CAPÍTULO XXXIII
Penteado
Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos cabelos,
colhi-os todos e entrei a alisá-los com o pente, desde a testa até as últimas pontas, que
lhe desciam à cintura. Em pé não dava jeito: não esquecestes que ela era uma nadinha
mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse.
– Senta aqui, é melhor.
Sentou-se. “Vamos ver o grande cabeleireiro”, disse-me rindo. Continuei a alisar
os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas
tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de
ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tato aqueles fios grossos, que eram
parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para
desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas
vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por
mais que eu os quisesse intermináveis. Não pedi ao céu que eles fossem tão longos
como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me
apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer
duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. Se
isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca
pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! Todo eu
estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a escrever
Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa; digamos somente uma criatura amada, palavra que
envolve todas as potências cristãs e pagãs. Enfim, acabei as duas tranças. Onde estava a
fita para atar-lhes as pontas? Em cima da mesa, um triste pedaço de fita enxovalhada.
Juntei as pontas das tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra alargando aqui,
achatando ali, até que exclamei:
– Pronto!
– Estará bom?
– Veja no espelho.
Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que
estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi
preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me
depois sobre ela, rosto a rosto, mas trocados, os olhos de um na linha da boca do outro.
Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a
dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.
– Levanta, Capitu!
Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até
que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...
Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até a parede
com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam, vi
que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse,
faltava-me língua. Preso, atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da
parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas... Não mofes dos meus
quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux (e mais era Des Grieux) não
pensava ainda na diferença dos sexos.
CAPÍTULO XXXIV
Sou Homem!
Ouvimos passos no corredor; era D. Fortunata. Capitu compôs-se depressa, tão
depressa que, quando a mãe apontou à porta, ela abanava a cabeça e ria. Nenhum laivo
amarelo, nenhuma contração de acanhamento, um riso espontâneo e claro, que ela
explicou por estas palavras alegres:
– Mamãe, olhe como este senhor cabeleireiro me penteou; pediu-me para acabar
o penteado, e fez isto. Veja que tranças!
– Que tem? acudiu a mãe, transbordando de benevolência. Está muito bem,
ninguém dirá que é de pessoa que não sabe pentear.
– O que, mamãe? Isto? redargüiu Capitu, desfazendo as tranças. Ora, mamãe!
E com um enfadamento gracioso e voluntário que às vezes tinha, pegou do pente
e alisou os cabelos para renovar o penteado. D. Fortunata chamou-lhe tonta, e disse-me
que não fizesse caso, não era nada, maluquices da filha. Olhava com ternura para mim e
para ela. Depois, parece-me que desconfiou. Vendo-me calado, enfiado, cosido à
parede, achou talvez que houvera entre nós algo mais que penteado, e sorriu por
dissimulação...
Como eu quisesse falar também para disfarçar o meu estado, chamei algumas
palavras cá de dentro, e elas acudiram de pronto, mas de atropelo, e encheram-me a
boca sem poder sair nenhuma. O beijo de Capitu fechava-me os lábios. Uma
exclamação, um simples artigo, por mais que investissem com força, não logravam
romper de dentro. E todas as palavras recolheram-se ao coração, murmurando: “Eis aqui
um que não fará grande carreira no mundo, por menos que as emoções o dominem...”
Assim, apanhados pela mãe, éramos dois e contrários, ela encobrindo com a
palavra o que eu publicava pelo silêncio. D. Fortunata tirou-me daquela hesitação,
dizendo que minha mãe me mandara chamar para a lição de latim; o Padre Cabral
estava à minha espera. Era uma saída; despedi-me e enfiei pelo corredor. Andando, ouvi
que a mãe censurava as maneiras da filha, mas a filha não dizia nada.
Corri ao meu quarto, peguei dos livros, mas não passei à sala da lição; sentei-me
na cama, recordando o penteado e o resto. Tinha estremeções, tinha uns esquecimentos
em que perdia a consciência de mim e das coisas que me rodeavam, para viver não sei
onde nem como. E tornava a mim, e via a cama, as paredes, os livros, o chão, ouvia
algum som de fora, vago, próximo ou remoto, e logo perdia tudo para sentir somente os
beiços de Capitu... Sentia-os estirados, embaixo dos meus, igualmente esticados para os
dela, e unindo-se uns aos outros. De repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca
esta palavra de orgulho:
– Sou homem!
Supus que me tivessem ouvido, porque a palavra saiu em voz alta, e corri à porta
da alcova. Não havia ninguém fora. Voltei para dentro e, baixinho, repeti que era
homem. Ainda agora tenho o eco aos meus ouvidos. O gosto que isto me deu foi
enorme. Colombo não o teve maior, descobrindo a América, e perdoai a banalidade em
favor do cabimento; com efeito, há em cada adolescente um mundo encoberto, um
almirante e um sol de outubro. Fiz outros achados mais tarde; nenhum me deslumbrou
tanto. A denúncia de José Dias alvoroçara-me, a lição do velho coqueiro também, a
vista dos nossos nomes abertos por ela no muro do quintal deu-me grande abalo, como
vistes; nada disso valeu a sensação do beijo. Podiam ser mentira ou ilusão. Sendo
verdade, eram os ossos da verdade, não eram a carne e o sangue dela. As próprias mãos,
tocadas, apertadas, como que fundidas, não podiam dizer tudo.
– Sou homem!
Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminário, mas como se pensa
em perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extinto; todos os meus nervos me
disseram que homens não são padres. O sangue era da mesma opinião. Outra vez senti
os beiços de Capitu. Talvez abuso um pouco das reminiscências osculares; mas a
saudade é isto mesmo; é o passar e repassar das memórias antigas. Ora, de todas as
daquele tempo creio que a mais doce é esta, a mais nova, a mais compreensiva, a que
inteiramente me revelou a mim mesmo. Outras tenho, vastas e numerosas, doces
também, de vária espécie, muitas intelectuais, igualmente intensas. Grande homem que
fosse, a recordação era menor que esta.
CAPÍTULO XXXV
Protonotário Apostólico
Enfim, peguei dos livros e corri à lição. Não corri precisamente; a meio caminho
parei, advertindo que devia ser muito tarde, e podiam ler-me no semblante alguma
coisa. Tive idéia de mentir, alegar uma vertigem que me houvesse deitado ao chão; mas
o susto que causaria a minha mãe fez-me rejeitá-la. Pensei em prometer algumas
dezenas de padre-nossos; tinha, porém, outra promessa em aberto e outro favor
pendente... Não, vamos ver; fui andando, ouvi vozes alegres, conversavam
ruidosamente. Quando entrei na sala, ninguém ralhou comigo.
O Padre Cabral recebera na véspera um recado do internúncio; foi ter com ele, e
soube que, por decreto pontifício, acabava de ser nomeado protonotário apostólico. Esta
distinção do Papa dera-lhe grande contentamento e a todos os nossos. Tio Cosme e
prima Justina repetiam o título com admiração; era a primeira vez que ele soava aos
nossos ouvidos, acostumados a cônegos, monsenhores, bispos, núncios, e internúncios;
mas que era protonotário apostólico? O Padre Cabral explicou que não era propriamente
o cargo da cúria, mas as honras dele. Tio Cosme viu exalçar-se no parceiro de voltareta,
e repetia:
– Protonotário apostólico!
E voltando-se para mim:
– Prepara-te, Bentinho; tu podes vir a ser protonotário apostólico.
Cabral ouvia com gosto a repetição do título. Estava em pé, dava alguns passos,
sorria ou tamborilava na tampa da boceta. O tamanho do título como que lhe dobrava a
magnificência, posto que, para ligá-lo ao nome, era demasiado comprido; esta segunda
reflexão foi tio Cosme que a fez. Padre Cabral acudiu que não era preciso dizê-lo todo,
bastava que lhe chamassem o Protonotário Cabral. Subentendia-se apostólico.
– Protonotário Cabral.
– Sim, tem razão; Protonotário Cabral.
– Mas, senhor protonotário, – acudiu prima Justina para se ir acostumando ao
uso do título, – isto o obriga a ir a Roma?
– Não, D. Justina.
– Não, são só as honras, observou minha mãe.
– Agora, não impede – disse Cabral, que continuava a refletir, – não impede que
nos casos de maior formalidade, atos públicos, cartas de cerimônia, etc., se empregue o
título inteiro: protonotário apostólico. No uso comum, basta protonotário.
– Justamente, assentiram todos.
José Dias, que entrou pouco depois de mim, aplaudiu a distinção, e recordou, a
propósito, os primeiros atos políticos de Pio IX, grandes esperanças da Itália; mas
ninguém pegou do assunto; o principal da hora e do lugar era o meu velho mestre de
latim. Eu, voltando a mim do receio, entendi que devia cumprimentá-lo também, e este
aplauso não lhe foi menos ao coração que os outros. Bateu-me na bochecha
paternalmente, e acabou dando-me férias. Era muita felicidade para uma só hora. Um
beijo e férias! Creio que o meu rosto disse isto mesmo, porque tio Cosme, sacudindo a
barriga, chamou-me peralta; mas José Dias corrigiu a alegria:
– Não tem que festejar a vadiação; o latim sempre lhe há de ser preciso, ainda
que não venha a ser padre.
Conheci aqui o meu homem. Era a primeira palavra, a semente lançada à terra,
assim de passagem, como para acostumar os ouvidos da família. Minha mãe sorriu para
mim, cheia de amor e de tristeza, mas respondeu logo:
– Há de ser padre, e padre bonito.
– Não se esqueça, mana Glória, e protonotário também. Protonotário apostólico.
– Protonotário Santiago, acentuou Cabral.
Se a intenção do meu mestre de latim era ir acostumando ao uso do título com o
nome, não sei bem; o que sei é que quando ouvi o meu nome ligado a tal título, deu-me
vontade de dizer um desaforo. Mas a vontade aqui foi antes uma idéia, uma idéia sem
língua, que se deixou ficar quieta e muda, tal como daí a pouco outras idéias... Mas
essas pedem um capítulo especial. Rematemos este dizendo que o mestre de latim falou
algum tempo da minha ordenação eclesiástica, ainda que sem grande interesse. Ele
buscava um assunto alheio para se mostrar esquecido da própria glória, mas era esta que
o deslumbrava na ocasião. Era um velho magro, sereno, dotado de qualidades boas.
