31 de ago. de 2011

CAPÌTULO XIV

O julgamento.


Chegou o dia. “É hoje”, dizia a manchete do noticia que o Diário Itaguaiensse Trazia com certo destaque. Nela, os leitores eram informados de que “o jovem Francesco Formos de Azevedo representara a nossa cidade numa das disputas culturais mais interessantes dos últimos tempos”.

Com era sábado, papai e mamãe não trabalhavam. Resolveram me acompanhar, apesar de meus pedidos para que eles não fossem. Obviamente, eu estava com maus pressentimentos. Mas eles disseram que queriam estar a meu lado:

- Os pais são para isso – disse papai. – Para estar com os filhos nos momentos difíceis e nos momentos de glória. No seu caso, com toda a certeza o momento difícil vai dar lugar ao momento de glória. E, quando isso acontecer, estaremos lá pra aplaudir.

- Você sabe que eu não estou de acordo com sua posição – acrescentou mamãe -, mas filho é filho. E, a Capitu que me perdoe, também estarei torcendo por você.

Não só meus pais me acompanhariam. Os colegas de escola tinham alugado um ônibus que levaria uns quarenta deles. No mesmo ônibus iriam Jaime e Sandra; aliás, era a primeira que Jaime estava saindo de casa após o acidente.

Fomos, por tanto. Eu me sentia como a vítima que esta sendo entregue ao carrasco. Momento de glória, como dissera papai? Não era o que eu antecipava.

O julgamento seria realizado no cine-teatro Astor, um velho cinema no centro de Santo Inácio, o que, entre parênteses, pareceu-me um lugar mais do que apropriado. Afinal, o cinema é um lugar de dramas, de comédias. E era isto justamente o que viveríamos naquela tarde, um drama, uma comédia, ou as duas coisas.

Quando chegamos ao local, já havia uma fila enorme de gente esperando para entrar. Fomos recebidos pela Valéria, relações publicas da empresa promotora do evento. Uma moça muito simpática: estaria à minha disposição para ajudar em tudo. Levou-me para uma espécie de camarim, onde eu deveria aguardar até a hora de inicio; Um lugar confortável, com poltronas, material para escrever e uma mesa com biscoitos e suco de laranja. Explicou-me como seria o julgamento:

- No papel de juiz, como você sabe, teremos um advogado muito conhecido aqui em Santo Inácio, o doutor Jesuíno Fontes, que aliás já leu Dom Casmurro seis vezes. Segundo ele próprio me disse. O júri, com doze pessoas, também já está apostos. Colocamos urnas na sala para que o público possa votar também... Os jurados vão levar em conta esses votos na decisão final. Enfim, está tudo pronto.

Sorriu:

- Agora só depende de vocês.

Naquele momento entravam no camarim meus dois adversários. Ernesto Gonçalves, o Gênio, era um garoto baixinho, magrinho, com óculos de grossas lentes; vinha acompanhado por membro de sua equipe, dois rapazes e uma menina, todos radiantes e aparentemente certos da vitória. Quanto ao Fuinha, fazia jus ao apelido; tinha uma cara de fuinha, mesmo, de bicho desagradável. O Gênio me cumprimentou efusivamente, mas o olhar que o Fuinha me lançou não antecipava nada de bom.

Entrou o juiz, o doutor Jesuíno Fontes. Era um homem já de idade, cabeleira e barba brancas, de baixa estatura, mas porte majestoso. Saudou-nos afavelmente e passou a explicar as regras do julgamento: cada um de nós teria trinta minutos para apresentar nossos argumentos a favor ou contra a suposta traição de Capitu. Depois haveria um período em que responderíamos a perguntas e debateríamos entre nós. Finalmente o júri e as pessoas presentes no “tribunal” votariam, e ele, o juiz, daria o veredito.

Valéria veio dizer que o público estava impaciente: já eram duas e meia, e o inicio havia sido marcado para as duas. Fomos para o palco. A platéia, entusiasmada, nos recebeu com palmas, gritos, assobios. O doutor Fontes tomou assento à mesa principal, nós três ficamos numa mesa ao lado. Os jurados, doze, estavam sentados em cadeiras numa lateral do palco.

O doutor Fontes abriu os trabalhos. Primeiro fez um resumo de Dom Casmurro e falou sobre a polêmica que o livro sempre suscitara; a seguir disse que, graças ao patrocínio da fabrica de sabonetes, teríamos ali em Santo Inácio um julgamento original em que “três talentosos jovens” (palavras dele) defenderiam seus pontos de vista. Pediu ao público que prestasse atenção e que participasse votando.

Enquanto ele falava, eu olhava para a platéia. O cinema estava cheio, com gente em pé, inclusive. Havia vários fotógrafos, e também uma equipe de tevê, o que me deu um frio na barriga: eu tinha certeza de que estavam ali por causa da carta. Que eu trouxera numa pasta de cartolina, junto com o texto da acusação a Capitu. A pasta, aliás, estava úmida: eu suava abundantemente.

Na platéia, rostos conhecidos: meus pais, o professor Jaime, a professora Sandra, Vitório, Nanda; mas Júlia eu não estava enxergando. O que só fazia aumentar minha ansiedade. Teria ela se recusado a vir? E o que significaria essa recusa? Seria o rompimento definitivo? A possibilidade me angustiava, mas acabou me dando raiva: “se ela quer terminar”, pensei, “que termine de uma vez, que fique com seu amado Vitório, não preciso mais dela”.

Não. Não era verdade. Eu não precisava mais da Ju? Precisava, sim. Precisava desesperadamente. Eu a amava, e aquela ausência chegava a me provocar uma dor física. Tentei tranqüilizar-me; quem sabe tinha acontecido alguma coisa, quem sabe ela adoecera, era muito sujeita a dores de cabeça...

De repente vi, sentado na primeira fila, um homem de óculos escuros e cara impassível, que parecia me mirara atentamente. Por alguma razão aquela figura estranha me deixou inquieto. O correu-me que poderia ser o tal do perito, pronto para se vingar de mim. Eu já estava imaginando aquele homem se levantando e dizendo: “Meritíssimo Juiz, desejo contestar a prova que esta sendo apresentada pelo senhor Francesco Formoso de Azevedo. A suposta carta do Machado de Assis, Meritíssimo, não passa de uma fraude!”. Seria uma vergonha, seria o meu fim... Mas agora era tarde para tomar qualquer providência. O jeito era vencer o medo e ir em frente.

Começaram as apresentações.

O primeiro foi o Gênio.

Fazendo jus ao apelido, mostrou-se brilhante. Os argumentos que listou para provar que Capitu não traíra Bentinho eram os clássicos, aqueles mesmos que tinham surgido na conversa que havíamos tido no salão paroquial, Vitório, Júlia, Nanda e eu. Mas ele os apresentou de forma lógica, numa linguagem refinada; mais, era um orador nato (pelo que sei, hoje é um advogado bem-sucedido). A todo instante era interrompido por aplausos, apesar das advertências do juiz, que chamava atenção do público para a limitação de tempo. Não podia haver dúvida: era o candidato preferencial do pessoal de Santo Inácio.

E aí veio o Fuinha.

Era uma apresentação que eu esperava com muito receio. “o que será que este cara está aprontando?”, eu me perguntava. Mas, para minha surpresa, Fuinha não tinha nenhum truque preparado. Defendeu a idéia de Capitu traíra, sim. Seus argumentos eram bons – afinal, por alguma razão havia sido selecionado -, mas a apresentação não passou do convencional. Ao contrário do Gênio, não era bom orador. Tinha uma voz fanhosa, monótona, falava sem qualquer convicção. Quando terminou, recebeu alguns aplausos e sentou-se, sorrindo sempre.

Aquele sorriso me deixou com a pulga atrás da orelha.

Será que o cara não estava aprontando alguma? E será que não teria algo a ver com a minha própria apresentação, com a carta que eu iria mostrar? Eu olhava o homem de óculos escuros na primeira fila. Se ele fosse o perito, como eu imaginava, e se tivesse se acertado com o fuinha, eu estava bem arranjado. Já podia vê-lo pedindo licença ao juiz ara chamar ao palco alguém capaz de avaliar a autenticidade da prova que eu apresentava. E aí o homem rapidamente viria (não por acaso estava sentado na primeira fila), olharia a carta e proclamaria para o público: “A suposta prova que o senhor Francesco nos traz, Meritíssimo não passa de uma fraude!”. Um golpe espetacular, que poderia inclusive valer ao fuinha muitos votos do júri e do público, e quem sabe até a vitória no julgamento.

Tudo aquilo podia ser fantasia minha, claro. Mas a verdade é que eu ia, mesmo, cometer uma fraude, e agora tinha plena consciência disso. Deus, a que ponto eu tinha sido levado pelo ciúme! Em matéria de ciumeira, eu era muito pior que o Bentinho, e agora me dava conta do tremendo problema que criara para mim mesmo. O meu pânico era tanto que chegava ame sentir mal, tonto, prestes a desmaiar.

O juiz me chamou:

- O senhor Francesco Formoso de Azevedo, por favor.

Lembrou-me de novo o tempo de que eu dispunha, fez um gracejo com o nome Formoso e pediu que eu tomasse o meu lugar na tribuna. E ali estava eu, diante do microfone, a pasta de cartolina nas mãos geladas, úmidas de suor. Diante de mim a imensa platéia, em silêncio, na maior expectativa. “A sorte está lançada”, pensei. Eu iniciara mentindo, terminaria mentindo. Só esperava que meu desespero, minha angustia, minha amargura, dessem impressão de sinceridade, de veracidade. Mentindo? Sim. Eu estaria mentindo. Mas meu sofrimento era autêntico, verdadeiro.

Segundo meus planos, eu deveria começar com uma frase de efeito: “Capitu traiu”. Faria uma pausa, listaria meus argumentos. Nova pausa e eu diria: “Mas há um argumento ainda mais forte que esses, senhores e senhoras. Há uma voz mais convincente do que aminha, senhores e senhoras. É uma voz que vem ecoando desde de um passado longínquo, a voz que traz consigo a autoridade do grande mestre, do autor de Dom Casmurro. A voz de ninguém menos do que Machado de Assis!”. Mais uma pausa, a última, e eu concluiria com voz tronitoante, brandindo a folha de papel: “Sim, senhoras e senhores, é o próprio Machado que nos diz, nesta carta até hoje inédita que Capitu traiu!”. E aí, sempre segundo minha expectativa, palmas, e aplausos, e gritos, e assobios, e os flashes brilhando, e as luzes das câmeras...

Respirei fundo.

E então avistei-a.

Júlia.

Vinha caminhando pelo corredor do cinema, em passos firmes, em minha direção. Olhava-me tranqüila, serena, amorosa. Sim: amorosa. Deus, Júlia nunca me olhara assim, nunca; era como se tivesse guardado todo o seu sentimento para mostrá-lo naquele instante decisivo. Eu agora tinha tanta certeza do seu amor, como tinha certeza de estar vivo.

Júlia veio vindo. Cegou a uns cinco metros do palco, sentou-se no chão e ali ficou a me olhar.

As lágrimas me corriam pelo rosto, em meio ao silêncio tumular que baixara sobre o cinema.

Enxuguei os olhos, abri a pasta de cartolina.

Fechei a pasta de cartolina.

Não, eu não usaria aquilo. Mostrei a pasta ao público.

- Senhoras e senhores, esta pasta contém a acusação que eu faria a Capitolina Pádua, conhecida como Capitu. Eu a acusaria de ter traído seu marido Bento de Albuquerque Santiago, o Bentinho. E eu faria isto, senhoras e senhores, listando argumentos que são de todos conhecidos e que foram agora a pouco expostos por meu adversário Ramão Oswaldo. Argumentos estes previamente refutados, e com brilhantismo, por Ernesto Gonçalves. Até aí estaríamos em terreno conhecido. Mas então, senhor juiz, mas então, senhores jurados, mas então, meus senhores e senhoras, eu, como se costuma dizer, tiraria da manga a carta oculta. Então eu recorreria a meu secreto trunfo. Eu mostraria a vocês uma carta de Machado de Assis, esta carta.

Abria a pasta de cartolina, tirei dali a carta, mostrei-a ao público.

- essa carta, senhores e senhoras, diz que, para o autor do livro, Capitu traiu, sim, Bentinho. E esta carta traz a assinatura do próprio autor do livro, de Machado de Assis.

Interrompi-me; aquilo era demais para mim, uma sobrecarga que eu não podia agüentar. Mas, fazendo um enorme esforço, continuei:

- Só que esta carta infelizmente é falsa. Essa carta foi escrita por mim. Deu trabalho: tive de estudar a caligrafia de Machado de Assis, tive de arranjar papel, tinta e caneta daquela época... Fiz força e o resultado não foi ruim. Mas a carta é uma fraude, minha gente. E eu não vou apresentá-la. Prefiro admitir meu erro. Prefiro ser derrotado.

