
– Mas passa; o que é que não passa? atalhou prima Justina.
E como em torno desta idéia, começássemos uma troca de palavras, Capitu saiu
para ver se o filho dormia. Ao passar pelo espelho, concertou os cabelos tão demoradamente
que pareceria afetação, se não soubéssemos que ela era muito amiga de si.
Quando tornou trazia os olhos vermelhos; disse-nos que, ao mirar o filho dormindo,
pensara na filhinha de Sancha, e na aflição da viúva. E, sem se lhe dar das visitas, nem
reparar se havia algum criado, abraçou-me e disse-me que, se quisesse pensar nela, era
preciso pensar primeiro na minha vida. José Dias achou a frase “líndíssima”, e
perguntou a Capitu por que é que não fazia versos. Tentei meter o caso à bulha, e assim
a noite.
No dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, não que quisesse dálo
a imprimir, mas era lembrança do finado. Pense em recompô-lo, mas só achei frases
soltas, que uma vez juntas não tinham sentido. Também pensei em fazer outro, mas era
já difícil, e podia ser apanhado em falso pelos que me tinham ouvido no cemitério.
Quanto a recolher os pedacinhos de papel deitados à rua, era tarde; estariam já varridos.
Inventariei as lembranças de Escobar, livros, um tinteiro de bronze, uma bengala
de marfim, um pássaro, o álbum de Capitu, duas paisagens do Paraná e outras. Também
ele as possuía de minha mão. Vivemos assim a trocar memórias e regalos, ora em dia de
anos, ora sem razão particular. Tudo isso me empanava os olhos... Vieram os jornais do
dia: davam notícia do desastre e da morte de Escobar, os estudos e os negócios deste, as
qualidades pessoais, a simpatia do comércio, e também falavam dos bens deixados, da
mulher e da filha. Tudo isso foi na segunda-feira. Na terça-feira foi aberto o testamento,
que me nomeava segundo testamenteiro; o primeiro lugar cabia à mulher. Não me
deixava nada, mas as palavras que me escrevera em carta separada eram sublimes de
amizade e estima. Capitu desta vez chorou muito; mas compôs-se depressa.
Testamento, inventário, tudo andou quase tão depressa como aqui vai dito. Ao cabo de pouco
tempo, Sancha retirou-se para a casa dos parentes no Paraná.
Nenhum comentário:
Postar um comentário