Alguns defeitos tinha; o mais excelso deles era ser guloso, não propriamente glutão;
comia pouco, mas estimava o fino e o raro, e a nossa cozinha, se era simples, era menos
pobre que a dele. Assim, quando minha mãe lhe disse que viesse jantar, a fim de se lhe
fazer uma saúde, os olhos com que aceitou seriam de protonotário, mas não eram
apostólicos. E para agradar a minha mãe, novamente pegou em mim, descrevendo o
meu futuro eclesiástico, e queria saber se ia para o seminário agora, no ano próximo, e
oferecia-se a falar ao “senhor bispo”, tudo marchetado do “Protonotário Santiago”.
CAPÍTULO XXXVI
Idéia sem Pernas e Idéia sem Braços
Deixei-os, a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na aventura da
manhã. Era o que melhor podia fazer, sem latim, e até com latim. Ao cabo de cinco
minutos, lembrou-me ir correndo à casa vizinha, agarrar Capitu, desfazer-lhe as tranças,
refazê-las e concluí-las daquela maneira particular, boca sobre boca. É isto, vamos, é
isto... Idéia só! idéia sem pernas! As outras pernas não queriam correr nem andar. Muito
depois é que saíram vagarosamente e levaram-me à casa de Capitu. Quando ali cheguei,
dei com ela na sala, na mesma sala, sentada na marquesa, almofada no regaço, cosendo
em paz. Não me olhou de rosto, mas a furto e a medo, ou, se preferes a fraseologia do
agregado, oblíqua e dissimulada. As mãos pararam, depois de encravada a agulha no
pano. Eu, do lado oposto da mesa, não sabia que fizesse; e outra vez me fugiram as
palavras que trazia. Assim gastamos alguns minutos compridos, até que ela deixou
inteiramente a costura, ergueu-se e esperou-me. Fui ter com ela, e perguntei se a mãe
havia dito alguma coisa; respondeu-me que não. A boca com que respondeu era tal que
cuido haver-me provocado um gesto de aproximação. Certo é que Capitu recuou um
pouco.
Era ocasião de pegá-la, puxá-la, beijá-la... Idéia só! idéia sem braços! Os meus
ficaram caídos e mortos. Não conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, é provável que
o espírito de Satanás me fizesse dar à língua mística do Cântico um sentido direto e
natural. Então obedeceria ao primeiro versículo: “Aplique ele os lábios, dando-me o
ósculo da sua boca.” E pelo que respeita aos braços, que tinha inertes, bastaria cumprir o
vers. 6.º do cap. II: “A sua mão esquerda se pôs já debaixo da minha cabeça, e a sua
mão direita me abraçará depois.” Vedes aí a cronologia dos gestos. Era só executá-la;
mas ainda que eu conhecesse o texto, as atitudes de Capitu eram agora tão retraídas, que
não sei se não continuaria parado. Foi ela, entretanto, que me tirou daquela situação.
30 de set. de 2011
29 de set. de 2011
Leitura diária - Postagem 8/37
CAPÍTULO XXIX
O Imperador
Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O
ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à rua e
tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia
uma idéia fantástica, a idéia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a
intervenção. Não confiaria esta idéia a Capitu. “Sua Majestade pedindo, mamãe cede”,
pensei comigo.
Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim,
que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em
casa, à espera, até que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o Imperador! é o
Imperador! Toda a gente chegava às janelas para vê-lo passar, mas não passava, o coche
parava à nossa porta, o Imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na vizinhança:
“O Imperador entrou em casa de D. Glória! Que será? Que não será?” A nossa família
saía a recebê-lo; minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão. Então o Imperador,
todo risonho, sem entrar na sala ou entrando, – não me lembra bem, os sonhos são muita
vez confusos, – pedia a minha mãe que me não fizesse padre, – e ela, lisonjeada e
obediente, prometia que não.
– A medicina, – por que lhe não manda ensinar medicina?
– Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade...
– Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui bons
professores. Nunca foi à nossa Escola? É uma bela Escola. Já temos médicos de
primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A medicina é
uma grande ciência; basta só isto de dar a saúde aos outros, conhecer as moléstias,
combatê-las, vencê-las... A senhora mesma há de ter visto milagres. Seu marido morreu,
mas a doença era fatal, e ele não tinha cuidado em si... É uma bonita carreira; mande-o
para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer, Bentinho?
– Mamãe querendo...
– Quero, meu filho. Sua Majestade manda.
Então o Imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de todos
nós, a rua cheia de gente, as janelas atopetadas, um silêncio de assombro; o Imperador
entrava no coche, inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: “A medicina, a
nossa Escola.” E o coche partia entre invejas e agradecimentos.
Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das
crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de
ônibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, até destruir-se o plano e voltar-me
para as caras sem sonhos dos meus companheiros.
CAPÍTULO XXX
O Santíssimo
Terás entendido que aquela lembrança do Imperador acerca da medicina não era
mais que a sugestão da minha pouca vontade de sair do Rio de Janeiro. Os sonhos do
acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e
das nossas recordações. Vá que fosse para São Paulo, mas a Europa... Era muito longe,
muito mar e muito tempo. Viva a medicina! Iria contar estas esperanças a Capitu.
– Parece que vai sair o Santíssimo, disse alguém no ônibus. Ouço um sino; é,
creio que é em Santo Antônio dos Pobres. Pare, senhor recebedor!
O recebedor das passagens puxou a correia que ia ter ao braço do cocheiro, o
ônibus parou, e o homem desceu. José Dias deu duas voltas rápidas à cabeça, pegou-me
no braço e fez-me descer consigo. Iríamos também acompanhar o Santíssimo.
Efetivamente, o sino chamava os fiéis àquele serviço da última hora. Já havia algumas
pessoas na sacristia. Era a primeira vez que me achava em momento tão grave; obedeci,
a princípio constrangido, mas logo depois satisfeito, menos pela caridade do serviço que
por me dar um ofício de homem. Quando o sacristão começou a distribuir as opas,
entrou um sujeito esbaforido; era o meu vizinho Pádua, que também ia acompanhar o
Santíssimo. Deu conosco, veio cumprimentar-nos. José Dias fez um gesto de
aborrecido, e apenas lhe respondeu com uma palavra seca, olhando para o padre, que
lavava as mãos. Depois, como Pádua falasse ao sacristão, baixinho, aproximou-se dele;
eu fiz a mesma coisa. Pádua solicitava ao sacristão uma das varas do pálio. José Dias
pediu uma para si.
– Há só uma disponível, disse o sacristão.
– Pois essa, disse José Dias.
– Mas eu tinha pedido primeiro, aventurou Pádua.
– Pediu primeiro, mas entrou tarde, retorquiu José Dias; eu já cá estava. Leve
uma tocha.
Pádua, apesar do medo que tinha ao outro, teimava em querer a vara, tudo isto
em voz baixa e surda. O sacristão achou meio de conciliar a rivalidade, tomando a si
obter de um dos outros seguradores do pálio que cedesse a vara ao Pádua, conhecido na
paróquia, como José Dias. Assim fez; mas José Dias transtornou ainda esta combinação.
Não, uma vez que tínhamos outra vara disponível, pedia-a para mim, “jovem
seminarista”, a quem esta distinção cabia mais diretamente. Pádua ficou pálido, como as
tochas. Era pôr à prova o coração de um pai. O sacristão, que me conhecia de me ver ali
com minha mãe, aos domingos, perguntou de curioso se eu era deveras seminarista.
– Ainda não, mas vai sê-lo, respondeu José Dias, piscando o olho esquerdo para
mim, que, apesar do aviso, fiquei zangado.
– Bem, cedo ao nosso Bentinho, suspirou o pai de Capitu.
Pela minha parte, quis ceder-lhe a vara; lembrou-me que ele costumava
acompanhar o Santíssimo Sacramento aos moribundos, levando uma tocha, mas que a
última vez conseguira uma vara do pálio. A distinção especial do pálio vinha de cobrir o
vigário e o sacramento; para tocha qualquer pessoa servia. Foi ele mesmo que me
contou e explicou isto, cheio de uma glória pia e risonha. Assim fica entendido o
alvoroço com que entrara na igreja; era a segunda vez do pálio, tanto que cuidou logo de
ir pedi-lo. E nada! E tornava à tocha comum, outra vez a interinidade interrompida; o
administrador regressava ao antigo cargo... Quis ceder-lhe a vara; o agregado tolheu-me
esse ato de generosidade, e pediu ao sacristão que nos pusesse, a ele e a mim, com as
duas varas da frente, rompendo a marcha do pálio.
Opas enfiadas, tochas distribuídas e acesas, padre e cibório prontos, o sacristão
de hissope e campainha nas mãos, saiu o préstito à rua. Quando me vi com uma das
varas, passando pelos fiéis, que se ajoelhavam, fiquei comovido. Pádua roía a tocha
amargamente. É uma metáfora, não acho outra forma mais viva de dizer a dor e a
humilhação do meu vizinho. De resto, não pude mirá-lo por muito tempo, nem ao
agregado, que, paralelamente a mim, erguia a cabeça com o ar de ser ele próprio o Deus
dos exércitos. Com pouco, senti-me cansado; os braços caíam-me, felizmente a casa era
perto, na Rua do Senado.
A enferma era uma senhora viúva, tísica, tinha uma filha de quinze ou dezesseis
anos, que estava chorando à porta do quarto. A moça não era formosa, talvez nem
tivesse graça; os cabelos caíam despenteados, e as lágrimas faziam-lhe encarquilhar os
olhos. Não obstante, o total falava e cativava o coração. O vigário confessou a doente,
deu-lhe a comunhão e os santos óleos. O pranto da moça redobrou tanto que senti os
meus olhos molhados e fugi. Vim para perto de uma janela. Pobre criatura! A dor era
comunicativa em si mesma; complicada da lembrança de minha mãe, doeu-me mais, e,
quando enfim pensei em Capitu, senti um ímpeto de soluçar também, enfiei pelo
corredor, e ouvi alguém dizer-me:
– Não chore assim!