Júlia olhava-me, as lagrimas correndo por seu rosto. Voz embargada pela emoção, prossegui:

- Decidi não levar adiante a farsa. E sabem por que decidi isso? Porque aqui, neste salão, há uma garota que eu amo e que, agora eu estou seguro disso, me ama também. Uma garota que me prefere derrotado a mentiroso. Para nós, do Colégio Zé Fernandes, seria muito importante vencer; precisamos do dinheiro para construir nossa escola que, como vocês sabem, foi quase destruída por uma avalanche. Mas ganhar o dinheiro assim não dá, gente. Simplesmente não dá. Dinheiro também tem preço, e eu não posso pagar o preço que este dinheiro custa; não posso mentir. Eu não sei o que se passou entre Capitu e Escobar. O que eu sei, com certeza, é que Bentinho foi vitima dessa doença – porque, gente, é uma doença – chamada ciúme. O ciúme, como um monstro de mil tentáculos, aprisionou Bentinho, estragou a vida dele e prejudicou todas as pessoas a seu redor.

Detive-me ofegante, mas agora já não tinha mais dificuldade de falar. Agora as palavras brotavam de dentro de mim, livres, soltas. Olhei a platéia: estava verdadeiramente arrebatada. Papai e mamãe olhavam-me, evidentemente orgulhosos do filho que tinham criado. Orgulhosos estavam também os meus professores, Jaime e Sandra. O Jaime chegou a me acenar fazendo o “V” da vitória. Meus colegas estavam prontos para saltar da cadeira e me aplaudir. E até o pessoal que não torcia por nós, o pessoal do Santo Inácio, parecia impressionado. Respirei fundo e continuei.

- Ciúme é doença, gente. Ciúme, para as pessoas é um desastre, como aquele desastre que atingiu a nossa escola. Só que, no caso do ciúme, o desastre é o resultado de fantasias, de conflitos. Vocês vão me perguntar: e como é que você sabe? Você não é o Machado de Assis. Não, não sou o Machado. Aprendi muito com o livro dele, mas não sou o Machado. Ele me ajudou a ver o que se passava comigo mesmo. Porque, como o Bentinho, vivi o ciúme de maneira intensa. O ciúme bagunça a nossa cabeça, faz com que a gente veja coisas que não existem. Eu cheguei a suspeitar daminha namorada, da garota que eu amo. Cheguei a brigar com ela, fiz um papelão, inventei esta história toda, esta mentira da carta do Machado. Mas agora, na frente dela e na frente de vocês todos, eu peço perdão a ela, como peço perdão a vocês todos, meus amigos de Santo Inácio e de Itaguaí. Ju, quero dizer a você: eu te amo! Eu te amo, Ju querida!

Sai de trás da tribuna, saltei do palco, metro e tanto de altura, e corri para abraçá-la, enquanto o público simplesmente delirava. E ali ficamos abraçados, completamente desligados do que se passava a nosso redor. Minha mãe soluçava, meu ai e Vitório sorriam...

29 de ago. de 2011

CAPÍTULO XIII

Inesperada repercussão.


Teoricamente, a inscrição para o julgamento simulado deveria ser sigilosa. Mas só teoricamente; Santo Inácio e Itaguaí são duas cidades relativamente pequenas, onde todo mundo comenta a vida de todo mundo. Assim, quando se encerraram as inscrições, logo ficamos sabendo que, depois de uma triagem inicial feita pelo próprio júri, haviam sido selecionados para a disputa final três candidatos. Um deles, o Ernesto Gonçalves, era conhecido em Santo Inácio como “gênio”; tinha uma cultura imensa, sabia escrever, sabia falar bem e contava com o apoio de um grupo forte, nada menos que doze colegas de sua escola, o Colégio Santo Inácio. O outro, Romão Osvaldo, o Fuinha, era tão conhecido pela inteligência como ela esperteza e pelo mau caráter. Não por acaso, inscrevera-se sozinho.

- Este cara vai aprontar – resmungou Vitório. – Não sei o quê, mas ele vai aprontar.

Se eu já estava preocupado, não perdia por esperar: para mim, desagradáveis surpresas estariam reservadas.

Dois dias antes de começar o julgamento recebi um telefonema. Era o Josué, repórter do diário itaguaiensse, e que eu conhecia de vista. Queria falar comigo com urgência:

- Esta correndo um boato a seu respeito por aí.

- Que boato? – eu, surpreso e alarmado.

- Dizem que você tem uma carta na manga.

Gelei. Até jornalista já sabia da história. Fiz-me de desentendido, disse que não sabia do que se tratava; ele riu, matreiro, mas explicou:

- Falam que você tem um trunfo secreto. Que vai apresentar um documento capaz de mudar tudo que se sabe a respeito desse livro do Machado de Assis. Pois eu quero entrevistar você sobre este assunto, e quero exclusividade. Afinal, somos o principal jornal de Itaguaí, de sua terra. Estamos torcendo por você. Mas é toma-lá-dá-cá: você nos dá essa informação em primeira mão, nós apoiamos você no julgamento. Que tal essa?

Eu agora estava francamente alarmado. Em primeiro lugar pelo fato de a informação ter vazado, o que não poderia ter acontecido; em segundo lugar, pela possibilidade de o documento aparecer em jornal, o que seria um desastre: os organizadores do concurso certamente me eliminariam de imediato. Expliquei ao Josué que me comprometera a manter sigilo, o que ele, ainda relutante, acabou aceitando em troca de uma promessa: logo depois do julgamento eu lhe daria a tal entrevista exclusiva. E insistiu:

- Veja lá, heim? Até esse dia você não pode falar com ninguém da mídia.

Advertência tinha razão de ser: já naquele mesmo dia fui procurado por jornalistas de duas rádios e de uma tevê, esta do Rio. O que deixou meu pai intrigado:

- Por que, raios, tem tanto jornalista ligando? Em que confusão você se meteu, Queco?

Acabei contando a história do documento. Como Jaime e como Vitório, ele imediatamente ficou desconfiado. Fez várias perguntas a respeito, ouviu minha explicação com um ar suspeitoso:

- Vê lá o que você está fazendo, Queco. Esse tipo de coisa não é brincadeira, muita gente vai se interessar pelo assunto. E investigar o assunto. Por favor, não se meta em confusões...

Àquela altura eu já estava meio arrependido. Jaime e papai tinham razão: a chance de complicações era grande. Mas, cada vez que lembrava o olhar que Júlia trocara com o Vitório, a raiva me invadia: eu precisava, sim, ganhar aquele julgamento, precisava esfregar o dinheiro do premio na cara dela. Seria a minha vingança. Decidi que daí por diante não falaria com mais ninguém sobre a suposta carta, mas que levaria a coisa até o fim.

***

Naquela mesma noite o telefone tocou mais uma vez, na hora do jantar. Mamãe atendeu: é pra você, disse, num obvio tom de censura; também ela estava farta de tantas ligações. Atendi a já fui dizendo:

- Desculpe ser brusco, meu amigo, mas se é sobre a carta do Machado, e se você quer...

- É sobre a carta do Machado, Francesco – respondeu uma voz grave, num tom intrigante, meio irônico, meio ameaçador. – Sobre essa tal de carta do Machado. E, se eu fosse você, não desligaria. Ouviria até o fim o que eu tenho pra lhe dizer. Pode lhe poupar um grande aborrecimento.

Aquilo não era brincadeira. Respirei fundo:

- Desculpe. Fale, estou ouvindo.

- Você não me conhece – prosseguiu o homem – e, de momento, meu nome não vem ao caso. Só vou lhe dizer minha profissão: sou grafologista, perito em escrita manual. Você do que estou falando?

Eu tinha uma vaga noção do que se tratava, de modo que ele explicou:

- Comparando dois textos manuscritos, posso dizer, pela caligrafia, se são de uma mesma pessoa ou não. Isto certamente lhe interessa, não é?

Interessava-me. Infelizmente, agora aquela coisa me interessava, e muito. O homem prosseguiu:

- Fui procurado por um adversário seu nesse julgamento. O nome, obviamente, não vou lhe dizer, mas ele sabe que você vai apresentar como prova uma carta que teria sido escrita pelo próprio Machado de Assis. Se a carta é falsa, amigo Francesco, eu não terei a menor dificuldade em prová-lo: é só comparar a caligrafia, coisa que sei fazer como ninguém. O problema é que seu adversário quer me pagar muito pouco para fazer isto. Então eu pensei em fazer a você uma proposta, que outros chamariam de indecorosa, mas que, considerando aminha difícil situação financeira, estou disposto a levar à diante. Posso, se você topar, atestar por escrito que a carta é verdadeira. Mas, para isso, quero metade do valor do prêmio.

Eu simplesmente não sabia o que dizer. Ele voltou à carga:

- Alô! Está aí, amigo Francesco? Está? Ah, bom, eu pensei até que a ligação tinha caído. Então, o que me diz desta proposta?

O que dizer? Eu não sabia, tão embaralhados estavam meus pensamentos. Ele deu-se conta disso:

- Bem, você não precisa resolver agora. Dou-lhe vinte e quatro horas para pensar. Amanhã, a essa hora, estarei esperando sua ligação. Mesmo porque o julgamento está se aproximando, certo? Pense bem na proposta que lhe fiz.

Deu-me um numero de telefone e desligou. Desliguei também, ainda aturdido. A sensação que se apossava de mim agora era a de que eu estava num pântano, num terreno de areia movediça, e que cada vez afundava mais.

O que fazer?

Pra começar, eu nem sabia se o homem era mesmo um perito em escrita manual, como dizia. Talvez sim, talvez não. Bem poderia ser um vigarista; alguém que, de alguma maneira, descobrira o segredo da carta e agora queria tirar proveito da situação. Mas, e se fosse mesmo um perito? Quem teria entrado em contato com ele? Só poderia ser o Fuinha, concluí. Mas mesmo para um mau caráter como o Fuinha, aquele seria um jeito muito drástico de eliminar um adversário.

Ou seja: dúvidas e mais dúvidas. De qualquer modo tratava-se de uma situação potencialmente perigosa, e eu não sabia o que fazer. Por fim, decidi ignorar o telefonema, mesmo que isso representasse um risco. Afinal, riscos eu já estava correndo, e vários. Um a mais não faria diferença. Eu não ligaria de volta. Até joguei o papel com o numero do telefone no vaso sanitário e dei descarga. Mas isso não resolvia meus problemas, que pareciam crescer a cada minuto. E, pior, eu não tinha a quem pedir auxílio. Para fazê-lo teria de confessar minha desonestidade; seria desmoralização total, um vexame grande demais. O jeito, por tanto, era agüentar tudo sozinho.

26 de ago. de 2011

CAPÍTULO XII

Reta final.


Vitório orientou-me sobre como deveria proceder à inscrição para o julgamento.

- Você terá de preencher uma ficha. Coisa simples: perguntam seu nome, o nome de seus pais, a escola em que você estuda. E não esqueça: você terá de anexar o resumo da apresentação que pretende fazer.

Bem, este resumo, mesmo sendo um resumo, era uma exigência complicada, porque, e nisto o Vitório e eu estávamos de acordo, não deveríamos falar da carta, que era por assim dizer, nossa arma secreta. Mas, sem a carta, tudo o que poderíamos fazer era listar os habituais argumentos sustentando que Capitu traíra Bentinho. Isto, certamente, outros fariam; qual seria o diferencial em meu resumo? Chegamos à conclusão de que seria preciso mencionar, mesmo que vagamente, a tal carta. Assim, a frase final do resumo dizia: “Estes argumentos são confirmados pelo recente achado de um importante documento, de autoria do próprio Machado de Assis, documento a que este candidato teve acesso, em caráter excepcional”. Frase de Vitório, que aliás era um excelente redator (hoje ele é editor-chefe de um grande jornal).

O próprio Vitório foi comigo até Santo Inácio, para me ajudar na inscrição. O que era gratificante e, ao mesmo tempo, me dava um grande sentimento de culpa. Então, aquele era o cara que estava me sacaneando, que estava me traindo com minha namorada (agora ex-namorada)? Na volta, no ônibus, engoli o orgulho e falei-lhe do que estava sentindo. Ele ficou em silencio um instante e depois disse:

- Olhe, Queco, não vou dizer nada a você. Quando o cara está com ciúmes, argumentos não adiantam. Eu tenho certeza de que você descobrirá a verdade. Só espero que quando descobrir não seja tarde demais.

Aquilo soara como uma reprovação? Claro que sim. Não seria a única, naquele dia. Mais tarde, à mesa de jantar, mamãe comentou, como quem não quer nada:

- Ouvi dizer que você se inscreveu nesse julgamento simulado que vai ser feito em Santo Inácio e que vai representar a escola. É verdade?