A imagem de Capitu ia comigo, e a minha imaginação, assim como lhe atribuía
lágrimas, há pouco, assim lhe encheu a boca de riso agora; via-a escrever no muro,
falar-me, andar à volta, com os braços no ar; ouvi distintamente o meu nome, de uma
doçura que me embriagou, e a voz dela. As tochas acesas, tão lúgubres na ocasião,
tinham-me ares de um lustre nupcial... Que era lustre nupcial? Não sei; era alguma coisa
contrária à morte, e não vejo outra mais que bodas. Esta nova sensação me dominou
tanto que José Dias veio a mim, e me disse ao ouvido, em voz baixa:
– Não ria assim!
Fiquei sério depressa. Era o momento da saída. Peguei da minha vara; e, como já
conhecia a distância, e agora voltávamos para a igreja, o que fazia a distância menor, –
o peso da vara era mui pequeno. Demais, o sol cá fora, a animação da rua, os rapazes da
minha idade que me fitavam cheios de inveja, as devotas que chegavam às janelas ou
entravam nos corredores e se ajoelhavam à nossa passagem, tudo me enchia a alma de
lepidez nova.
Pádua, ao contrário, ia mais humilhado. Apesar de substituído por mim, não
acabava de se consolar da tocha, da miserável tocha. E contudo havia outros que
também traziam tocha, e apenas mostravam a compostura do ato; não iam garridos, mas
também não iam tristes. Via-se que caminhavam com honra.
CAPÍTULO XXXI
Curiosidades de Capitu
Capitu preferia tudo ao seminário. Em vez de ficar abatida com a ameaça da
larga separação, se vingasse a idéia da Europa, mostrou-se satisfeita. E quando eu lhe
contei o meu sonho imperial:
– Não, Bentinho, deixemos o Imperador sossegado, replicou; fiquemos por ora
com a promessa de José Dias. Quando é que ele disse que falaria a sua mãe?
– Não marcou dia; prometeu que ia ver, que falaria logo que pudesse, e que me
pegasse com Deus.
Capitu quis que lhe repetisse as respostas todas do agregado, as alterações do
gesto e até a pirueta, que apenas lhe contara. Pedia o som das palavras. Era minuciosa e
atenta; a narração e o diálogo, tudo parecia remoer consigo. Também se pode dizer que
conferia, rotulava e pregava na memória a minha exposição. Esta imagem é porventura
melhor que a outra, mas a ótima delas é nenhuma. Capitu era Capitu, isto é, uma
criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica.
Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de
repetição.
Era também mais curiosa. As curiosidades de Capitu dão para um capítulo. Eram
de vária espécie, explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves,
outras frívolas; gostava de saber tudo. No colégio, onde, desde os sete anos, aprendera a
ler, escrever e contar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a
fazer renda; por isso mesmo, quis que prima Justina lho ensinasse. Se não estudou latim
com o Padre Cabral foi porque o padre, depois de lho propor gracejando, acabou
dizendo que latim não era língua de meninas. Capitu confessou-me um dia que esta
razão acendeu nela o desejo de o saber. Em compensação, quis aprender inglês com um
velho professor amigo do pai e parceiro deste ao solo, mas não foi adiante. Tio Cosme
ensinou-lhe gamão.
– Anda apanhar um capotinho, Capitu, dizia-lhe ele.
Capitu obedecia e jogava com facilidade, com atenção, não sei se diga com
amor. Um dia fui achá-la desenhando a lápis um retrato; dava os últimos rasgos, e
pediu-me que esperasse para ver se estava parecido. Era o de meu pai, copiado da tela
que minha mãe tinha na sala e que ainda agora está comigo. Perfeição não era; ao
contrário, os olhos saíram esbugalhados, e os cabelos eram pequenos círculos uns sobre
outros. Mas, não tendo ela rudimento algum da arte, e havendo feito aquilo de memória
em poucos minutos, achei que era obra de muito merecimento; descontai-me a idade e a
simpatia. Ainda assim, estou que aprenderia facilmente pintura, como aprendeu música
mais tarde. Já então namorava o piano da nossa casa, velho traste inútil, apenas de
estimação. Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo
saber das ruínas, das pessoas, das campanhas, o nome, a história, o lugar. José Dias
dava-lhe essas notícias com certo orgulho de erudito. A erudição deste não avultava
muito mais que a sua homeopatia de Cantagalo.
Um dia, Capitu quis saber o que eram as figuras da sala de visitas. O agregado
disse-lho sumariamente, demorando-se um pouco mais em César, com exclamações e
latins:
– César! Júlio César! Grande homem! Tu quoque, Brute?
Capitu não achava bonito o perfil de César, mas as ações citadas por José Dias
davam-lhe gestos de admiração. Ficou muito tempo com a cara virada para ele. Um
homem que podia tudo! que fazia tudo! Um homem que dava a uma senhora uma pérola
do valor de seis milhões de sestércios!
– E quanto valia cada sestércio?
José Dias, não tendo presente o valor do sestércio, respondeu entusiasmado:
– É o maior homem da história!
A pérola de César acendia os olhos de Capitu. Foi nessa ocasião que ela
perguntou a minha mãe por que é que já não usava as jóias do retrato; referia-se ao que
estava na sala, com o de meu pai; tinha um grande colar, um diadema e brincos.
– São jóias viúvas, como eu, Capitu.
– Quando é que botou estas?
– Foi pelas festas da Coroação.
– Oh! conte-me as festas da Coroação!
Sabia já o que os pais lhe haviam dito, mas naturalmente tinha para si que eles
pouco mais conheceriam do que o que se passou nas ruas. Queria a notícia das tribunas
da Capela Imperial e dos salões dos bailes. Nascera muito depois daquelas festas
célebres. Ouvindo falar várias vezes da Maioridade, teimou um dia em saber o que fora
este acontecimento; disseram-lho, e achou que o Imperador fizera muito bem em querer
subir ao trono aos quinze anos. Tudo era matéria às curiosidades de Capitu, mobílias
antigas, alfaias velhas, costumes, notícias de Itaguaí, a infância e a mocidade de minha
mãe, um dito aqui, uma lembrança dali, um adágio dacolá...
CAPÍTULO XXXII
Olhos de Ressaca
Tudo era matéria às curiosidades de Capitu. Caso houve, porém, no qual não sei
se aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as coisas, como eu. É o que contarei no outro
capítulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o agregado, fui
ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal, nem
esperou que eu lhe perguntasse pela filha.
– Está na sala, penteando o cabelo, disse-me; vá devagarzinho para lhe pregar
um susto.
Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este pode ser que não fosse; era
um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano, moldura
tosca, argolinha de latão, pendente da parede, entre as duas janelas. Se não foi ele, foi o
pé. Um ou outro, a verdade é que, apenas entrei na sala, pente, cabelos, toda ela voou
pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta:
– Há alguma coisa?
– Não há nada, respondi; vim ver você antes que o Padre Cabral chegue para a
lição. Como passou a noite?
– Eu bem. José Dias ainda não falou?
– Parece que não.
– Mas então quando fala?
– Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assunto; não vai logo de
pancada, falará assim por alto e por longe, um toque. Depois, entrará em matéria. Quer
primeiro ver se mamãe tem a resolução feita...
– Que tem, tem, interrompeu Capitu. E se não fosse preciso alguém para vencer
já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias poderá influir tanto; acho que
fará tudo, se sentir que você realmente não quer ser padre, mas poderá alcançar?... Ele é
atendido; se, porém... É um inferno isto! Você teime com ele, Bentinho.
– Teimo; hoje mesmo ele há de falar.
– Você jura?
– Juro! Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinham-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana
oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria
ver se se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o
que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas
conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento;
imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos,
constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e
sombrios, com tal expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o
que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra
da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca.
É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e
enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos
dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas,
aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas,
a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxarme
e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão
marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não
acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de
dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão
padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão
gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este
outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas.
Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente
aos cabelos de Capitu, mas então com as mãos, e disse-lhe, – para dizer alguma coisa, –
que era capaz de os pentear, se quisesse.
– Você?
– Eu mesmo.
– Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.
– Se embaraçar, você desembaraça depois.
– Vamos ver.
O Imperador
Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O
ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à rua e
tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia
uma idéia fantástica, a idéia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a
intervenção. Não confiaria esta idéia a Capitu. “Sua Majestade pedindo, mamãe cede”,
pensei comigo.
Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim,
que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em
casa, à espera, até que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o Imperador! é o
Imperador! Toda a gente chegava às janelas para vê-lo passar, mas não passava, o coche
parava à nossa porta, o Imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na vizinhança:
“O Imperador entrou em casa de D. Glória! Que será? Que não será?” A nossa família
saía a recebê-lo; minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão. Então o Imperador,
todo risonho, sem entrar na sala ou entrando, – não me lembra bem, os sonhos são muita
vez confusos, – pedia a minha mãe que me não fizesse padre, – e ela, lisonjeada e
obediente, prometia que não.
– A medicina, – por que lhe não manda ensinar medicina?
– Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade...
– Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui bons
professores. Nunca foi à nossa Escola? É uma bela Escola. Já temos médicos de
primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A medicina é
uma grande ciência; basta só isto de dar a saúde aos outros, conhecer as moléstias,
combatê-las, vencê-las... A senhora mesma há de ter visto milagres. Seu marido morreu,
mas a doença era fatal, e ele não tinha cuidado em si... É uma bonita carreira; mande-o
para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer, Bentinho?
– Mamãe querendo...
– Quero, meu filho. Sua Majestade manda.
Então o Imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de todos
nós, a rua cheia de gente, as janelas atopetadas, um silêncio de assombro; o Imperador
entrava no coche, inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: “A medicina, a
nossa Escola.” E o coche partia entre invejas e agradecimentos.
Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das
crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de
ônibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, até destruir-se o plano e voltar-me
para as caras sem sonhos dos meus companheiros.
CAPÍTULO XXX
O Santíssimo
Terás entendido que aquela lembrança do Imperador acerca da medicina não era
mais que a sugestão da minha pouca vontade de sair do Rio de Janeiro. Os sonhos do
acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e
das nossas recordações. Vá que fosse para São Paulo, mas a Europa... Era muito longe,
muito mar e muito tempo. Viva a medicina! Iria contar estas esperanças a Capitu.
– Parece que vai sair o Santíssimo, disse alguém no ônibus. Ouço um sino; é,
creio que é em Santo Antônio dos Pobres. Pare, senhor recebedor!
O recebedor das passagens puxou a correia que ia ter ao braço do cocheiro, o
ônibus parou, e o homem desceu. José Dias deu duas voltas rápidas à cabeça, pegou-me
no braço e fez-me descer consigo. Iríamos também acompanhar o Santíssimo.
Efetivamente, o sino chamava os fiéis àquele serviço da última hora. Já havia algumas
pessoas na sacristia. Era a primeira vez que me achava em momento tão grave; obedeci,
a princípio constrangido, mas logo depois satisfeito, menos pela caridade do serviço que
por me dar um ofício de homem. Quando o sacristão começou a distribuir as opas,
entrou um sujeito esbaforido; era o meu vizinho Pádua, que também ia acompanhar o
Santíssimo. Deu conosco, veio cumprimentar-nos. José Dias fez um gesto de
aborrecido, e apenas lhe respondeu com uma palavra seca, olhando para o padre, que
lavava as mãos. Depois, como Pádua falasse ao sacristão, baixinho, aproximou-se dele;
eu fiz a mesma coisa. Pádua solicitava ao sacristão uma das varas do pálio. José Dias
pediu uma para si.
– Há só uma disponível, disse o sacristão.
– Pois essa, disse José Dias.
– Mas eu tinha pedido primeiro, aventurou Pádua.
– Pediu primeiro, mas entrou tarde, retorquiu José Dias; eu já cá estava. Leve
uma tocha.
Pádua, apesar do medo que tinha ao outro, teimava em querer a vara, tudo isto
em voz baixa e surda. O sacristão achou meio de conciliar a rivalidade, tomando a si
obter de um dos outros seguradores do pálio que cedesse a vara ao Pádua, conhecido na
paróquia, como José Dias. Assim fez; mas José Dias transtornou ainda esta combinação.
Não, uma vez que tínhamos outra vara disponível, pedia-a para mim, “jovem
seminarista”, a quem esta distinção cabia mais diretamente. Pádua ficou pálido, como as
tochas. Era pôr à prova o coração de um pai. O sacristão, que me conhecia de me ver ali
com minha mãe, aos domingos, perguntou de curioso se eu era deveras seminarista.
– Ainda não, mas vai sê-lo, respondeu José Dias, piscando o olho esquerdo para
mim, que, apesar do aviso, fiquei zangado.
– Bem, cedo ao nosso Bentinho, suspirou o pai de Capitu.
Pela minha parte, quis ceder-lhe a vara; lembrou-me que ele costumava
acompanhar o Santíssimo Sacramento aos moribundos, levando uma tocha, mas que a
última vez conseguira uma vara do pálio. A distinção especial do pálio vinha de cobrir o
vigário e o sacramento; para tocha qualquer pessoa servia. Foi ele mesmo que me
contou e explicou isto, cheio de uma glória pia e risonha. Assim fica entendido o
alvoroço com que entrara na igreja; era a segunda vez do pálio, tanto que cuidou logo de
ir pedi-lo. E nada! E tornava à tocha comum, outra vez a interinidade interrompida; o
administrador regressava ao antigo cargo... Quis ceder-lhe a vara; o agregado tolheu-me
esse ato de generosidade, e pediu ao sacristão que nos pusesse, a ele e a mim, com as
duas varas da frente, rompendo a marcha do pálio.
Opas enfiadas, tochas distribuídas e acesas, padre e cibório prontos, o sacristão
de hissope e campainha nas mãos, saiu o préstito à rua. Quando me vi com uma das
varas, passando pelos fiéis, que se ajoelhavam, fiquei comovido. Pádua roía a tocha
amargamente. É uma metáfora, não acho outra forma mais viva de dizer a dor e a
humilhação do meu vizinho. De resto, não pude mirá-lo por muito tempo, nem ao
agregado, que, paralelamente a mim, erguia a cabeça com o ar de ser ele próprio o Deus
dos exércitos. Com pouco, senti-me cansado; os braços caíam-me, felizmente a casa era
perto, na Rua do Senado.
A enferma era uma senhora viúva, tísica, tinha uma filha de quinze ou dezesseis
anos, que estava chorando à porta do quarto. A moça não era formosa, talvez nem
tivesse graça; os cabelos caíam despenteados, e as lágrimas faziam-lhe encarquilhar os
olhos. Não obstante, o total falava e cativava o coração. O vigário confessou a doente,
deu-lhe a comunhão e os santos óleos. O pranto da moça redobrou tanto que senti os
meus olhos molhados e fugi. Vim para perto de uma janela. Pobre criatura! A dor era
comunicativa em si mesma; complicada da lembrança de minha mãe, doeu-me mais, e,
quando enfim pensei em Capitu, senti um ímpeto de soluçar também, enfiei pelo
corredor, e ouvi alguém dizer-me:
– Não chore assim!
A imagem de Capitu ia comigo, e a minha imaginação, assim como lhe atribuía
lágrimas, há pouco, assim lhe encheu a boca de riso agora; via-a escrever no muro,
falar-me, andar à volta, com os braços no ar; ouvi distintamente o meu nome, de uma
doçura que me embriagou, e a voz dela. As tochas acesas, tão lúgubres na ocasião,
tinham-me ares de um lustre nupcial... Que era lustre nupcial? Não sei; era alguma coisa
contrária à morte, e não vejo outra mais que bodas. Esta nova sensação me dominou
tanto que José Dias veio a mim, e me disse ao ouvido, em voz baixa:
– Não ria assim!
Fiquei sério depressa. Era o momento da saída. Peguei da minha vara; e, como já
conhecia a distância, e agora voltávamos para a igreja, o que fazia a distância menor, –
o peso da vara era mui pequeno. Demais, o sol cá fora, a animação da rua, os rapazes da
minha idade que me fitavam cheios de inveja, as devotas que chegavam às janelas ou
entravam nos corredores e se ajoelhavam à nossa passagem, tudo me enchia a alma de
lepidez nova.
Pádua, ao contrário, ia mais humilhado. Apesar de substituído por mim, não
acabava de se consolar da tocha, da miserável tocha. E contudo havia outros que
também traziam tocha, e apenas mostravam a compostura do ato; não iam garridos, mas
também não iam tristes. Via-se que caminhavam com honra.
CAPÍTULO XXXI
Curiosidades de Capitu
Capitu preferia tudo ao seminário. Em vez de ficar abatida com a ameaça da
larga separação, se vingasse a idéia da Europa, mostrou-se satisfeita. E quando eu lhe
contei o meu sonho imperial:
– Não, Bentinho, deixemos o Imperador sossegado, replicou; fiquemos por ora
com a promessa de José Dias. Quando é que ele disse que falaria a sua mãe?
– Não marcou dia; prometeu que ia ver, que falaria logo que pudesse, e que me
pegasse com Deus.
Capitu quis que lhe repetisse as respostas todas do agregado, as alterações do
gesto e até a pirueta, que apenas lhe contara. Pedia o som das palavras. Era minuciosa e
atenta; a narração e o diálogo, tudo parecia remoer consigo. Também se pode dizer que
conferia, rotulava e pregava na memória a minha exposição. Esta imagem é porventura
melhor que a outra, mas a ótima delas é nenhuma. Capitu era Capitu, isto é, uma
criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica.
Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de
repetição.
Era também mais curiosa. As curiosidades de Capitu dão para um capítulo. Eram
de vária espécie, explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves,
outras frívolas; gostava de saber tudo. No colégio, onde, desde os sete anos, aprendera a
ler, escrever e contar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a
fazer renda; por isso mesmo, quis que prima Justina lho ensinasse. Se não estudou latim
com o Padre Cabral foi porque o padre, depois de lho propor gracejando, acabou
dizendo que latim não era língua de meninas. Capitu confessou-me um dia que esta
razão acendeu nela o desejo de o saber. Em compensação, quis aprender inglês com um
velho professor amigo do pai e parceiro deste ao solo, mas não foi adiante. Tio Cosme
ensinou-lhe gamão.
– Anda apanhar um capotinho, Capitu, dizia-lhe ele.
Capitu obedecia e jogava com facilidade, com atenção, não sei se diga com
amor. Um dia fui achá-la desenhando a lápis um retrato; dava os últimos rasgos, e
pediu-me que esperasse para ver se estava parecido. Era o de meu pai, copiado da tela
que minha mãe tinha na sala e que ainda agora está comigo. Perfeição não era; ao
contrário, os olhos saíram esbugalhados, e os cabelos eram pequenos círculos uns sobre
outros. Mas, não tendo ela rudimento algum da arte, e havendo feito aquilo de memória
em poucos minutos, achei que era obra de muito merecimento; descontai-me a idade e a
simpatia. Ainda assim, estou que aprenderia facilmente pintura, como aprendeu música
mais tarde. Já então namorava o piano da nossa casa, velho traste inútil, apenas de
estimação. Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo
saber das ruínas, das pessoas, das campanhas, o nome, a história, o lugar. José Dias
dava-lhe essas notícias com certo orgulho de erudito. A erudição deste não avultava
muito mais que a sua homeopatia de Cantagalo.
Um dia, Capitu quis saber o que eram as figuras da sala de visitas. O agregado
disse-lho sumariamente, demorando-se um pouco mais em César, com exclamações e
latins:
– César! Júlio César! Grande homem! Tu quoque, Brute?
Capitu não achava bonito o perfil de César, mas as ações citadas por José Dias
davam-lhe gestos de admiração. Ficou muito tempo com a cara virada para ele. Um
homem que podia tudo! que fazia tudo! Um homem que dava a uma senhora uma pérola
do valor de seis milhões de sestércios!
– E quanto valia cada sestércio?
José Dias, não tendo presente o valor do sestércio, respondeu entusiasmado:
– É o maior homem da história!
A pérola de César acendia os olhos de Capitu. Foi nessa ocasião que ela
perguntou a minha mãe por que é que já não usava as jóias do retrato; referia-se ao que
estava na sala, com o de meu pai; tinha um grande colar, um diadema e brincos.
– São jóias viúvas, como eu, Capitu.
– Quando é que botou estas?
– Foi pelas festas da Coroação.
– Oh! conte-me as festas da Coroação!