- Verdade – respondi, tentando mostrar despreocupação.

- E – continuou mamãe, servindo-se de salada – é verdade também que você vai defender a tese de que Capitu traiu o Bentinho?

- Verdade.

- Não preciso dizer – ela a custo continha a contrariedade – que você não conta com meu apoio. Sou das pessoas que lutam pelos direitos das mulheres, e não gostaria de ver meu filho sustentando uma posição machista como é a do Bentinho. Machista, sim. Porque...

- Passe os bifes – interrompeu meu pai, e continuou: - Escute, querida, você não acha este assunto meio indigesto para ser discutido no jantar?

- Não, não acho. – mamãe, nervosa. – O Queco é nosso filho, nosso dever é educá-lo, é dizer a ele a verdade, mesmo que essa verdade pareça desagradável. A história de Capitu e do Bentinho é um exemplo típico de como...

- Desculpe, mamãe – agora era eu quem a interrompia -, mas posso perguntar como é que você sabe que eu vou participar do julgamento?

- A Júlia me disse.

A Júlia. Estava explicado. A Júlia. Assim como Capitu se tornara amiga da dona Glória, a mãe de Bentinho, Júlia procurava se aproximar de mamãe, mesma tática, mesma sacanagem.

- Ela está magoada com você, Queco. E, no meu modo de ver, ela tem razão. Porque...

Não quis ouvir o resto. Levantei-me, furioso, e sai de casa, batendo a porta.

Durante uma hora vaguei pelas ruas de Itaguaí, desertas àquela hora: hora do jantar, do noticiário da tevê, da novela. Eu estava absolutamente transtornado. Não só Júlia me traíra, como ainda fazia intrigas com minha família! Bota safadeza nisso!

Finalmente, de um orelhão, liguei para a casa dela. Atendeu-me a própria Júlia. Sua voz, num tom neutro, não mostrava reprovação (nem receptividade). De imediato comecei a repreendê-la: “Você não tem respeito, você não tem qualquer consideração por mim, você fica ai fazendo fofoca sobre minha pessoa”. Ela me ouvia, em silencio. Depois que desabafei, perguntou:

- É isso que você tinha pra me dizer?

- É isso – eu, ainda ofegante.

- Pois então ouça, Queco. Não sei o que exatamente você está pensando ou imaginando, mas de uma coisa pode ter certeza: você está fora da realidade, entendeu? Completamente fora da realidade. Nada que você pensa ou imagina aconteceu.

- O quê!? Você está querendo me dizer que não pintou nada entre você e o Vitório?



- Pode ter pintado. Admito: pode ter pintado. Isso acontece, não acontece? O Vitório era um cara legal, inteligente, gentil. Um cara entusiasmado, que acredita nos seus ideais. Sempre me tratou bem ao contrario de você que... me desculpe, Queco, mas tenho de lhe dizer isso... volta e meia dá uma de arrogante. E você vinha me tratando mal, Queco. Você pode não ter percebido isso, mas vinha me tratando mal. E isto me dois, Queco. Porque...

Interrompeu-se e eu percebi que ela estava soluçando.

- Eu amo você, Queco. Apesar de tudo, eu amo você.

Deus. Oh, Deus. Eu queria que aquele orelhão me engolisse, me sugasse, me fizesse sumir da face da terra. Tudo que pude fazer foi dizer, a voz embargada:

- Eu vou aí, Ju. Vou à sua casa agora mesmo.

- Não. Não venha.

- Mas por quê? – perguntei angustiadíssimo.

- Porque não. Porque não quero. Não estou a sua disposição, Queco. Você não faz comigo o que você quer. Não sou como a Capitu, que o tal do Bentinho mandou pra Europa onde a coitada veio a morrer. Só quero que saiba que está fazendo uma tremenda bobagem. Espero que não se arrependa. E espero que você não se meta em complicações.

Aquilo, agora, me deixara alarmado. Confuso e alarmado:

- Por que você diz isso?

- Você deve saber melhor do que eu – respondeu, num tom seco, enigmático, e desligou.

Fiquei ali parado, imóvel, o telefone na mão. Era como se o mundo de repente tivesse acabado. Meu Deus, o que é que eu tinha feito? O que eu estava fazendo? Eu estava numa situação cada vez mais difícil, mentindo, brigando com meus amigos... e agora levando o maior fora da garota que eu amava.

Mas não era tudo. Quando, finalmente, voltei para casa, recebi um telefonema do Jaime. Obviamente ele já sabia que eu estava inscrito no julgamento da Capitu, já sabia qual era a posição que eu iria defender. Mas não era nisso que ele estava interessado, era em outra coisa:

- Esse tal de documento que você vai apresentar como prova... Que documento é esse?

- É uma carta – respondi, tentando manter o sangue frio (mas a minha voz inevitavelmente tremia um pouco).

- Uma carta de quem, posso perguntar?

- Do Machado, ora.

Ele ficou um instante em silencio, seguramente abismado com o que tinha ouvido.

- Uma carta do Machado, você disse? Do Machado de Assis?

- É. Uma carta do Machado de Assis.

Nova pausa, tensa pausa, ultratensa pausa. Ele disse, lentamente, medindo as palavras:

- Não sei se você se dá conta, Queco, mas um documento destes tem importância imensa. Ele muda a idéia que todos tinham, segundo a qual Machado criou propositalmente um enigma que cabe ao leitor resolver. Esta carta será uma verdadeira revolução.

Pigarreou e voltou à carga, agora escolhendo cuidadosamente as palavras:

- Diga-me uma coisa, Queco: você tem certeza de que esta carta é autentica? Sim, eu sei que você a encontrou num livro antigo. Mas isto não garante a autenticidade do documento.

- Sei disso. – eu, fazendo toda a força para mostrar despreocupação. – Mas mostrei para uns caras que entendem, e eles me disseram que a carta é mesmo do Machado. Por tanto não se preocupe, Jaime, está tudo certo com a carta e comigo. Eu vou vencer o julgamento, pode ficar seguro.

- Se é como você diz, a chances são mesmo grandes – cedeu ele, sempre cautelosos. – Não tenho duvidas a este respeito. E fico contente. Afinal, com esse dinherão poderemos reconstruir a escola... Mas não se esqueça dos outros problemas que você tem.

- Que problemas? – aquela conversa já estava me deixando nervoso.

- Com seus amigos. Com sua namorada. Eu sei que nada tenho a ver com isso, mas você sabe que eu gosto de vocês e que estas brigas me doem muito. Mas que a dor das fraturas, que doem bastante... Deixe que eu lhe diga isso, Queco: Um dia você vai descobrir que poucas coisas são tão importantes na vida como o amor, a amizade. Não jogue isso fora, cara. Avalie bem a situação. Você não vai participar de um julgamento? Pois comece julgando e de um modo bem imparcial, os seus próprios atos. Tenho certeza que vai mudar uma coisa.

Eu estava com um nó na garganta, mal podia falar. Agradeci o conselho, despedi-me. E ali estava a Sapeca na sala, me olhando fixo. Avancei para ela. Eu precisava abraçar alguém, nem que fosse uma cachorrinha. Mas a Sapeca, com medo, decerto dos meus ataques de fúria, fugiu. E eu fiquei ali, só, completamente só.

24 de ago. de 2011

CAPÍTULO XI

A farsa segue em frente.


Meu problema agora era inventar uma história plausível sobre a carta; uma história muito bem bolada, uma história digna de Machado de Assis. E me achava perfeitamente capaz de fazê-lo: agora que começara a mentir, agora que dominara a arte da trapaça, não precisaria mais, para o Bem e para o Mal – mais para o Mal, na verdade, mas no momento, preocupado em enganar o grupo (enganar a mim próprio), eu não me dava conta disso.

A história, então. A história de como a carta chegara às minhas mãos.

Primeiro pensei em dizer que eu a tinha recebido de presente do meu vizinho, o seu Sinzenato, um velhinho muito culto, grande leitor. Ele havia falecido poucos dias antes e nas ultimas semanas de sua vida, a pedido de mamãe, eu ajudara a cuidar dele, fazendo compras para a casa, ajudando-o a se locomover. O pessoal da escola sabia disso, e o Jaime tinha até me elogiado em publico pela dedicação a uma pessoa doente.

Pois bem, eu contaria que, em retribuição, o ancião resolvera me dar um presente: aquela carta, encontrada em um velho livro na biblioteca que pertencera a seu pai. Eu acrescentaria que, de inicio, nem quisera receber um documento tão valioso, preciosidade que deveria estar no museu ou na Academia Brasileira de Letras; mas seu Sinzenato insistira, dizendo que um dia aquilo seria muito importante para mim – palavras proféticas, como se o velho tivesse adivinhado que um dia estaríamos metidos no julgamento de Capitu.

O fato de o seu Sinzenato ter morrido ajudava e atrapalhava. Ajudava porque ele não poderia contestar a história; atrapalhava porque não poderia confirmar esta mesma história. E eu precisava de alguém que corroborasse a minha narrativa, que pudesse dar seu testemunho. Precisava de alguém que estivesse vivo. Depois de matutar muito cheguei à pessoa: o seu Godofredo.

Era o dono de um sebo que ficava no centro de Itaguaí. Uma livraria pequena, cheirando a mofo, e entulhada de livros velhos. Meu pai dizia que nem o próprio Godofredo sabia quantos livros havia ali, o que provavelmente era verdade. Cada vez que alguém queria se desfazer de uma biblioteca, era a Godofredo que recorria. Resultado: os livros acumulavam-se em prateleiras, em cestos, em pilhas no chão. Livros antiqüíssimos, alguns datando do século XIX. E o seu Godofredo não dava muita bola para a loja, ficava atrás da caixa registradora, lendo o jornal, e nem sequer tentava fiscalizar os rapazes que, volta e meia, e aproveitando suas freqüentes distrações, roubavam livros e saiam correndo. O desligado Godofredo seria o meu cúmplice. Cúmplice involuntário, mas cúmplice. Com a “carta do Machado” escondida no blusão, fui até lá. Seu Godofredo me viu entrar, cumprimentou-me: ele me conhecia, não só porque em Itaguaí todo mundo mais ou menos se conhece, mas também porque eu já tinha estado no sebo algumas vezes, atrás de uns livros recomendados pelo Jaime.

Perguntei onde estavam as obras de Machado de Assis. Ele não sabia bem:

- Por ali, naquelas prateleiras do fundo.

Havia, de fato, alguns antigos livros do Machado ali, incluindo vários exemplares do Dom Casmurro, um deles datando do começo do século XX. Dentro desse coloquei a carta. Fui até o caixa, paguei (não foi pouco; o restante de minhas economias). Fingi que ia sair, mas então dei meia-volta:

- Diga-me uma coisa, seu Godofredo: quando a gente compra um livro aqui, compra tudo o que tem dentro, certo?

Ele me olhou sem entender, mas disse que sim, tudo que estivesse no livro passaria a ser do comprador.

- Neste caso – continuei – acho que sou dono disso aqui.

E mostrei-lhe a carta. Ele pegou-a, intrigado, leu, arregalou os olhos:

- Mas é uma carta do Machado de Assis! Que coisa fantástica! Uma carta do Machado de Assis! E eu, que nunca descobri esta carta!

Estava impressionado – e chateado: tivera uma preciosidade em sua livraria por muito tempo, não se dera conta disso, e agora era tarde para reclamar. Fazendo força para manter o chamado espírito esportivo, felicitou-me:

- Uma carta de Machado de Assis deve valer um bom dinheiro, rapaz. Mais do que qualquer dos livros que tenho por aqui. Mais do que todos os livros deste sebo juntos.

Eu disse que não tinha duvida quanto àquilo e perguntei-lhe se poderia contar com o seu testemunho para narrar o que acontecera. Ele disse que sim: afinal eu era uma pessoa conhecida, em quem se podia confiar. Pediu para ler a carta mais uma vez, sacudiu a cabeça, impressionado:

- Então, para o Machado, Capitu traiu. Quem diria.

Esta foi a história que contei, quando, no dia seguinte, mostrei a carta ao pessoal. Devo dizer que preparei cuidadosamente a encenação: coloquei o papel num envelope plástico, como se ele precisasse ser cuidadosamente protegido. E ao exibir esse envelope ao pessoal, pedi a eles o maior cuidado. Os três se aproximaram e miraram atentamente o conteúdo do envelope. Estávamos todos tensos, muito tensos. A suposta carta, claramente, me separava do restante do grupo. Era eu de um lado, eles do outro.

Vitório me olhou, claramente desconfiado. Ele sabia do meu passado de colador, sabia que não raro eu inventava histórias. Não seria difícil para ele me desmascarar. Mas vejam a força do desespero: eu precisava sustentar o olhar ante o dele e era o que eu fazia. Enfrentava o olhar dele, e o olhar de Nanda, e principalmente, enfrentava o olhar de Júlia, no qual eu via, além de desconfiança, muita raiva.

Ela procurava, em meu rosto, em meus olhos, evidencias da mentira. Mas, para seu desgosto (desgosto que eu adivinhava e que, devo dizer, me dava imenso prazer), não as encontrava. E não as encontrava em primeiro lugar porque eu, naqueles poucos dias, aprendera a desenvolver a técnica da simulação, do fingimento, e também porque os invisíveis canais de comunicação que se haviam formado entre nós ao longo de muito tempo de convivência agora estavam desfeitos, ou quase. “Bem feito” eu pensava. “Você me sacaneou? Agora pague o preço.” Mas ela não deixou de levantar uma suspeita:

- Admitindo que esta carta seja verdadeira, Queco, não é muita coincidência o fato de você tê-la encontrado logo agora?

- Não – repliquei. – Não é coincidência. Encontrei a carta porque tive a curiosidade olhar uma edição antiga do Dom Casmurro. Se não fosse eu, teria sido um outro. Mas o destino, para falar como o Vitório, quis que fosse eu.

Vitório preferiu ignorar a provocação:

- Admitindo que a carta pé mesmo do Machado de Assis – disse -, estamos diante de um fato consumado. E temos de aceitar essa nova situação. Os nossos argumentos perdem completamente a força. O grupo achava que Capitu não traiu. Agora...

- Um momento – bradou Júlia. – O grupo “achava”? Não: o grupo “acha” que Capitu não traiu. Eu, pelo menos, penso assim. Li o livro, Vitório. Li o livro, como você leu, e como a Nanda leu. A gente tinha chegado à conclusão de que esse tal de Bentinho é um ciumento doente, desses que vêem traição em tudo, até num olhar. A pobre da Capitu pagou o pato, Vitório. Foi isso que a gente concluiu, e não vejo nenhuma razão para a gente mudar de idéia. Agora que vem Queco com uma tal de carta... Tá bom, pode ser que a carta seja verdadeira, que o Machado de Assis pense diferente de nós. A mim pouco importa, eu fico com a nossa analise, com as nossas conclusões. Um autor pode se enganar quanto ao trabalho dele, não pode? É a mesma coisa que você ter, por exemplo, um bicho pousado em suas costas. Ele está em você, ele está mais perto de você do que de qualquer outra pessoa. Isso não quer dizer que você vê o bicho melhor do que os outros, ao contrario.

Disse isso e se calou, ofegante, achando talvez que tinha convencido Vitório e Nanda.

Não tinha. Nanda, olhos baixos, não dizia nada. Vitório suspirou:

- Talvez você tenha razão, Júlia. Mas prova é prova, ainda mais prova escrita. Uma carta do Machado... A propósito, você mostrou essa carta para gente que entende, Queco?

- Claro – menti, e àquela altura era incrível a facilidade com que eu mentia. – Mostrei, sim, para um pessoal da Academia Brasileira de Letras. Ali tem pessoas que passam o dia estudando a obra do Machado, as cartas do Machado... Tem especialistas na caligrafia dele... Esse pessoal confirmou: a letra é do Machado.

- Então – arrematou Vitório seco -, a duvida está liquidada. O que nós temos de fazer agora...

- Um momento – disse a Júlia. – A carta existe. Mas isto não significa que tenhamos de mudar nossa argumentação.

- Como? – Vitório não estava entendendo.

- Ninguém diz – prosseguia ela – que o nosso amigo Queco é obrigado a mostrar a carta agora. Ele pode esperara até que o julgamento termine. Se o segredo ficar entre nós, podemos prosseguir com a nossa argumentação.

Senti que estávamos chegando a um momento decisivo. E de fato ela se virou para mim, fitou-me, os olhos úmidos:

- Eu lhe peço, Queco, em nome da nossa amizade, que você guarde essa carta por mais uns dias. Eu lhe peço, Queco.Você faz isto por mim, Queco? Faz?

Dizem que a vingança é um prato que agente come frio. Depois que passou o calor da briga. O prato de minha vingança não estava só frio, estava gelado. Mas não seria por isso que eu deixaria de saboreá-lo. Olhei-a firme:

- Não. Não vou fazer isto. A verdade tem de ser revelada custe o que custar.

Ela empalideceu, claramente abalada, mas não disse nada. Nem precisava dizer; a expressão amargurada de seu rosto para mim já era suficiente: eu estava, enfim, tendo minha desforra.

Vitório suspirou, olhou-me:

- É sua palavra final, Queco?

- É.

Fez-se um silêncio tenso, pesado. Júlia, absolutamente transtornada, nem me olhava.

- Bem – disse Vitório -, neste caso temos de mudar os planos. Em primeiro lugar: vamos continuar com o projeto de entrar no julgamento lá em Santo Inácio. Precisamos do dinheiro para a escola. Só que devemos participar de forma diferente. Proponho que o Queco vá no nosso lugar e que defenda sua idéia, isto é, a idéia de que Capitu traiu o Bentinho. Se a carta é verdadeira como você diz, Queco, trata-se de uma prova imbatível. Para mim você já ganhou, e quero até lhe dar antecipadamente os parabéns.

Sorriu, forçado:

- Acho que a agente não imaginava que as coisas iam acontecer assim, né, pessoal? Mas o que importa é o Colégio Zé Fernandes, e o colégio sairá vitorioso desta. Portanto, teremos um final feliz.

Depois das aulas fui para casa. E vocês devem achar que eu ia triunfante, o rei na barriga.

Não. Triunfante, não. Rei na barriga, também não. De repente as coisas tinham mudado. De repente eu me dava conta do enorme fosso que se abria entre nós, um fosso cavado por mim. E aquilo já não me alegrava, já não me dava satisfação. Eu me sentia o ultimo dos mortais, um cara repugnante, nojento. Tão desgostoso estava comigo próprio que não pude sequer almoçar. Tranquei-me no quarto, atirei-me na cama e chorei, chorei, até adormecer.

Dormi e sonhei. Em meu sonho eu via um homem vestido à moda antiga. Eu não o conhecia, não sabia seu nome, mas tinha certeza que ele era o Bentinho. Que me olhava sem dizer nada, o que me deixou indignado: “eu aqui me sacrificando por você, mentindo, falsificando, e você nem sequer me agradecer?”. Ele se limitou a sacudir a cabeça e desapareceu.

22 de ago. de 2011

CAPÌTULO X

Machado “escreve” uma carta.


Para começar, eu tinha de arranjar papel da época do Machado. Não podia simplesmente pegar uma folha tamanho oficio e ali escrever as minhas mal-traçadas linhas. E onde arranjar papel da época?

Por incrível que pareça, isto não foi difícil, graças ao Francesco, o meu tataravô. Chegando ao Brasil, ele se dedicara a escrever um diário de suas primeiras impressões do Rio de Janeiro. Um diário que ele não terminou. No caderno que comprara para isso (exatamente em 1899, ano da publicação de Dom Casmurro), várias páginas tinham ficado em branco. “Em branco” era modo de dizer, já que exibiam uma coloração amarelada, de papel muito velho. Eu sabia disso porque o caderno, conservado com orgulho por meu pai, volta e meia era mostrado a vizinhos e visitantes, eu sabia onde estava o tal caderno, de modo que naquela mesma noite, todo mundo dormindo, fui até lá e cuidadosamente cortei uma folha, bem manchada e amarelada.

Nessa folha eu teria de escrever como o Machado: à mão e usando o material de escrita da época. Onde conseguir esse material?

Resolver esse problema já foi um pouco mais difícil. Tive de ir à loja de antiquário, que vendia canetas muito antigas. Comprei uma delas, e também um frasco de tinta de escrever. Investimento não pequeno: metade de minhas economias, do dinheiro que eu vinha guardando havia meses e que seria destinado a uma bicicleta ultra-equipada. Agora, adeus bicicleta, mas o sacrifício valeria a pena; ao menos era o que eu esperava.

***

A etapa seguinte mostrava-se bem complicada. Eu teria de imitar a letra de Machado. Agora: onde encontraria amostras da caligrafia do “Bruxo do Cosme Velho”? O apelido me deu uma dica: eu deveria ir ao Rio, mais precisamente à casa de Machado, ou seja, à Academia Brasileira de Letras, por ele fundada. Eu sabia, porque o Jaime tinha nos contado que a Academia conservava muita coisa de Machado; a sua mesa de trabalho, por exemplo, e originais de suas obras.

A Academia fica no Rio de Janeiro, mas de Itaguaí até a antiga capital federal, a distancia é pequena. Alegando à Sandra que eu precisava consultar um médico (e precisava mesmo: um médico da cabeça...), faltei à aula e fui até lá. Segui direto para o endereço que tinham me dado, na Avenida Presidente Wilson, centro do Rio de Janeiro. Um lugar muito bonito, aquela casa em estilo antigo ao lado do prédio mais moderno, onde funcionava a parte administrativa. Subi os degraus e deparei-me com uma estatua em bronze de Machado de Assis. Ali estava ele, sentado, olhando-me fixamente como se perguntasse: “Tens certeza do que vais fazer, meu jovem amigo?”.

Uma pergunta a que eu não saberia responder. Mas meu problema naquele momento não era responder a imaginarias perguntas do Machado e sim entrar na academia, ir ao arquivo e examinar a caligrafia nas cartas dele ali guardadas. Sozinho, eu não teria a menor chance de conseguir o que queria, mas a sorte me ajudou: naquela tarde, como aliás freqüentemente acontece, havia uma turma de alunos visitando a Academia Brasileira de Letras, conduzidos por uma professora de literatura. Misturei-me a eles, Fomos até o arquivo ver objetos de Machado de Assis. Ali estavam também cartas escritas pelo próprio escritor. Eu levara comigo uma câmera, escondida; aproveitei um momento em que ninguém estava olhando e rapidamente tirei fotos das cartas. Também descobri, na livraria, livros que reproduziam estes originais, um dos quais comprei.

De volta a Itaguaí, comecei a treinar. A verdade é que não era difícil imitar a letra de Machado, mesmo porque, devo dizer, eu tenho uma habilidade especial para esse tipo de coisas. Lá pelas tantas eu poderia facilmente ter preenchido um cheque do escritor sem despertar a menor suspeita de seu banco. Minha letra estava igual à dele.

Agora sim, vinha a parte mais difícil.

A carta.

Para começar eu não dirigiria essa missiva a nenhuma pessoa em particular. Começaria simplesmente com um “prezado amigo”. Depois, teria de usar uma linguagem do fim do século XIX – com a qual eu já estava um pouco familiarizado, graças, exatamente, ao livro Dom Casmurro.

Mas não fiquei só nisso. Na biblioteca, procurei livros com a correspondência de escritores famosos do passado. Não achei muita coisa, mas o pouco que encontrei ajudou. Fiz vários rascunhos da carta, até chegar à forma que queria – um bilhete curto, cordial mas não efusivo. Começava com o “Prezado amigo” já mencionado, agradecia o interesse desse “prezado amigo” pelo Dom Casmurro e respondia à pergunta supostamente formulada pelo imaginário missivista: “Se o amigo quer saber minha opinião de autor acerca do que aconteceu em Dom Casmurro, aqui a tem: Capitu traiu”. Mais algumas considerações e logo aquela antiga formula com que as cartas terminavam: “Sem mais para o momento, fico, atenciosamente”.

Reli o que tinha escrito.

Deus, será que aquilo passaria por uma carta do Machado de Assis? Do grande Machado de Assis, do mestre da literatura brasileira? Achei que sim. Eu precisava achar que sim, que, respondendo meio apressadamente para um leitor qualquer, o Machado resumisse sua opinião acerca de Dom Casmurro daquela maneira tão simples, tão sumária. E precisava achar que também para os outros a carta seria convincente. Mas quando a gente precisa se convencer de alguma coisa a gente se convence, não é mesmo? Não é difícil a pessoa iludir a si próprio, é um processo que, quando começa progride sozinho.

O rascunho pronto, eu agora precisava transcrevê-lo adequadamente para a velha folha de papel do caderno do meu antepassado.

Aquilo foi difícil. Gente, aquilo foi muito difícil. Em primeiro lugar porque eu, que só usava caneta esferográfica, não estava familiarizado com o material de escrita; tinha medo de estragar a pena da caríssima caneta. Mas pior era a consciência culpada. De repente eu me dava conta do que estava exatamente fazendo; por causa de uma briga com amigos e com minha namorada (seria mesmo?) eu estava falsificando a escrita do grande Machado de Assis. Era tamanho meu nervosismo que minha mão tremia, eu não conseguia me controlar. Finalmente, respirei fundo e fui em frente. Num esforço monumental, copiei as seis linhas do rascunho.