Sabia já o que os pais lhe haviam dito, mas naturalmente tinha para si que eles
pouco mais conheceriam do que o que se passou nas ruas. Queria a notícia das tribunas
da Capela Imperial e dos salões dos bailes. Nascera muito depois daquelas festas
célebres. Ouvindo falar várias vezes da Maioridade, teimou um dia em saber o que fora
este acontecimento; disseram-lho, e achou que o Imperador fizera muito bem em querer
subir ao trono aos quinze anos. Tudo era matéria às curiosidades de Capitu, mobílias
antigas, alfaias velhas, costumes, notícias de Itaguaí, a infância e a mocidade de minha
mãe, um dito aqui, uma lembrança dali, um adágio dacolá...
CAPÍTULO XXXII
Olhos de Ressaca
Tudo era matéria às curiosidades de Capitu. Caso houve, porém, no qual não sei
se aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as coisas, como eu. É o que contarei no outro
capítulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o agregado, fui
ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal, nem
esperou que eu lhe perguntasse pela filha.
– Está na sala, penteando o cabelo, disse-me; vá devagarzinho para lhe pregar
um susto.
Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este pode ser que não fosse; era
um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano, moldura
tosca, argolinha de latão, pendente da parede, entre as duas janelas. Se não foi ele, foi o
pé. Um ou outro, a verdade é que, apenas entrei na sala, pente, cabelos, toda ela voou
pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta:
– Há alguma coisa?
– Não há nada, respondi; vim ver você antes que o Padre Cabral chegue para a
lição. Como passou a noite?
– Eu bem. José Dias ainda não falou?
– Parece que não.
– Mas então quando fala?
– Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assunto; não vai logo de
pancada, falará assim por alto e por longe, um toque. Depois, entrará em matéria. Quer
primeiro ver se mamãe tem a resolução feita...
– Que tem, tem, interrompeu Capitu. E se não fosse preciso alguém para vencer
já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias poderá influir tanto; acho que
fará tudo, se sentir que você realmente não quer ser padre, mas poderá alcançar?... Ele é
atendido; se, porém... É um inferno isto! Você teime com ele, Bentinho.
– Teimo; hoje mesmo ele há de falar.
– Você jura?
– Juro! Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinham-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana
oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria
ver se se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o
que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas
conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento;
imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos,
constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e
sombrios, com tal expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o
que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra
da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca.
É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e
enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos
dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas,
aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas,
a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxarme
e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão
marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não
acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de
dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão
padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão
gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este
outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas.
Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente
aos cabelos de Capitu, mas então com as mãos, e disse-lhe, – para dizer alguma coisa, –
que era capaz de os pentear, se quisesse.
– Você?
– Eu mesmo.
– Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.
– Se embaraçar, você desembaraça depois.
– Vamos ver.
27 de set. de 2011
Leitura diária - Postagem 7/37
CAPÍTULO XXV
No Passeio Público
Entramos no Passeio Público. Algumas caras velhas, outras doentes ou só vadias
espalhavam-se melancolicamente no caminho que vai da porta ao terraço. Seguimos
para o terraço. Andando, para me dar ânimo, falei do jardim:
– Há muito tempo que não venho aqui, talvez um ano.
– Perdoe-me, atalhou ele, não há três meses que esteve aqui com o nosso vizinho
Pádua; não se lembra?
– É verdade, mas foi tão de passagem...
– Ele pediu a sua mãe que o deixasse trazer consigo, e ela, que é boa como a
mãe de Deus, consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto, não é bonito que você ande
com o Pádua na rua.
– Mas eu andei algumas vezes...
– Quando era mais jovem; era criança, era natural, ele podia passar por criado.
Mas você está ficando moço, e ele tomando confiança. D. Glória, afinal, não pode
gostar disto. A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo
lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada.
Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! a adulação!
D. Fortunata merece estima, e ele não nego que seja honesto, tem um bom emprego,
possui a casa em que mora, mas honestidade e estima não bastam, e as outras qualidades
perdem muito de valor com as más companhias em que ele anda. Pádua tem uma
tendência para gente reles. Em lhe cheirando a homem chulo é com ele. Não digo isto
por ódio, nem porque ele fale mal de mim e se ria, como se riu, há dias, dos meus
sapatos acalcanhados...
– Perdão, interrompi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse mal do
senhor; pelo contrário, um dia, não há muito tempo, disse ele a um sujeito, em minha
presença, que o senhor era “um homem de capacidade e sabia falar como um deputado
nas câmaras”.
José Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforço grande e fechou outra vez o
rosto; depois replicou:
– Não lhe agradeço nada. Outros, de melhor sangue, me têm feito o favor de
juízos altos. E nada disso impede que ele seja o que lhe digo.
Tínhamos outra vez andado, subimos ao terraço, e olhamos para o mar.
– Vejo que o senhor não quer senão o meu benefício, disse eu depois de alguns
instantes.
– Pois que outra coisa, Bentinho?
– Neste caso, peço-lhe um favor.
– Um favor? Mande, ordene, que é?
– Mamãe...
Durante algum tempo não pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de cor. José
Dias tornou a perguntar o que era, sacudia-me com brandura, levantava-me o queixo e
espetava os olhos em mim, ansioso também, como a prima Justina na véspera.
– Mamãe quê? Que é que tem mamãe?
– Mamãe quer que eu seja padre, mas eu não posso ser padre, disse finalmente.
José Dias endireitou-se pasmado.
– Não posso, continuei eu, não menos pasmado que ele, não tenho jeito, não
gosto da vida de padre. Estou por tudo o que ela quiser; mamãe sabe que eu faço tudo o
que ela manda; estou pronto a ser o que for do seu agrado, até cocheiro de ônibus.
Padre, não; não posso ser padre. A carreira é bonita mas não é para mim.
Todo esse discurso não me saiu assim, de vez, enfiado naturalmente,
peremptório, como pode parecer do texto, mas aos pedaços, mastigado, em voz um
pouco surda e tímida. Não obstante, José Dias ouvira-o espantado. Não contava
certamente com a resistência, por mais acanhada que fosse; mas o que ainda mais o
assombrou foi esta conclusão:
– Conto com o senhor para salvar-me.
Os olhos do agregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer
que eu contava dar-lhe com a escolha da proteção não se mostrou em nenhum dos
músculos. Toda a cara dele era pouca para a estupefação. Realmente, a matéria do
discurso revelara em mim uma alma nova; eu próprio não me conhecia. Mas a palavra
final é que trouxe um vigor único. José Dias ficou aturdido. Quando os olhos tornaram
às dimensões ordinárias:
– Mas que posso eu fazer? perguntou.
– Pode muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam. Mamãe pede
muita vez os seus conselhos, não é? Tio Cosme diz que o senhor é pessoa de talento...
– São bondades, retorquiu lisonjeado. São favores de pessoas dignas, que
merecem tudo... Aí está! nunca ninguém me há de ouvir dizer nada de pessoas tais; por
quê? porque são ilustres e virtuosas. Sua mãe é uma santa, seu tio é um cavalheiro
perfeitíssimo. Tenho conhecido famílias distintas; nenhuma poderá vencer a sua em
nobreza de sentimentos. O talento que seu tio acha em mim confesso que o tenho, mas é
só um, – é o talento de saber o que é bom e digno de admiração e de apreço.
– Há de ter também o de proteger os amigos, como eu.
– Em que lhe posso valer, anjo do céu? Não hei de dissuadir sua mãe de um
projeto que é, além de promessa, a ambição e o sonho de longos anos. Quando pudesse,
é tarde. Ainda ontem fez-me o favor de dizer: “José Dias, preciso meter Bentinho no
seminário.”
Timidez não é tão ruim moeda, como parece. Se eu fosse destemido, é provável
que, com a indignação que experimentei, rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas então
seria preciso confessar-lhe que estivera à escuta, atrás da porta, e uma ação valia outra.
Contentei-me de responder que não era tarde.
– Não é tarde, ainda é tempo, se o senhor quiser.
– Se eu quiser? Mas que outra coisa quero eu, se não servi-lo? Que desejo, se
não que seja feliz, como merece?
– Pois ainda é tempo. Olhe, não é por vadiação. Estou pronto para tudo; se ela
quiser que eu estude leis, vou para São Paulo...
CAPÍTULO XXVI
As Leis São Belas
Pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo de uma idéia, – uma
idéia que o alegrou extraordinariamente. Calou-se alguns instantes; eu tinha os olhos
nele, ele voltara os seus para o lado da barra. Como insistisse:
– É tarde, disse ele; mas, para lhe provar que não há falta de vontade, irei falar a
sua mãe. Não prometo vencer, mas lutar; trabalharei com alma. Deveras, não quer ser
padre? As leis são belas, meu querido... Pode ir a São Paulo, a Pernambuco, ou ainda
mais longe. Há boas universidades por esse mundo fora. Vá para as leis, se tal é a sua
vocação. Vou falar a D. Glória, mas não conte só comigo; fale também a seu tio.
– Hei de falar.
– Pegue-se também com Deus, – com Deus e a Virgem Santíssima, concluiu
apontando para o céu.
O céu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes pássaros negros
faziam giros, avoaçando ou pairando, e desciam a roçar os pés na água, e tornavam a
erguer-se para descer novamente. Mas nem as sombras do céu, nem as danças
fantásticas dos pássaros me desviavam o espírito do meu interlocutor. Depois de lhe
responder que sim, emendei-me:
– Deus fará o que o senhor quiser.
– Não blasfeme. Deus é dono de tudo; ele é, só por si, a terra e o céu, o passado,
o presente e o futuro. Peça-lhe a sua felicidade, que eu não faço outra coisa... Uma vez
que você não pode ser padre, e prefere as leis... As leis são belas, sem desfazer da
teologia, que é melhor que tudo, como a vida eclesiástica é a mais santa... Por que não
há de ir estudar leis fora daqui? Melhor é ir logo para alguma universidade, e ao mesmo
tempo que estuda, viaja. Podemos ir juntos; veremos as terras estrangeiras, ouviremos
inglês, francês, italiano, espanhol, russo e até sueco. D. Glória provavelmente não
poderá acompanhá-lo; ainda que possa e vá, não quererá guiar os negócios, papéis,
matrículas, e cuidar de hospedarias, e andar com você de um lado para outro... Oh! as
leis são belíssimas!