Olhei o resultado: estava satisfatório. Uma ou outra letra um pouco tremida, mas isto até dava autenticidade ao documento; Machado já não era jovem à época em que o teria escrito.

Assinei: Machado de Assis.

Respirei fundo de novo. Pronto. A coisa estava feita.

Dizem que um momento decisivo na historia da humanidade ocorreu na Roma antiga quando Julio César, à frente de suas tropas, cruzou o rio Rubicão, o que ele, de acordo com a legislação romana, não poderia fazer. “Cruzar o Rubicão” ficou como sinônimo de uma decisão ousada, cheia de riscos, uma decisão sem volta. Pois bem, naquele momento eu tinha cruzado o Rubicão. Agora, era enfrentar. Agora era como César: vencer ou morrer. Olhei o papel amarelado na minha frente, a carta com a caprichada caligrafia machadiana, e conclui: a sorte estava mesmo lançada.

19 de ago. de 2011

CAPÌTULO IX

Fato novo.


Tudo indicava que a nossa próxima reunião seria uma briga só, do começo ao fim. De um lado, os defensores de Capitu, Vitório, Júlia e a vira-casaca Nanda. Do outro lado, eu, o defensor do Bentinho, previamente derrotado: neste segundo round minha chances eram zero. Pelo jeito, eu iria mesmo a nocaute. Um nocaute vergonhoso.

Uma solução seria jogar a toalha, reconhecer a derrota. Mas isto eu não faria. Não daria a eles esse prazer. E também não deixaria que me enfurecessem, que me tirassem do sério.

O que fazer, então? Para dizer a verdade, eu não sabia. Mas queria ver onde nos levaria a conversa.

Que começou tensa. Vitório tentava levar as coisas numa boa:

- Está certo, pessoal, discordâncias podem existir entre nós, mas nada que não se possa resolver numa discussão de gente educada.

Falou, falou. Nanda e Júlia, muito sérias, nem me olhavam. Não havia dúvida: naquela história existiam dois vilões, um do passado, outro do presente, o Bentinho e eu. Bentinho terminava a sua história só. Eu, pelo visto, também ficaria só. Só e derrotado.

- O ponto de vista predominante aqui no grupo – continuava Vitório – é de que Capitu não traiu. Portanto, esta é a posição que defenderemos no julgamento lá em Santo Inácio, no mês que vem. Nós...

- A menos – interrompi – que surja um fato novo.

Falei e de imediato calei-me, assombrado com minhas próprias palavras.

Fato novo? De onde é que eu tinha tirado aquilo? Não havia nem um fato novo que me favorecesse. Pelo contrário, a última novidade, a mudança de posição de Nanda, caíra em cima de mim quase como a pedra sobre o telhado da escola. Mas a verdade é que a frase teve impacto: os três me olhavam boquiabertos.

- Qual fato novo? – perguntou Júlia, esquecida de que já não falava comigo.

Eu sorri superior:

- É uma coisa que vocês nem podem imaginar.

Nem eu estava imaginando, claro, mas isso eu não podia dizer.

Júlia estava indignada, Nanda, a doce Nanda, também. Mas Vitório, que não perdia de vista o objetivo maior, ganhar o concurso, tratou de manter a calma. Pediu às garotas que se contivessem, e voltou-se para mim:

- O que você está dizendo, Queco, é muito sério. Pelo que entendo você descobriu alguma coisa que acaba com a nossa argumentação. É isso?

Vacilei:

- Bem...

Ele insistiu:

- É isso? Acabaram-se nossos argumentos?

Júlia me olhava, zangada mas ao mesmo tempo ansiosa. Não posso negar que me agradava vê-la assim; eu agora me sentia vitorioso. E resolvi tripudiar:

- É exatamente isso, colegas. Eu descobri algo sobre Dom Casmurro que pouca gente sabe. Nem o Jaime tinha conhecimento disso. É uma coisa que vai revolucionar o estudo da literatura brasileira.

- Mas, afinal – bradou Júlia -, pode se saber que revelação tão espantosa é essa?

- Não – respondi, seco. – Ainda não

- Por que não?

- Porque ainda me falta algo. Algo que vai servir de prova. Não é um julgamento? Pois então: julgamentos exigem provas. Dentro de alguns dias terei essa prova. E aí minha posição será imbatível. Podem crer.

Àquela altura eu já estava meio inseguro e por mim teria encerrado a desagradável discussão por ali mesmo. Mas Júlia não se deixava convencer: queria saber que tipo de prova eu apresentaria.

- É um documento, coisa assim?

- É. É um documento. – agora sentia-me completamente encurralado; provavelmente não agüentaria aquela pressão por mais de cinco minutos. Minha esperança era de que a sineta soasse. Não soava nunca e eu já estava pensando em ir embora de qualquer maneira quando, inesperadamente, Vitório veio em meu socorro:

- Gente, o intervalo está terminando. Vamos fazer o seguinte: Queco, você nos traz essa prova. Se for realmente importante, como você diz, se mudar tudo, se anular nossos argumentos, teremos de revisar nossa posição, e faremos isso. Só peço que você, por favor, não nos deixe esperando, certo?

- Certo – eu disse, e por pouco minha voz não tremeu naquela hora, por muito pouco. Porque a verdade é que, em vez de estar me sentindo vingado, eu me sentia apreensivo: acabara de me meter numa enrascada e não sabia como sair dela. Mas aparentemente ninguém percebia minha perturbação, e procurei manter o sangue-frio. Precisava só ganhar tempo para pensar em alguma coisa, em alguma solução. De modo que avisei:

- Pessoal, essa prova da qual estou falando, isso talvez demore um pouco.

- Certo – disse Vitório. – mas lembre que temos prazo. Não vá nos deixar na mão.

Procurei tranqüilizá-los:

- Vocês podem confiar em mim – garanti. E acrescentei (mas isto foi mesmo malvadeza de minha parte, uma malvadeza só explicável pelo ciúme): - Mais do que eu pude confiar em vocês.

Vitório e Júlia de novo trocavam um olhar, aquele olhar que me enfurecia, e que para mim era prova da cumplicidade entre eles. Eu não disse nada, mas aquilo reforçou minha convicção: precisava me vingar, e a tal prova que inventara seria o instrumento de minha vingança; daí em diante dedicaria cada minuto para descobrir o que fazer. Só que não tinha a menor idéia a respeito. Voltei para casa muito aborrecido, preocupado mesmo. Tão preocupado, que mamãe notou.

- O nosso Queco hoje não está com boa cara, Sapeca – comentou olhando para a cachorrinha. – Pelo jeito, quem vai levar você para passear sou eu.

Naquele momento o telefone tocou. Era o Jaime, querendo falar comigo. Fiz um sinal à mamãe de “não estou em casa”. Ela sacudiu a cabeça, transmitiu o recado, e desligou, mas não deixou de advertir que não lhe agradava mentir, mesmo em nome do filho, sobretudo em nome do filho. Não disse nada, mal falei com meu irmão, que vinha entrando, e fui para o meu quarto, onde tranquei a porta. Estirei-me na cama, a cabeça girando: meu Deus, eu pensava, que confusão eu criara. Agora estava arrependido de não ter falado com Jaime ao telefone: certamente ele ligara porque estava querendo me ajudar. Talvez pudesse até ter me dado alguma dica capaz de me tirar do atoleiro.

Jaime. Eu agora lembrava a conversa que tivera com ele, e em particular quando mencionou: “essa coisa de ‘traiu ou não traiu’, isso não tem muita importância. No fundo, é um jogo que o Machado faz com os leitores”.

Um jogo que o Machado faz com os leitores. Um jogo que o Machado faz com os leitores...

Um jogo! Machado! Pulei da cama como que impulsionado por uma mola. De repente senti aquilo como uma idéia inspirada, que poderia apresentar a solução para o meu problema. Mas como, exatamente, poderia Machado entrar na jogada? Nervoso, eu caminhava de um lado para o outro, tentando encontrar uma resposta para essa questão.

De repente detive-me: já sabia o que fazer.

Uma carta. Uma carta do Machado a alguém, a um leitor (que poderia até ser anônimo, desconhecido), dizendo que para ele, o autor do romance, Capitu traíra Bentinho. Um documento assim, se existisse, acabaria de vez com todas as duvidas. E me daria razão perante o grupo. Só que, infelizmente, Machado não tinha escrito tal carta...

Não tinha escrito, mas escreveria.

Melhor dizendo, alguém escreveria por ele: o Francesco Formoso de Azevedo. O Queco. Eu. Eu escreveria uma carta em nome do machado, dizendo que, na opinião do autor, Capitu traíra Bentinho com Escobar, de quem Ezequiel era filho.

A esta altura vocês devem estar atônitos, estarrecidos com essa idéia que não era só meio louca: era um ultraje, uma ofensa. Afinal de contas eu estava cogitando uma falcatrua histórica, envolvendo ninguém menos que um grande escritor brasileiro. “O que é que deu nesse cara?”, vocês devem estar indagando.

Boa pergunta. “O que é que deu nesse cara?”

Desespero, eu acho que é a resposta mais obvia. Porque desesperado eu estava. E quando o cara está desesperado ele vai fazendo uma bobagem atrás da outra, vai se afundando cada vez mais no buraco que ele próprio cava. Você começa brigando com um, depois briga com outro, e com outro, e inventa uma história, depois inventa outra história para justificar a primeira, e por aí você vai. O que é um absurdo, para dizer o mínimo. Desespero dá para aceitar. Desonestidade, não. Não há desculpa para a desonestidade, para a safadeza.

No meu caso, isto significava “apenas” escrever uma carta imitando o maior escritor brasileiro de todos os tempos, Machado de Assis. Bota atrevimento nisso, vocês dirão. Mas, como dá pra ver, esse atrevimento refletia a medida do meu desespero. Eu estava decidido. E, uma vez decidido, tinha de por mãos à obra.

17 de ago. de 2011

CAPÍTULO VIII

Guerra é guerra.


Chegando em casa encontrei um dos meus irmãos, o Nestor, estudando Direito, que tinha vindo do Rio para passar o fim de semana em casa. Eu era, como dizia meu pai, a copia Xerox do Nestor: semelhança maior seria impossível. Abracei-o, com a maior efusão possível. Ele logo percebeu que alguma coisa tinha acontecido:

- Você está com cara de velório, mano. O que aconteceu?

Tentei desconversar, disse que não era nada, só uma gripe, mas Nestor não deixou se enganar:

- Conheço você desde o berço, cara. Era eu quem tomava conta de você quando o papai e a mamãe saíam... Eu sabia quando você estava bem e quando não estava, não precisava nem perguntar. E agora estou vendo que você não está bem, e não é gripe coisa nenhuma. Vamos lá, diga: o que o incomoda, Queco?

Tentei falar, mas não consegui: a emoção me embargava a voz. Ele se deu conta de que eu estava vivendo um momento difícil e deduziu que aquilo tinha a ver com a Júlia: sabia de nossas complicadas relações. Tentou consolar-me como pôde, dizendo que aquilo acontecia, que ele mesmo já tinha brigado com várias namoradas:

- E é sempre aquela tragédia. A gente pensa que vai morrer. Numa das vezes perdi completamente a vontade de comer. Senta à mesa, olhava a travessa com os bifes, com o arroz, o feijão, e pensava: para que a comida, se a vida não tem mais graça? Levantava da mesa e ia para o quarto chorar em silêncio. Depois me recuperei, mesmo porque os bifes que a mamãe faz, você sabe, são excelentes.

Tentei sorrir. Animado, ele foi em frente, pedindo que eu esquecesse aquilo, que não desse bola para a briga:

- Amanhã ou depois você nem vai lembrar desse momento ruim.

Negativo. Eu lembraria, sim. Lembraria porque o episódio que eu acabara de vivenciar tinha me machucado demais. Sobretudo aquele olhar que o Vitório e a Júlia haviam trocado... Aquilo era traição, clara e óbvia traição. Eu me sentia enganado, como o Bentinho. E os ciúmes cresciam cada vez mais.

Decidi que manteria meu voto: Capitu tinha traído. Tratei de reler o romance em busca de mais provas. Quanto mais procurava, mais encontrava, claro; é sempre assim a gente acha aquilo que busca. Capitu era má, era fingida, eu concluía. Já tinha mostrado quem era muito antes do casamento. Desde garota o plano dela era dominar o Bentinho. E tinha conseguido até mesmo pelo olhar. Olhar de ressaca: grande expressão do Machado. O que é ressaca? É o mar revolto, enraivecido, querendo invadir a terra. O mar que não conhece o seu limite, que não sabe o seu lugar. Ah, mas comigo isso não aconteceria. Júlia não me dominaria. Ela veria com quem estava lidando.

***

Eu passava por ela, no salão paroquial, e fingia não vê-la. Ela fazia a mesma coisa, ficava de nariz empinado sem me olhar. Se era uma briga para saber quem seria o primeiro a dar o braço a torcer, ela não perdia por esperar.

Àquela altura, o nosso rompimento já era público. Até o Jaime ficou sabendo que eu não estava numa boa e ligou:

- Estou com saudades de você, Queco. E além disso desconfio que está na hora de a gente bater um papo. Você não quer me fazer uma visita?

Fui. Ele ainda estava em casa, de pijama, convalescendo dos problemas que tivera e dos quais se recuperava com alguma lentidão. Recebeu-me com o carinho de sempre, mas evidentemente estava preocupado comigo e foi logo dizendo por quê:

- Essa divergência no grupo de vocês já é uma coisa chata. E a sua briga com a Júlia não ajuda em nada.

Perguntei como ficara sabendo do assunto. Ele respondeu de maneira vaga, dizendo que o pessoal da escola tinha comentado a respeito. Na verdade, ele estava achando que eu rompera com a Júlia depois da discussão sobre o livro. Agarrou-me o braço:

- Escute, Queco: você não pode romper com a sua namorada por causa de opiniões diferentes. Essa discussão, Capitu “traiu ou não traiu”, no fundo não tem muita importância. É um jogo que o Machado faz com os leitores, um jogo ao qual o Brasil inteiro acabou aderindo. Como tema de concurso pode até ser válido; se vocês ganharem o prêmio e puderem arrumar a escola com o dinheiro, será mais válido ainda. Agora, o que tem importância mesmo, no livro, é o ciúme do Bentinho. Machado mostra como esse homem acabou sendo dominado pela suspeita; a vida dele passou a girar em torno disso.

Ficou um instante em silencio. Aparentemente, hesitava em me dizer algo, algo que para ele era muito importante, mas penoso. Engoliu em seco e por fim foi em frente:

- Você sabe, Queco, que eu me separei de minha mulher. Um dia ela me disse que tinha encontrado outro homem, e que gostava dele, e que queria viver em sua companhia. Foi um choque. A gente estava casado há cinco anos, mas depois de pensar muito decidi aceitar aquilo como fato consumado: seria melhor para todos. Nós nos separamos como amigos, e amigos continuamos. Se eu tivesse me deixado dominar pelo ressentimento, minha vida, e a vida de minha ex-mulher, teriam se tornado um inferno. Mas a gente tem de agir com equilíbrio, com maturidade. E é isto que eu lhe peço, Queco. Peço-lhe como seu professor, como seu amigo; amigo mais velho, mas amigo. Por favor, não transfira para a sua vida particular os problemas que Bentinho teve com Capitu. Promete?

Não prometi. Estava muito magoado para fazê-lo. Gostava do Jaime, gostava muito dele, faria qualquer coisa que me pedisse, menos aquilo. Além disso, e apesar de suas boas intenções, ele estava enganado. Minha bronca com a Júlia não se resumia a um debate sobre o Dom Casmurro, ou sobre o que a Capitu tinha feito na realidade. Eu achava era que a Júlia estava me sacaneando, estava me traindo. Queria me vingar, e levaria a vingança até o fim. O meu voto era importante? Pois então eles não teriam o meu voto. Se isso arrebentasse o nosso grupo, se isso se tornasse um obstáculo para o nosso trabalho, azar. A mim pouco importava.

Vendo que eu estava irredutível, Jaime suspirou:

- Veja lá o que você vai fazer – disse.

Naquele momento a enfermeira chegava para lhe fazer um curativo e aplicar uma injeção, por isso fui embora. Mas o dia não terminaria sem uma outra contrariedade.

Naquela mesma noite Nanda ligou, pediu que fosse à sua casa; tinha uma coisa importante para me dizer. Fui até lá. Ela estava esperando na porta:

- Não quero que meus pais e irmãos escutem a nossa conversa.

Muito embaraçada, contou que havia pensado bastante e que chegara a uma conclusão: não examinara a questão do “traiu ou não traiu” com a devida serenidade. Na verdade, ficara irritada ao ver Vitório e Júlia tão unidos na “absolvição” de Capitu e, só por birra resolvera adotar a posição oposta.

- Mas isto não é honesto, Queco. Reli o livro e minha opinião agora é de que o Bento foi vítima de ciúmes. Como eu. E como você, acho.

Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Porque na nossa reunião inicial, eu ficara com a certeza de que a Nanda estava a meu lado, tão veemente fora sua argumentação. Agora ela simplesmente virava a casaca. Ela me abandonava, me transformava na ovelha negra do grupo. Por que fazia isto? Uma explicação me ocorreu: ela estava querendo dar força ao Vitório, queria agradá-lo, e dessa maneira competiria com a Júlia.

Como que adivinhando meu pensamento, ela disse, mirando-me nos olhos:

- Acredite, Queco, eu estou mudando de idéia por convicção, não estou querendo puxar o saco de ninguém. Nem mesmo a questão da escola estar pesando aí. Acho importante a gente ganhar esse concurso, vou fazer toda a força para isso, mas antes de tudo procuro ser justa, procuro ser equilibrada, procuro ser coerente. É isso.

Era aquilo, e eu estava só, absolutamente só. A votação agora estava desempatada, meu voto não valia mais nada e tudo o que eu teria a dizer ao grupo, na próxima reunião, era se queria u não continuar e, se não quisesse, não faria a menor diferença.

- Você não está zangado comigo, está? – perguntou ela, os olhos úmidos.

Tentei bancar o superior:

- Eu? Zangado? De maneira alguma, Nanda. Zangado? Eu? Por quê? Você mudou de idéia, tudo bem, eu respeito. Minha posição é diferente, mas não é por isso que vamos brigar. Afinal, somos civilizados, precisamos aprender a aceitar as diferenças de opinião, o debate. O importante é o que o grupo vai decidir.

- Quem sabe você muda de idéia também... – insinuou ela, tentando gracejar.

E aquilo sim, aquilo me tirou do sério. Voz alterada, comecei a dizer que eu era um cara coerente, não desses que dizem ora uma coisa, ora outra. Nanda me olhava, visivelmente impressionada, assustada mesmo.

- Nossa, essa coisa mexeu com você – disse por fim.

Uma pausa, e continuou:

- Acho que isso tem a ver com sua relação com a Júlia. Eu sei que vocês não estão numa boa. Ela não me falou nada, embora sejamos amigas, mas já pude reparar que vocês nem se cumprimentam.

Colocou as mãos nos meus ombros e falou, num tom que era quase de súplica:

- Não faça isto, Queco. Não se deixe dominar pelo ciúme. Veja o que aconteceu com o Bentinho, no livro. No final, o cara já estava vendo traição em qualquer gesto da pobre Capitu...

- Capitu traiu – eu disse, seco. – E não é a única traidora nesta história toda.

Virei as costas e fui embora.

15 de ago. de 2011

CAPÍTULO VII

Preparando a briga.


A primeira pessoa que encontrei no salão paróquia, na semana seguinte, foi o Vitório:

- Tenho novidades – foi logo anunciando.

No dia anterior estivera com o pai em Santo Inácio. Lá falara com varias pessoas sobre o assunto do momento, o julgamento de Capitu, obtendo algumas informações interessantes:

- Já estão com uns dez grupos inscritos, tudo gente de Santo Inácio. Quando eu disse que nós também vamos concorrer, um amigo de papai não pôde deixar de comentar: “Vocês, de Itaguaí, sempre se metendo. Vocês são como o Alienista: acham que são melhores que todo mundo”. Confesso que fiquei preocupado: se outras pessoas vêem o julgamento desse jeito, a coisa meio que vira guerra...

Aquilo me irritou:

- Então é guerra – eu disse. – Se é guerra o que eles querem, é o que terão. E nós temos de nos prepara muito bem.

Com um suspiro, Vitório concordou. Sim, teríamos de fazer um bom estudo do livro. Avisou-me que no intervalo faríamos a nossa reunião e que eu não deveria faltar: decidiríamos coisas muito importantes.

Tão logo soou a sineta (que, na casa paroquial, substituía a campainha do colégio), fui para o pátio, onde Vitório, Júlia e Nanda já esperavam, cada um com suas anotações. Fomos sentar num banco, lá no fundo.

- Bem – disse Vitório -, vamos para os finalmentes. Acho que todos leram o livro de modo que...

- Eu ainda não terminei – interrompi.

Júlia me olhou. Às vezes ela tinha uma maneira de me olhar que me deixava muito irritado. Como se ela fosse um ser superior e eu uma espécie de subalterno.

- Mas a gente tinha combinado... – começou ela.

- Eu sei que a gente tinha combinado, Júlia – respondi, de modo brusco. – Eu sei, você não precisa me dizer. Mas não consegui terminar a leitura, pronto.

Júlia, de inicio surpresa com a minha reação e logo contrariada, começou a dizer que eu era um irresponsável, que aquele era um trabalho de grupo e que, num trabalho de grupo, todos têm de cumprir com a sua obrigação. Eu estava disposto a comprara a briga, mas Nanda, sempre sensata, não deixou:

- Bom, o Queco não leu, então não adianta a gente ficar discutindo. Você acha que até amanhã vai ter lido, Queco?

Eu disse que sim, e ela sorriu, conciliadora:

- Viram como falando a gente se entende? Não há necessidade de brigar, pessoal. Nós somos um grupo, nós temos um objetivo: queremos ajudar a nossa escola. Portanto, vamos em frente, sem perder tempo com essas discussões que só desgastam e não produzem nada de bom. Eu proponho que amanhã a gente se reúna de novo. Aí o Queco vai ter lido o livro, e poderemos comparar nossas opiniões e decidir, como sugeriu Vitório, se vamos entrar no julgamento para acusar ou defender Capitu. Não é uma boa?

Era uma boa, todos estávamos de acordo nisto. Vitório e Júlia aparentemente já tinham até esquecido o bate-boca: conversavam animadamente, comparando suas anotações.

Eu estava magoado. Estava magoado por causa da discussão e estava magoado porque via Vitório e Júlia cada vez mais próximos. Nem consegui prestar atenção nas aulas seguintes. Voltei para casa contrariado e com dor de cabeça. Mas não me deixaria abater. Prometera terminar o livro até o dia seguinte e era o que faria. Em primeiro lugar porque não suportaria ser repreendido de novo, como um garoto relapso; mas, principalmente, porque eu queria, sim, concluir a leitura. A verdade é que a obra me fascinava; porque era uma grande narrativa, claro, a narrativa de um grande escritor, mas também porque mexia comigo.

Chegando em casa encontrei a Sapeca, me olhando e abanando o rabo. Evidentemente estava esperando que eu a levasse para passear, mas fui logo avisando:

- Nem pensar, minha cara. Tenho de terminar o livro.

Acho que meu tom foi categórico, porque Sapeca optou por meter o rabo entre as pernas e foi se refugiar no quarto de mamãe, que, quando chegasse, certamente sairia com ela. Quanto a mim, mergulhei no livro, que agora chegava à sua parte mais dramática.

***

Bento estava tendo sucesso como advogado; a vida para ele e Capitu seria boa, mas havia um problema: não conseguiam ter filhos, e sentiam inveja de Escobar e Sancha, pais de uma filha cujo nome, Capitolina, homenageava Capitu.

É então que Bentinho começa a ter ciúmes. E a primeira coisa que lhe dá ciúmes são os braços de Capitu: “Eram belos, e na primeira noite que o levou nus a um baile, não creio que houvesse iguais na cidade...”. E continua: “Eram os mais belos da noite, a ponto de encher-me de desvanecimento. Conversava mal com as outras pessoas, só para vê-los, por mais que eles se entrelaçassem aos das casacas alheias”. Nesse momento, Bentinho ainda orgulhoso da beleza de Capitu. Num segundo baile a situação muda de figura. Agora ele vê os braços nus como uma forma de exibição: “Quando vi que os homens não se fartavam de olhar para eles, de os buscar, quase de os pedir, e que o roçavam por eles mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido”.

Esta crise é interrompida pelo nascimento do filho tão esperado, Ezequiel. Ele cresce, e, menino vivo, curioso, inteligente, faz a alegria de Bentinho e Capitu. Por outro lado os dois casais convivem cada vez mais, até porque Escobar e Sancha agora moram perto. O sonho deles é que Ezequiel e Capituzinha (apelido da pequena capitolina) venham a se casar.