– Está dito, pede a mamãe que me não meta no seminário?
– Pedir, peço, mas pedir não é alcançar. Anjo do meu coração, se vontade de
servir é poder de mandar, estamos aqui, estamos a bordo. Ah! você não imagina o que é
a Europa; oh! a Europa...
Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma das suas ambições era tornar à Europa,
falava dela muitas vezes, sem acabar de tentar minha mãe nem tio Cosme, por mais que
louvasse os ares e as belezas... Não contava com esta possibilidade de ir comigo, e lá
ficar durante a eternidade dos meus estudos.
– Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo!
CAPÍTULO XXVII
Ao Portão
Ao portão do Passeio, um mendigo estendeu-nos a mão. José Dias passou
adiante, mas eu pensei em Capitu e no seminário, tirei dois vinténs do bolso e dei-os ao
mendigo. Este beijou a moeda; eu pedi-lhe que rogasse a Deus por mim, a fim de que eu
pudesse satisfazer todos os meus desejos.
– Sim, meu devoto!
– Chamo-me Bento, acrescentei para esclarecê-lo.
CAPÍTULO XXVIII
Na Rua
José Dias ia tão contente que trocou o homem dos momentos graves, como era
na rua, pelo homem dobradiço e inquieto. Mexia-se todo, falava de tudo, fazia-me parar
a cada passo diante de um mostrador ou de um cartaz de teatro. Contava-me o enredo de
algumas peças, recitava monólogos em verso. Fez os recados todos, pagou contas,
recebeu aluguéis de casa; para si comprou um vigésimo de loteria. Afinal, o homem teso
rendeu o flexível, e passou a falar pausado, com superlativos. Não vi que a mudança era
natural; temi que houvesse mudado a resolução assentada, e entrei a tratá-lo com
palavras e gestos carinhosos, até entrarmos no ônibus.
No Passeio Público
Entramos no Passeio Público. Algumas caras velhas, outras doentes ou só vadias
espalhavam-se melancolicamente no caminho que vai da porta ao terraço. Seguimos
para o terraço. Andando, para me dar ânimo, falei do jardim:
– Há muito tempo que não venho aqui, talvez um ano.
– Perdoe-me, atalhou ele, não há três meses que esteve aqui com o nosso vizinho
Pádua; não se lembra?
– É verdade, mas foi tão de passagem...
– Ele pediu a sua mãe que o deixasse trazer consigo, e ela, que é boa como a
mãe de Deus, consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto, não é bonito que você ande
com o Pádua na rua.
– Mas eu andei algumas vezes...
– Quando era mais jovem; era criança, era natural, ele podia passar por criado.
Mas você está ficando moço, e ele tomando confiança. D. Glória, afinal, não pode
gostar disto. A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo
lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada.
Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! a adulação!
D. Fortunata merece estima, e ele não nego que seja honesto, tem um bom emprego,
possui a casa em que mora, mas honestidade e estima não bastam, e as outras qualidades
perdem muito de valor com as más companhias em que ele anda. Pádua tem uma
tendência para gente reles. Em lhe cheirando a homem chulo é com ele. Não digo isto
por ódio, nem porque ele fale mal de mim e se ria, como se riu, há dias, dos meus
sapatos acalcanhados...
– Perdão, interrompi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse mal do
senhor; pelo contrário, um dia, não há muito tempo, disse ele a um sujeito, em minha
presença, que o senhor era “um homem de capacidade e sabia falar como um deputado
nas câmaras”.
José Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforço grande e fechou outra vez o
rosto; depois replicou:
– Não lhe agradeço nada. Outros, de melhor sangue, me têm feito o favor de
juízos altos. E nada disso impede que ele seja o que lhe digo.
Tínhamos outra vez andado, subimos ao terraço, e olhamos para o mar.
– Vejo que o senhor não quer senão o meu benefício, disse eu depois de alguns
instantes.
– Pois que outra coisa, Bentinho?
– Neste caso, peço-lhe um favor.
– Um favor? Mande, ordene, que é?
– Mamãe...
Durante algum tempo não pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de cor. José
Dias tornou a perguntar o que era, sacudia-me com brandura, levantava-me o queixo e
espetava os olhos em mim, ansioso também, como a prima Justina na véspera.
– Mamãe quê? Que é que tem mamãe?
– Mamãe quer que eu seja padre, mas eu não posso ser padre, disse finalmente.
José Dias endireitou-se pasmado.
– Não posso, continuei eu, não menos pasmado que ele, não tenho jeito, não
gosto da vida de padre. Estou por tudo o que ela quiser; mamãe sabe que eu faço tudo o
que ela manda; estou pronto a ser o que for do seu agrado, até cocheiro de ônibus.
Padre, não; não posso ser padre. A carreira é bonita mas não é para mim.
Todo esse discurso não me saiu assim, de vez, enfiado naturalmente,
peremptório, como pode parecer do texto, mas aos pedaços, mastigado, em voz um
pouco surda e tímida. Não obstante, José Dias ouvira-o espantado. Não contava
certamente com a resistência, por mais acanhada que fosse; mas o que ainda mais o
assombrou foi esta conclusão:
– Conto com o senhor para salvar-me.
Os olhos do agregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer
que eu contava dar-lhe com a escolha da proteção não se mostrou em nenhum dos
músculos. Toda a cara dele era pouca para a estupefação. Realmente, a matéria do
discurso revelara em mim uma alma nova; eu próprio não me conhecia. Mas a palavra
final é que trouxe um vigor único. José Dias ficou aturdido. Quando os olhos tornaram
às dimensões ordinárias:
– Mas que posso eu fazer? perguntou.
– Pode muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam. Mamãe pede
muita vez os seus conselhos, não é? Tio Cosme diz que o senhor é pessoa de talento...
– São bondades, retorquiu lisonjeado. São favores de pessoas dignas, que
merecem tudo... Aí está! nunca ninguém me há de ouvir dizer nada de pessoas tais; por
quê? porque são ilustres e virtuosas. Sua mãe é uma santa, seu tio é um cavalheiro
perfeitíssimo. Tenho conhecido famílias distintas; nenhuma poderá vencer a sua em
nobreza de sentimentos. O talento que seu tio acha em mim confesso que o tenho, mas é
só um, – é o talento de saber o que é bom e digno de admiração e de apreço.
– Há de ter também o de proteger os amigos, como eu.
– Em que lhe posso valer, anjo do céu? Não hei de dissuadir sua mãe de um
projeto que é, além de promessa, a ambição e o sonho de longos anos. Quando pudesse,
é tarde. Ainda ontem fez-me o favor de dizer: “José Dias, preciso meter Bentinho no
seminário.”
Timidez não é tão ruim moeda, como parece. Se eu fosse destemido, é provável
que, com a indignação que experimentei, rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas então
seria preciso confessar-lhe que estivera à escuta, atrás da porta, e uma ação valia outra.
Contentei-me de responder que não era tarde.
– Não é tarde, ainda é tempo, se o senhor quiser.
– Se eu quiser? Mas que outra coisa quero eu, se não servi-lo? Que desejo, se
não que seja feliz, como merece?
– Pois ainda é tempo. Olhe, não é por vadiação. Estou pronto para tudo; se ela
quiser que eu estude leis, vou para São Paulo...
CAPÍTULO XXVI
As Leis São Belas
Pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo de uma idéia, – uma
idéia que o alegrou extraordinariamente. Calou-se alguns instantes; eu tinha os olhos
nele, ele voltara os seus para o lado da barra. Como insistisse:
– É tarde, disse ele; mas, para lhe provar que não há falta de vontade, irei falar a
sua mãe. Não prometo vencer, mas lutar; trabalharei com alma. Deveras, não quer ser
padre? As leis são belas, meu querido... Pode ir a São Paulo, a Pernambuco, ou ainda
mais longe. Há boas universidades por esse mundo fora. Vá para as leis, se tal é a sua
vocação. Vou falar a D. Glória, mas não conte só comigo; fale também a seu tio.
– Hei de falar.
– Pegue-se também com Deus, – com Deus e a Virgem Santíssima, concluiu
apontando para o céu.
O céu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes pássaros negros
faziam giros, avoaçando ou pairando, e desciam a roçar os pés na água, e tornavam a
erguer-se para descer novamente. Mas nem as sombras do céu, nem as danças
fantásticas dos pássaros me desviavam o espírito do meu interlocutor. Depois de lhe
responder que sim, emendei-me:
– Deus fará o que o senhor quiser.
– Não blasfeme. Deus é dono de tudo; ele é, só por si, a terra e o céu, o passado,
o presente e o futuro. Peça-lhe a sua felicidade, que eu não faço outra coisa... Uma vez
que você não pode ser padre, e prefere as leis... As leis são belas, sem desfazer da
teologia, que é melhor que tudo, como a vida eclesiástica é a mais santa... Por que não
há de ir estudar leis fora daqui? Melhor é ir logo para alguma universidade, e ao mesmo
tempo que estuda, viaja. Podemos ir juntos; veremos as terras estrangeiras, ouviremos
inglês, francês, italiano, espanhol, russo e até sueco. D. Glória provavelmente não
poderá acompanhá-lo; ainda que possa e vá, não quererá guiar os negócios, papéis,
matrículas, e cuidar de hospedarias, e andar com você de um lado para outro... Oh! as
leis são belíssimas!
– Está dito, pede a mamãe que me não meta no seminário?
– Pedir, peço, mas pedir não é alcançar. Anjo do meu coração, se vontade de
servir é poder de mandar, estamos aqui, estamos a bordo. Ah! você não imagina o que é
a Europa; oh! a Europa...
Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma das suas ambições era tornar à Europa,
falava dela muitas vezes, sem acabar de tentar minha mãe nem tio Cosme, por mais que
louvasse os ares e as belezas... Não contava com esta possibilidade de ir comigo, e lá
ficar durante a eternidade dos meus estudos.
– Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo!
CAPÍTULO XXVII
Ao Portão
Ao portão do Passeio, um mendigo estendeu-nos a mão. José Dias passou
adiante, mas eu pensei em Capitu e no seminário, tirei dois vinténs do bolso e dei-os ao
mendigo. Este beijou a moeda; eu pedi-lhe que rogasse a Deus por mim, a fim de que eu
pudesse satisfazer todos os meus desejos.