Tudo bem, aparentemente. Mas sobrevém a tragédia: Escobar que era apaixonado pelo mar, ironicamente morre afogado. No enterro algo chama atenção de Bento: o modo de como sua mulher olha para Escobar morto. Tão perturbada fica que quase não consegue fazer o discurso fúnebre. Tempos depois, e é a própria Capitu que lhe chama a atenção para isso, Bento começa a perceber as semelhanças de Ezequiel com Escobar: é como se o amigo ressurgisse diante dele. Resultado: ciúmes (ou mais ciúmes). O mal-estar entre o marido e a mulher vai num crescendo. Pior, Bento já não suporta ver o filho, o qual, muito apegado ao pai, nada percebe. Por fim, o menino é mandado para um internato.

Tão desesperado Bento está, que decide se suicidar. Chega a colocar veneno numa xícara de café. Salva-o a chegada de Ezequiel. Num momento que é verdadeiro clímax, pensa em matar o menino, oferecendo-lhe o café envenenado, mas recua e, num desabafo, diz a Ezequiel que não é seu pai. Capitu entra na sala; quer saber o que se passa. Bento reafirma: não é pai de Ezequiel. Capitu coloca-o contra a parede, interroga-o: qual a razão dessa suspeita? Bento, confuso, não consegue responder, e Capitu conclui: tudo resulta da semelhança casual entre o menino e o falecido Escobar.

Decidem se separar, porém mantendo as aparências. Para isto, partem, com Ezequiel, para a Europa, de onde Bento retorna só. Nunca mais verá Capitu. O tempo passa, morrem d. Glória e José Dias. Capitu também morre, e é enterrada na Europa. Bento agora vive só. Um dia vem visitá-lo o filho. Ressurgem as antigas suspeitas: Bento vê em Ezequiel o retrato de Escobar. Depois de permanecer no Brasil alguns dias, Ezequiel, que é apaixonado por arqueologia, parte para uma viagem de estudos no Oriente Médio, onde vem a morrer.

Sozinho, Bento resolve escrever um livro de memórias. É uma tentativa de, como ele diz, atar passado e presente, descobrir o sentido da sua vida. A tentativa revela-se frustrada. E ele decide escrever um outro livro que será uma historia dos subúrbios do Rio de Janeiro. Ou seja, melhor subúrbio que ciúmes.

Meu Deus! Meu Deus!

Eram três da manhã quando terminei a leitura. Fechei o livro mergulhado num verdadeiro turbilhão de sentimentos contraditórios. Eu não sabia o que pensar, tantas eram a reflexões que me ocorriam.

Uma coisa era certa: havia lido uma grande obra. Não, não era só isso. Eu tinha vivido uma grande experiência. Lá do passado, mestre Machado dera-me um grande presente. Que fantástico livro, o Dom Casmurro! Machado era mestre até em pequenos detalhes. Por exemplo: havia me chamado a atenção o fato de que grande parte dos sentimentos eram transmitidos através do olhar, e sobretudo através do olhar de Capitu. Para Bentinho os olhos da garota eram “olhos de ressaca”: “traziam não sei que fluido misterioso e energético, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”. Essa alusão ao mar ganha ainda mais sentido quando a gente pensa no modo como Escobar morreu, afogado.

É o olhar de Capitu que faz nascer o ciúme em Bento: quando, por exemplo, os dois estão conversando à janela, um jovem passa, olha e Capitu retribui o olhar; ou quando, já casados, Capitu permanece com o olhar perdido no oceano. E tudo isso culmina com o olhar, que ela lança ao Escobar morto.

Notável, sim. Notável, mas perturbador. O livro tinha mexido comigo. Eu não seria o mesmo depois de ter lido Dom Casmurro. O livro dava nome a algo que eu senti mover-se perto de mim, uma espécie de polvo com mil tentáculos que se agitava, invisível, no escuro mar dos meus tumultuados sentimentos. Ciúme era o nome dessa criatura. Que se apossa de mim como se apossara de Bentinho. Sim, como ele, eu fazia parte da tribo dos ciumentos. Eu também tinha minhas suspeitas em relação a Júlia. Suspeitas que me transtornavam, que não me deixavam em paz.

Tão perturbado eu estava que não conseguia dormir. Levantei-me da cama. À porta do meu quarto estava Sapeca, que me olhou, indecisa. Depois de um momento, contudo, pulou para meu colo. Parecia feliz; feliz, decerto por ter conseguido vencer seu ciúme, por ter conseguido se reconciliar comigo. Ah, se eu pudesse fazer a mesma coisa em relação a Júlia...

Sentado na poltrona da leitura, retomei meus pensamentos, tentando entender o que lera (ou seja, tentando entender também o que se passava comigo). Bento não conseguira vencer o seu ciúme. Por quê? Porque Capitu de fato o traíra? Ou porque sua ilusão a respeito era demasiado forte? Diabos, Machado conseguira seu objetivo: deixa-me em dúvida, como em dúvida deixara milhões de outros leitores. E o fizera de maneira muito hábil. Para começar, tudo que a gente podia saber era informado pelo próprio Bento. Um julgamento em que só o acusador falava – como chegar a um veredito, a uma conclusão?

Eu prometera que levaria para o pessoal algumas anotações escritas e até tentei colocar no papel umas idéias, mas não consegui escrever coisa alguma. Meus pensamentos estavam muito confusos para isso. Pelo menos tinha feito a minha parte: lera o livro. Talvez o grupo, como um todo, chegasse a uma conclusão. A verdade é que naquele momento eu não estava muito interessado no julgamento. Só conseguia pensar na minha relação com Júlia. E oscilava: num momento tentava me convencer de que éramos, sim, namorados, e que eu teria de respeitar a instabilidade dela, aceitá-la como era; em outros momentos, achava que estava na hora de terminar tudo, de romper relações até.

Cansado, deitei-me, e depois de rolar de um lado para outro por uma boa meia hora, finalmente adormeci. Sonhei com um tribunal, um tribunal muito estranho. O juiz era uma figura familiar: o próprio Machado de Assis, cuja foto figurava no livro que eu tinha lido. Ali estava ele, muito elegante nas suas roupas do século XIX, a barba, o pincenê- aqueles óculos presos ao nariz.

Sentou-se à mesa, bateu com o martelo, dando por aberta a sessão. Entrou o promotor da acusação – que era o Machado de Assis. Entrou o advogado de defesa – que era o Machado de Assis. Entraram os jurados, todos clones do Machado de Assis. Só faltava o réu, que não aparecia. Assistindo à cena, eu ia fazer uma pergunta do tipo: “Mas, senhor Machado, quem é o réu?”, porém desisti. Não seria impossível que ele dissesse:

- O réu, meu caro Queco, é você.

***

Acordei tarde e com maus pressentimentos, que se agravaram quando olhei para fora e vi o céu carregado, tão carregado com estivera na véspera da chuvarada que havia resultado no desastre para o Zé Fernandes. A vontade que eu tinha era de virar para o outro lado e continuar dormindo. Mas não dá para fugir dos problemas da vida, né? Levantei, lavei-me, vesti-me, tomei café e segui para o salão paroquial. O pessoal já estava lá; Júlia mal me cumprimentou, o que só me deixou ainda mais chateado. Já Vitório mostrava-se animado como sempre:

- Vamos nos reunir no intervalo, gente. Hoje vamos começar. Vamos dar a partida para a grande jornada.

No intervalo lá estávamos nós, no pátio da casa paroquial, sentados no banco que o pessoal já considerava nosso. A primeira coisa que Vitório perguntou foi se eu tinha lido o livro. Respondi que sim, ele me pediu que desse minha opinião, mas eu quis ficar para o final.

- Então eu começo – disse ele.

Respirou fundo e pronunciou-se:

- Não traiu.

E de imediato começou a listar argumentos: o Bentinho não passava de um paranóico, um cara que se julga perseguido, traído, um sujeito que vive a mercê de suas fantasias

- Ele mesmo afirma que... Deixem-me ver as palavras exatas...

Folheou suas anotações, que enchiam várias páginas do caderno:

- Aqui. “A imaginação foi a companheira de toda a minha existência”, é o que ele diz. Bom, imaginação pode ser uma coisa muito boa. Escritor tem de ter imaginação, compositor tem de ter imaginação, inventor tem de ter muita imaginação. Mas não é dessa imaginação que Bentinho está falando. A imaginação dele é doentia, gente. O Bentinho vê coisas que não existem, disso eu tenho certeza. O problema é que a gente só pode se guiar pelo que ele diz, pela maneira como ele vê as coisas. E isto complica bastante o raciocínio. Se Machado fosse o narrador, tudo bem. Machado falou, tá falado. Mas, Bentinho? Não dá para acreditar no Bentinho, na imaginação do bentinho. Aliás, acho que Machado pensava a mesma coisa quando escreveu o livro. O Machado, a gente vê, é um cara meio irônico, crítico da sociedade. Embora ele fale em nome do Bentinho, não deve ter muita afinidade com esse personagem, que era de família meio classe alta, enquanto a Capitu, como o próprio Machado, vinha de um meio pobre. Conclusão: pra mim o Machado queria mostrar que o Bentinho estava meio biruta, de tanto ciúme.

- Aí eu vou discordar de você – disse Nanda, para minha surpresa; a suave Nanda, a gentil Nanda, discordando? E maior surpresa ainda foi a opinião dela: - Eu penso que a Capitu pode, sim, ter tido um caso com o Escobar.

Diante da surpresa de Vitório, apressou-se em acrescentar:

- Não que eu ache isso um horror, de jeito nenhum. Essas coisas acontecem, a gente ta vendo isso todo dia. A mulher do Jaime não o abandonou? E o Jaime não chiou, não se desesperou, continuou vivendo a vida dele. Ele é um cara maduro, sabe que as pessoas mudam. A Capitu mudou. Em algum momento ela mudou. Apaixonou-se pelo Escobar, ou achou que estava apaixonada pelo Escobar, fizeram amor, ela engravidou... O que me parece muito significativo. Durante muito tempo ela e Bentinho não haviam tido filhos. Por quê? Meu palpite: o Bentinho não conseguia engravidar a mulher. Capitu não quis se privar da maternidade e foi em frente. Teve seu caso com Escobar e engravidou. Matou dois coelhos com uma paulada.

Vitório estava espantado: parecia estar descobrindo uma nova Nanda, meio gaiata, meio cínica. Já Júlia mal conseguia disfarçar a irritação. Amizade à parte, estava na cara que não concordava com Nanda. E, de fato, partiu para o ataque:

- Essa não, Nanda. Essa não. Nada do que você falou aconteceu. A Capitu não teve caso nenhum com o Escobar, não ficou grávida dele. É ciúme do Bentinho, ponto. O Machado mesmo diz que o cara está dominado por “um sentimento cruel e desconhecido, o puro ciúme”. Palavras do autor, não minha. Ele vai mais adiante e diz...

Consultou o caderno:

- Diz o seguinte: “Tive tais ciúmes pelo que podia estar na cabeça de minha mulher, não fora ou acima dela”. Ou seja, o cara tem ciúmes até dos pensamentos da mulher, Nanda! O Vitório tem razão: é completamente perturbado, o tal de Bentinho! Ele tem ciúmes “de tudo e de todos”; palavras dele, heim? Palavras dele, não minhas. E também confessa: “Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança”. E, note, o cara sabe que está confuso, que pode estar vendo coisas, mas não se dá por vencido “Não é claro isto, mas nem tudo é claro na vida ou nos livros”. Também reconhece a sua “fraca memória”. Agora, é claro que um cara que não confia nem na própria memória não pode confiar na mulher. Lá pelas tantas ele está inventando coisas, coisas que nem sabe se aconteceram ou não.

Disse e sorriu, triunfante, decerto achando que tinha liquidado os argumentos de Nanda. Estava enganada. A garota voltou à carga, apresentando outras evidências:

- E aquelas duas vezes em que Escobar visita Capitu em casa, na ausência de Bentinho? Você não acha isto suspeito, Júlia? Mas para mim a maior prova de que Ezequiel é filho de Escobar é a semelhança entre os dois. Muita coincidência, né, minha amiga? Muita coincidência. Eu só quero lembrar aquela frase que o povo diz há muito tempo e que o livro aliás cita: “O filho é a cara do pai”.

Agora Vitório entrava na discussão:

- As visitas não provam nada, Nanda. Tanto que a Capitu acaba contando ao Bentinho que Escobar veio visitá-la e diz que só não falou antes para que o marido não ficasse desconfiado. Ela sabia que o cara era ciumento.