– Sim, meu devoto!
– Chamo-me Bento, acrescentei para esclarecê-lo.
CAPÍTULO XXVIII
Na Rua
José Dias ia tão contente que trocou o homem dos momentos graves, como era
na rua, pelo homem dobradiço e inquieto. Mexia-se todo, falava de tudo, fazia-me parar
a cada passo diante de um mostrador ou de um cartaz de teatro. Contava-me o enredo de
algumas peças, recitava monólogos em verso. Fez os recados todos, pagou contas,
recebeu aluguéis de casa; para si comprou um vigésimo de loteria. Afinal, o homem teso
rendeu o flexível, e passou a falar pausado, com superlativos. Não vi que a mudança era
natural; temi que houvesse mudado a resolução assentada, e entrei a tratá-lo com
palavras e gestos carinhosos, até entrarmos no ônibus.
26 de set. de 2011
Leitura diária - Postagem 6/37
CAPÍTULO XXI
Prima Justina
Na varanda achei prima Justina, passeando de um lado para outro. Veio ao
patamar e perguntou-me onde estivera.
– Estive aqui ao pé, conversando com D. Fortunata, e distraí-me. É tarde, não é?
Mamãe perguntou por mim?
– Perguntou, mas eu disse que você já tinha vindo.
A mentira espantou-me, não menos que a franqueza da notícia. Não é que prima
Justina fosse de biocos, dizia francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e a
Paulo o que pensava de Pedro; mas confessar que mentira é que me pareceu novidade.
Era quadragenária, magra e pálida, boca fina e olhos curiosos. Vivia conosco por favor
de minha mãe, e também por interesse; minha mãe queria ter uma senhora íntima ao pé
de si, e antes parenta que estranha.
Passeamos alguns minutos na varanda, alumiada por um lampião. Quis saber se
eu não esquecera os projetos eclesiásticos de minha mãe, e dizendo-lhe eu que não,
inquiriu-me sobre o gosto que eu tinha à vida de padre. Respondi esquivo:
– Vida de padre é muito bonita.
– Sim, é bonita; mas o que pergunto é se você gostaria de ser padre, explicou
rindo.
– Eu gosto do que mamãe quiser.
– Prima Glória deseja muito que você se ordene, mas ainda que não desejasse,
há cá em casa quem lhe meta isso na cabeça.
– Quem é?
– Ora, quem! Quem é que há de ser? Primo Cosme não é, que não se importa
com isso; eu também não.
– José Dias? concluí.
– Naturalmente.
Enruguei a testa interrogativamente, como se não soubesse nada. Prima Justina
completou a notícia dizendo que ainda naquela tarde José Dias lembrara a minha mãe a
promessa antiga.
– Prima Glória pode ser que, em passando os dias, vá esquecendo a promessa;
mas como há de esquecer se uma pessoa estiver sempre, nos ouvidos, zás que darás,
falando do seminário? E os discursos que ele faz, os elogios da Igreja, e a vida de padre
é isto e aquilo, tudo com aquelas palavras que só ele conhece, e aquela afetação... Note
que é só para fazer mal, porque ele é tão religioso como este lampião. Pois é verdade,
ainda hoje. Você não se dê por achado... Hoje de tarde falou como você não imagina...
– Mas falou à toa? perguntei, a ver se ela contava a denúncia do meu namoro
com a vizinha.
Não contou; fez apenas um gesto como indicando que havia outra coisa que não
podia dizer. Novamente me recomendou que não me desse por achado, e recapitulou
todo o mal que pensava de José Dias, e não era pouco, um intrigante, um bajulador, um
especulador, e, apesar da casca de polidez, um grosseirão. Eu, passados alguns instantes,
disse:
– Prima Justina, a senhora era capaz de uma coisa?
– De quê?
– Era capaz de... Suponha que eu não gostasse de ser padre... a senhora podia
pedir a mamãe...
– Isso não, atalhou prontamente; prima Glória tem este negócio firme na cabeça,
e não há nada no mundo que a faça mudar de resolução; só o tempo. Você ainda era
pequenino, já ela contava isto a todas as pessoas da nossa amizade, ou só conhecidas. Lá
avivar-lhe a memória, não, que eu não trabalho para a desgraça dos outros; mas
também, pedir outra coisa, não peço. Se ela me consultasse, bem; se ela me dissesse:
“Prima Justina, você que acha?”, a minha resposta era: “Prima Glória, eu penso que, se
ele gosta de ser padre, pode ir; mas, se não gosta, o melhor é ficar.” É o que eu diria e
direi se ela me consultar algum dia. Agora, ir falar-lhe sem ser chamada, não faço.
CAPÍTULO XXII
Sensações Alheias
Não alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia ter seguido o conselho de
Capitu. Então, como eu quisesse ir para dentro, prima Justina reteve-me alguns minutos, falando do calor
e da próxima festa da Conceição, dos meus velhos oratórios, e finalmente de Capitu. Não disse mal dela;
ao contrário, insinuou-me que podia vir a ser uma moça bonita. Eu, que já a achava lindíssima, bradaria
que era a mais bela criatura do mundo, se o receio me não fizesse discreto. Entretanto, como prima
Justina se metesse a elogiar-lhe os modos, a gravidade, os costumes, o trabalho para os seus, o amor que
tinha a minha mãe, tudo isto me acendeu a ponto de elogiá-la também. Quando não era com palavra, era
com gesto de aprovação que dava a cada uma das asserções da outra, e certamente com a felicidade que
devia iluminar-me a cara. Não adverti que assim confirmava a denúncia de José Dias, ouvida por ela, à
tarde, na sala de visitas, se é que também ela não desconfiava já. Só pensei nisso na cama. Só então senti
que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me,
fazer o ofício de todos os sentidos. Ciúmes não podiam ser; entre um pirralho da minha idade e uma viúva
quarentona não havia lugar para ciúmes. É certo que, após algum tempo, modificou os elogios a Capitu, e
até lhe fez algumas críticas, disse-me que era um pouco trêfega e olhava por baixo; mas ainda assim, não
creio que fossem ciúmes. Creio antes... sim... sim, creio isto. Creio que prima Justina achou no espetáculo
das sensações alheias uma ressurreição vaga das próprias. Também se goza por influição dos lábios que
narram.
CAPÍTULO XXIII
Prazo Dado
– Preciso falar-lhe amanhã, sem falta; escolha o lugar e diga-me.
Creio que José Dias achou desusado este meu falar. O tom não me saíra tão
imperativo como eu receava, mas as palavras o eram, e o não interrogar, não pedir, não
hesitar, como era próprio da criança e do meu estilo habitual, certamente lhe deu idéia
de uma pessoa nova e de uma nova situação. Foi no corredor, quando íamos para o chá;
José Dias vinha andando cheio da leitura de Walter Scott que fizera a minha mãe e a
prima Justina. Lia cantado e compassado. Os castelos e os parques saíam maiores da
boca dele, os lagos tinham mais água e a “abóbada celeste” contava alguns milhares
mais de estrelas centelhantes. Nos diálogos, alternava o som das vozes, que eram
levemente grossas ou finas, conforme o sexo dos interlocutores, e reproduziam com
moderação a ternura e a cólera.
Ao despedir-se de mim, na varanda, disse-me ele:
– Amanhã, na rua. Tenho umas compras que fazer, você pode ir comigo, pedirei
a mamãe. É dia de lição?
– A lição foi hoje.
– Perfeitamente. Não lhe pergunto o que é; afirmo desde já que é matéria grave e
pura.
– Sim, senhor.
– Até amanhã.
Fez-se tudo o melhor possível. Houve só uma alteração: minha mãe achou o dia
quente e não consentiu que eu fosse a pé; entramos no ônibus, à porta de casa.
Não importa, disse-me José Dias; podemos apear-nos à porta do Passeio Público.
CAPÍTULO XXIV
De Mãe e de Servo
José Dias tratava-me com extremos de mãe e atenções de servo. A primeira coisa que conseguiu
logo que comecei a andar fora foi dispensar-me o pajem; fez-se pajem, ia comigo à rua. Cuidava dos
meus arranjos em casa, dos meus livros, dos meus sapatos, da minha higiene e da minha prosódia. Aos
oito anos os meus plurais careciam, alguma vez, da desinência exata, ele a corrigia, meio sério para dar
autoridade à lição, meio risonho para obter o perdão da emenda. Ajudava assim o mestre de primeiras
letras. Mais tarde, quando o Padre Cabral me ensinava latim, doutrina e história sagrada, ele assistia às
lições, fazia reflexões eclesiásticas, e, no fim, perguntava ao padre: “Não é verdade que o nosso jovem
amigo caminha depressa?” Chamava-me “um prodígio”; dizia a minha mãe ter conhecido outrora
meninos muito inteligentes, mas que eu excedia a todos esses, sem contar que, para a minha idade,
possuía já certo número de qualidades morais sólidas. Eu, posto não avaliasse todo o valor deste outro
elogio, gostava do elogio; era um elogio.
Prima Justina
Na varanda achei prima Justina, passeando de um lado para outro. Veio ao
patamar e perguntou-me onde estivera.
– Estive aqui ao pé, conversando com D. Fortunata, e distraí-me. É tarde, não é?
Mamãe perguntou por mim?
– Perguntou, mas eu disse que você já tinha vindo.
A mentira espantou-me, não menos que a franqueza da notícia. Não é que prima
Justina fosse de biocos, dizia francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e a
Paulo o que pensava de Pedro; mas confessar que mentira é que me pareceu novidade.
Era quadragenária, magra e pálida, boca fina e olhos curiosos. Vivia conosco por favor
de minha mãe, e também por interesse; minha mãe queria ter uma senhora íntima ao pé
de si, e antes parenta que estranha.
Passeamos alguns minutos na varanda, alumiada por um lampião. Quis saber se
eu não esquecera os projetos eclesiásticos de minha mãe, e dizendo-lhe eu que não,
inquiriu-me sobre o gosto que eu tinha à vida de padre. Respondi esquivo:
– Vida de padre é muito bonita.
– Sim, é bonita; mas o que pergunto é se você gostaria de ser padre, explicou
rindo.
– Eu gosto do que mamãe quiser.