- E na segunda visita? – Nanda não se deixava convencer. – Vou lembrar a você: Bento volta da ópera e encontra Escobar na sua própria casa. Apareceu ali, sem mais nem menos; na ausência do marido, vem visitar a mulher, coisa muito suspeita. Bento, numa boa, numa boa, heim?, não comenta nada e até insiste para que o amigo fique. Mas Escobar, que decerto já fez o que tinha que fazer, dá uma desculpa e se manda. Claro, ele não é trouxa. Aí o Bento fica se perguntando: por que, mesmo, a Capitu não foi comigo ao teatro? Doença, era a desculpa que ela tinha dado. Só que quando Bento entra, vê que a Capitu não parece doente coisa nenhuma. A Capitu mente. Aliás, pra mim ela tem outra por dentro. É pobre, é de família humilde, mas tem suas ambições. Prova disso é aquela parte em que ela aconselha o Bentinho sobre como lhe dar com o José Dias: “Mostre que há de vir ser dono da casa, mostre que quer e que pode”. Pra fraquinha desamparada, a Capitu não dá. Ela aí está se revelando mandona.

Interrompeu-se ofegante, mas logo retomou a argumentação:

- Tem mais uma prova, no velório do Escobar a Capitu... Vou ler a frase: “Olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lagrimas poucas e caladas...”.

- Mas Escobar era amigo deles! – interveio Júlia, exaltada. – se morresse um amigo seu, você não choraria? Essa não, Nanda. Essa não. Você choraria, tenho certeza.

- Pode ser – replicou Nanda. – Mas, já que você entrou na discussão, quero lhe lembrar que você ainda não disse nada sobre aquele argumento importante que eu usei.

- Qual argumento?

- A semelhança entre o menino Ezequiel e Escobar.

Até aquele momento, nós estávamos todos sentados num banco do pátio. Mas aí Júlia se pôs de pé, brava:

- Semelhança não quer dizer nada, querida. Nanda. Tem muita gente que é parecida e não é nem parente. O próprio Machado admite isso quando fala da semelhança de Capitu com a mãe de Sancha. Lembra do comentário do pai de Sancha? Lembra? Ah, não lembra. Mas eu anotei. Está aqui.

Consultou as anotações:

- “Na vida há dessas semelhanças assim esquisitas”, é o que ele diz.

Calou-se, com uma expressão triunfante no rosto. Vitório olhou-a, ela olhou Vitório. E o olhar que trocaram me encheu de amargura. Não era só o olhar de parceiros numa disputa; era um olhar cúmplice, não sei se vocês me entendem. Senti-me como Bentinho: traído. Eu, para eles, já nem existia.

Faltava minha opinião. Vitório voltou-se para mim:

- E você? O que diz?

Eu só podia responder com a primeira palavra que me veio à mente:

- Traiu.

Pude notar que Vitório ficou perturbado. Mas, acostumado a disputas e debates, tratou de disfarçar:

- E pode se saber por que você pensa assim?

- Porque foi a conclusão a que eu cheguei, ora. - E acrescentei, de modo brusco, indelicado até: - Acho que não preciso dar explicações. Vocês já falaram bastante, já levantaram todos os argumentos.

Júlia nem sequer me olhava: bufava, furiosa. Começou a juntar suas coisas como se estivesse querendo ir para a aula, ainda que a sineta não tivesse soado. Vitório tentou uma manobra conciliatória:

- Quem sabe a gente discute de novo amanhã?

Ninguém disse nada. Sabíamos que adiar a discussão não resolveria nada, Porque claramente estávamos diante de um impasse: dois votos de um lado, dois de outro. Vitório insistiu:

- Ou quem sabe alguém muda de idéia...

Claramente estava se referindo não a mim, mas à Nanda, que no entanto parecia irredutível. O que me surpreendia. Sempre pensara nela como uma garota quietinha, tímida até. E agora a via como uma jovem de vontade férrea, dona de seu nariz e de suas opiniões. E, detalhe: bonita. Nunca me chamara a atenção pela beleza, que, naquele momento, e talvez por causa do fato de ela ter decidido se assumir como pessoa, ficava evidente.

Mas eu não estava afim de flertar. Não naquele instante, pelo menos. Sentia-me deprimido com o que tinha acontecido, com a maneira pela qual Júlia me tratava. Naquele momento tive a clara, a dolorosa sensação de que nosso namoro, precário namoro, estava definitivamente chegando a seu fim. E um cara que se sente rejeitado não tem condições de começar um namoro novo imediatamente; ao contrário, o próprio Bentinho teria resolvido seu problema com a Sancha.

Uma coisa era certa: Eu não mudaria o voto. Era a forma de demonstrar à Júlia o meu protesto (e também ao Vitório, caso estivessem, como eu suspeitava, namorando). Por tanto, era mesmo dois contra dois.

- Se pelo menos fôssemos cinco... – suspirou Vitório.

Mas não éramos: não havia ali voto decisivo. Estávamos divididos, dois de um lado, dois de outro. E, dividido, não tínhamos como enfrentar os concorrentes de Santo Inácio ou de qualquer outro lugar.

- Bem – disse Vitório, num tom conciliador -, acho que neste momento não chegaremos a uma conclusão. Estamos todos de cabeça quente. Mas não vamos esquecer uma coisa, gente: entramos nisso para conseguir grana para o colégio. Este é o nosso objetivo maior e temos de lutar por ele. Vamos dizer que o primeiro tempo do jogo terminou empatado: tudo bem, isto acontece. O que eu proponho é o seguinte: cada um de nós pensa de novo sobre o Dom Casmurro. Vamos tentar arranjar novos argumentos, quem sabe com a ajuda de professores, de nossos pais, de pessoas que a gente conhece... Ainda temos algum tempo até o julgamento.

Trocaram um olhar de novo, ele e a Júlia, e nesse momento a fúria me invadiu. “tô fora”, era o que eu dizer. Dizer não, berrar. Berrar a plenos pulmões, para que todo mundo ouvisse, o colégio, a cidade, o mundo, para que todo mundo soubesse que eu não aceitava aquela sacanagem. Saltei do banco e naquele momento desabou a chuvarada. Corremos para o salão paroquial. Não agüentei mais: as lagrimas corriam pelo meu rosto. Felizmente confundiam-se com as gotas da chuva.

12 de ago. de 2011

CAPÌTULO VI

A história faz minha cabeça.


Logo que cheguei em casa fui direto para o quarto: tinha deixado o livro na mesa-de-cabeceira.

Mas ele não estava ali. No banheiro, então? Sim, porque às vezes eu lia no banheiro, apesar das advertências do doutor Eustáquio, que não recomendava esse hábito. Não, no banheiro o livro também não estava. Uma idéia me ocorreu: vai ver, pensei, um dos meus irmãos tinha chegado e, só para sacanear, escondera o Dom Casmurro. Mas quando eles voltavam, sempre traziam uma maleta, sempre deixavam coisas jogadas. E o quarto estava como eu deixara, ninguém entrara ali; não, meus irmãos não estavam em casa. Agora: onde foi parara o danado do livro? Era a pergunta que eu fazia, já impaciente, quando ouvi um latido.

Era a Sapeca, a nossa cachorrinha. De raça indefinida, aparecera uns três anos antes no jardim de nossa casa e fora ficando, inclusive e principalmente porque eu lhe dava comida.

- Desse jeito, essa cachorra nunca vai embora – advertia minha mãe, e eu não queria que ela fosse mesmo, queria ficar com a pobrezinha. Quando lhe dei um nome, papai e mamãe perceberam que a coisa estava decidida. Só impuseram uma condição:

- Você é quem cuida dessa tal Sapeca. Você é quem vai lhe dar banho, vai levá-la pra passear, providenciar vacinas e remédios.

Concordei, claro. A verdade, porém, é que a Sapeca acabou conquistando todo mundo, inclusive meus irmãos, que, do Rio, até telefonavam perguntando por ela. Quando eu voltava pra casa, já a encontrava me esperando: queria que eu a levasse pra passear.

Sapeca era muito brincalhona. Brincava com vários objetos da casa, inclusive com aqueles com os quais ela não deveria brincar. Movido por uma súbita suspeita, corri até a área de serviço e, dito e feito, lá estava ela, com o Dom Casmurro entre as patas, mordendo-o como se fosse um osso ou uma bola de borracha.

Avancei até ela, arrebatei-lhe o livro. E aí a cachorrinha teve uma reação inesperada. Ficou imóvel, me olhando e rosnando baixinho, como que a me desafiar – um comportamento que nunca tinha exibido antes. Dei-me conta então do que estava acontecendo.

Sapeca não estivera brincando com o livro. Sapeca estivera demonstrando sua contrariedade. Porque estava com ciúmes, a cadelinha. De alguma maneira percebera, com aquele instinto que os bichos têm, que eu gostava muito do livro. Ora, se eu prestava atenção àquela “coisa”, não podia prestar atenção a ela, Sapeca. Daí sua raiva, que ela externava atacando Dom Casmurro. Com o que também procurava chamar minha atenção.

Contrariado, dei-lhe uns tapas; bati com vontade, para dizer a verdade. A coitada se encolheu, ficou num canto, tremendo. Então minha raiva deu lugar à piedade. Pobre Sapeca, que culpa tinha? Se eu próprio sentia ciúmes, como ela escaparia disso? Peguei-a no colo, acariciei-a, falei sobre o livro:

- É a história de Bentinho e Capitu, Sapeca. Uma história muito interessante...

Então tive a idéia de ler aquele pedaço que Bentinho fala da garota, e a descreve como uma garota “de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada num vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e queixo largo”. Li também a cena em que os dois se beijam: “Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até a parede com uma espécie de vertigem, sem fala...”.

Pensei que com aquilo Sapeca também se tornaria uma fã do Machado. De fato, num primeiro momento ela até ficou indecisa, orelha em pé. Mas quando minha mãe chegou Sapeca correu para ela, ganindo baixinho.

- Meu Deus – disse mamãe, agarrando-a no colo. – O que aconteceu com essa cachorra?

Contei o que tinha sucedido. Ela achou graça, mas não quis rir, para não incomodar ainda mais a pobre Sapeca.

- Deixe que eu vou passear com ela. Sei que você esta às voltas com o livro, fique lendo. Mas olhe lá: não me transformar essa cachorra num Bentinho, heim?

Achei a advertência exagerada. Mal sabia eu que um novo Bentinho já estava surgindo – em mim próprio.

Mamãe saiu, eu prometi ficar atento ao telefone, e voltei para o quarto com o livro.

Retomei a leitura e num minuto já tinha esquecido o incidente com a cachorra, completamente absorvido que estava no texto do Machado.

***

Bentinho fica muito abalado ao saber que a mãe, informada por José Dias de seu namoro com a Capitu, reafirma a promessa: o filho devera seguir carreira religiosa. Capitu e Bentinho tentam, com a ajuda de José Dias inclusive, mudar esta situação. Sem êxito. A mãe decide enviar Bentinho ao seminário, prometendo, contudo, que, se dentro de dois anos o rapaz concluir que não tem mesmo vocação para o sacerdócio, estará livre para fazer outra coisa. Bentinho vai, mas antes da partida ele e Capitu juram que irão se casar.

No seminário Bentinho conhece Ezequiel de Sousa Escobar, filho de um advogado de Curitiba. Os dois tornam-se amigos e confidentes. Bentinho leva-o para conhecer a mãe e apresenta-o a Capitu, que agora freqüenta a casa: dona Glória e ela ficaram amigas. Dona Glória até já aceita a possibilidade de um casamento; afinal, como mãe ela cumprira seu papel, enviando o rapaz para o seminário; se o filho chegara a ser padre, ou não, isto já não é seu problema.

José Dias chega a sugerir uma viagem a Roma como o objetivo de pedir ao Papa a revogação da promessa. Mas quem resolve o problema é Escobar, com um engenho argumento: Dona Glória prometera a Deus dar à Igreja um sacerdote, mas este sacerdote não precisa ser necessariamente Bentinho. Se ela adotar um órfão e lhe custear os estudos no seminário, o resultado, do ponto de vista do Senhor, será o mesmo. Consultado, o bispo concorda. Bentinho deixa o seminário, vai a São Paulo estudar e forma-se em Direito. Escobar, que também saíra do seminário, torna-se um prospero comerciante; com Sancha, colega e amiga de Capitu. Bento e Capitu também se casam.

De novo: se o livro terminasse aí, teríamos um final feliz, capaz de alegrar muitos leitores. Mas eu já sabia que o livro não teria esse final feliz, o que me dava muita pena. Bem que eu queria ver Bentinho e Capitu felizes para sempre. Mas será que isto existe? A eterna felicidade dos casai, será que existe?

Meu pai e minha mãe, por exemplo, que todo mundo via como um casal harmônico, exemplar, de vez em quando batiam boca. Nada sério, essas brigas entre casais que sempre acontecem por razões variadas e não raro fúteis: “Você mexeu nas minhas coisas, eu já disse mil vezes que não gosto que mexam nas minhas coisas”, ou então: “Não gosto do jeito como você olha para aquela vizinha”. Em criança, essas discussões me impressionavam, mas depois me dei conta de aquilo fazia parte da vida deles, que se amavam apesar das divergências. Isto era a vida real. Por que a literatura seria diferente?