– Prima Glória deseja muito que você se ordene, mas ainda que não desejasse,
há cá em casa quem lhe meta isso na cabeça.
– Quem é?
– Ora, quem! Quem é que há de ser? Primo Cosme não é, que não se importa
com isso; eu também não.
– José Dias? concluí.
– Naturalmente.
Enruguei a testa interrogativamente, como se não soubesse nada. Prima Justina
completou a notícia dizendo que ainda naquela tarde José Dias lembrara a minha mãe a
promessa antiga.
– Prima Glória pode ser que, em passando os dias, vá esquecendo a promessa;
mas como há de esquecer se uma pessoa estiver sempre, nos ouvidos, zás que darás,
falando do seminário? E os discursos que ele faz, os elogios da Igreja, e a vida de padre
é isto e aquilo, tudo com aquelas palavras que só ele conhece, e aquela afetação... Note
que é só para fazer mal, porque ele é tão religioso como este lampião. Pois é verdade,
ainda hoje. Você não se dê por achado... Hoje de tarde falou como você não imagina...
– Mas falou à toa? perguntei, a ver se ela contava a denúncia do meu namoro
com a vizinha.
Não contou; fez apenas um gesto como indicando que havia outra coisa que não
podia dizer. Novamente me recomendou que não me desse por achado, e recapitulou
todo o mal que pensava de José Dias, e não era pouco, um intrigante, um bajulador, um
especulador, e, apesar da casca de polidez, um grosseirão. Eu, passados alguns instantes,
disse:
– Prima Justina, a senhora era capaz de uma coisa?
– De quê?
– Era capaz de... Suponha que eu não gostasse de ser padre... a senhora podia
pedir a mamãe...
– Isso não, atalhou prontamente; prima Glória tem este negócio firme na cabeça,
e não há nada no mundo que a faça mudar de resolução; só o tempo. Você ainda era
pequenino, já ela contava isto a todas as pessoas da nossa amizade, ou só conhecidas. Lá
avivar-lhe a memória, não, que eu não trabalho para a desgraça dos outros; mas
também, pedir outra coisa, não peço. Se ela me consultasse, bem; se ela me dissesse:
“Prima Justina, você que acha?”, a minha resposta era: “Prima Glória, eu penso que, se
ele gosta de ser padre, pode ir; mas, se não gosta, o melhor é ficar.” É o que eu diria e
direi se ela me consultar algum dia. Agora, ir falar-lhe sem ser chamada, não faço.
CAPÍTULO XXII
Sensações Alheias
Não alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia ter seguido o conselho de
Capitu. Então, como eu quisesse ir para dentro, prima Justina reteve-me alguns minutos, falando do calor
e da próxima festa da Conceição, dos meus velhos oratórios, e finalmente de Capitu. Não disse mal dela;
ao contrário, insinuou-me que podia vir a ser uma moça bonita. Eu, que já a achava lindíssima, bradaria
que era a mais bela criatura do mundo, se o receio me não fizesse discreto. Entretanto, como prima
Justina se metesse a elogiar-lhe os modos, a gravidade, os costumes, o trabalho para os seus, o amor que
tinha a minha mãe, tudo isto me acendeu a ponto de elogiá-la também. Quando não era com palavra, era
com gesto de aprovação que dava a cada uma das asserções da outra, e certamente com a felicidade que
devia iluminar-me a cara. Não adverti que assim confirmava a denúncia de José Dias, ouvida por ela, à
tarde, na sala de visitas, se é que também ela não desconfiava já. Só pensei nisso na cama. Só então senti
que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me,
fazer o ofício de todos os sentidos. Ciúmes não podiam ser; entre um pirralho da minha idade e uma viúva
quarentona não havia lugar para ciúmes. É certo que, após algum tempo, modificou os elogios a Capitu, e
até lhe fez algumas críticas, disse-me que era um pouco trêfega e olhava por baixo; mas ainda assim, não
creio que fossem ciúmes. Creio antes... sim... sim, creio isto. Creio que prima Justina achou no espetáculo
das sensações alheias uma ressurreição vaga das próprias. Também se goza por influição dos lábios que
narram.
CAPÍTULO XXIII
Prazo Dado
– Preciso falar-lhe amanhã, sem falta; escolha o lugar e diga-me.
Creio que José Dias achou desusado este meu falar. O tom não me saíra tão
imperativo como eu receava, mas as palavras o eram, e o não interrogar, não pedir, não
hesitar, como era próprio da criança e do meu estilo habitual, certamente lhe deu idéia
de uma pessoa nova e de uma nova situação. Foi no corredor, quando íamos para o chá;
José Dias vinha andando cheio da leitura de Walter Scott que fizera a minha mãe e a
prima Justina. Lia cantado e compassado. Os castelos e os parques saíam maiores da
boca dele, os lagos tinham mais água e a “abóbada celeste” contava alguns milhares
mais de estrelas centelhantes. Nos diálogos, alternava o som das vozes, que eram
levemente grossas ou finas, conforme o sexo dos interlocutores, e reproduziam com
moderação a ternura e a cólera.
Ao despedir-se de mim, na varanda, disse-me ele:
– Amanhã, na rua. Tenho umas compras que fazer, você pode ir comigo, pedirei
a mamãe. É dia de lição?
– A lição foi hoje.
– Perfeitamente. Não lhe pergunto o que é; afirmo desde já que é matéria grave e
pura.
– Sim, senhor.
– Até amanhã.
Fez-se tudo o melhor possível. Houve só uma alteração: minha mãe achou o dia
quente e não consentiu que eu fosse a pé; entramos no ônibus, à porta de casa.
Não importa, disse-me José Dias; podemos apear-nos à porta do Passeio Público.
CAPÍTULO XXIV
De Mãe e de Servo
José Dias tratava-me com extremos de mãe e atenções de servo. A primeira coisa que conseguiu
logo que comecei a andar fora foi dispensar-me o pajem; fez-se pajem, ia comigo à rua. Cuidava dos
meus arranjos em casa, dos meus livros, dos meus sapatos, da minha higiene e da minha prosódia. Aos
oito anos os meus plurais careciam, alguma vez, da desinência exata, ele a corrigia, meio sério para dar
autoridade à lição, meio risonho para obter o perdão da emenda. Ajudava assim o mestre de primeiras
letras. Mais tarde, quando o Padre Cabral me ensinava latim, doutrina e história sagrada, ele assistia às
lições, fazia reflexões eclesiásticas, e, no fim, perguntava ao padre: “Não é verdade que o nosso jovem
amigo caminha depressa?” Chamava-me “um prodígio”; dizia a minha mãe ter conhecido outrora
meninos muito inteligentes, mas que eu excedia a todos esses, sem contar que, para a minha idade,
possuía já certo número de qualidades morais sólidas. Eu, posto não avaliasse todo o valor deste outro
elogio, gostava do elogio; era um elogio.
24 de set. de 2011
Leitura diária - Postagem 5/37
CAPÍTULO XVII
Os Vermes
“Ele fere e cura!” Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles
também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma
dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros
enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem
comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os próprios vermes dos livros,
para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles.
– Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos
absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem
amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.
Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado
palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos
fosse ainda um modo de roer o roído.
CAPÍTULO XVIII
Um Plano
Pai nem mãe foram ter conosco, quando Capitu e eu, na sala de visitas,
falávamos do seminário. Com os olhos em mim, Capitu queria saber que notícia era a
que me afligia tanto. Quando lhe disse o que era, fez-se cor de cera.
– Mas eu não quero, acudi logo, não quero entrar em seminários; não entro, é
escusado teimarem comigo; não entro.
Capitu, a princípio, não disse nada. Recolheu os olhos, meteu-os em si e deixouse
estar com as pupilas vagas e surdas, a boca entreaberta, toda parada. Então eu, para
dar força às afirmações, comecei a jurar que não seria padre. Naquele tempo jurava
muito e rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me faltasse na
hora da morte se fosse para o seminário. Capitu não parecia crer nem descrer, não
parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quis chamá-la, sacudi-la, mas faltou-me
ânimo. Essa criatura que brincara comigo, que pulara, dançara, creio até que dormira
comigo, deixava-me agora com os braços atados e medrosos. Enfim, tornou a si, mas
tinha a cara lívida, e rompeu nestas palavras furiosas:
– Beata! carola! papa-missas!
Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto de minha mãe, e minha mãe dela, que eu
não podia entender tamanha explosão. É verdade que também gostava de mim, e
naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira, coisa bastante a explicar o despeito
que lhe trazia a ameaça da separação; mas os impropérios, como entender que lhe
chamasse nomes tão feios, e principalmente para deprimir costumes religiosos, que
eram os seus? Que ela também ia à missa, e três ou quatro vezes minha mãe é que a
levou, na nossa velha sege. Também lhe dera um rosário, uma cruz de ouro e um livro
de Horas... Quis defendê-la, mas Capitu não me deixou, continuou a chamar-lhe beata e
carola, em voz tão alta que tive medo fosse ouvida dos pais. Nunca a vi tão irritada
como então; parecia disposta a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes, abanava a
cabeça... Eu, assustado, não sabia que fizesse; repetia os juramentos, prometia ir naquela
mesma noite declarar em casa que, por nada neste mundo, entraria no seminário.
– Você? Você entra.
– Não entro.
– Você verá se entra ou não.
Calou-se outra vez. Quando tornou a falar, tinha mudado; não era ainda a Capitu
do costume, mas quase. Estava séria, sem aflição, falava baixo. Quis saber a
conversação da minha casa; eu contei-lhe toda, menos a parte que lhe dizia respeito.
– E que interesse tem José Dias em lembrar isto? perguntou-me no fim.
– Acho que nenhum; foi só para fazer mal. É um sujeito muito ruim; mas, deixe
estar que me há de pagar. Quando eu for dono da casa, quem vai para a rua é ele, você
verá; não me fica um instante. Mamãe é boa demais; dá-lhe atenção demais. Parece até
que chorou.
– José Dias?
– Não, mamãe.
– Chorou por quê?
– Não sei; ouvi só dizer que ela não chorasse, que não era coisa de choro... Ele
chegou a mostrar-se arrependido, e saiu; eu então, para não ser apanhado, deixei o canto
e corri para a varanda. Mas, deixe estar, que ele me paga!
Disse isto fechando o punho, e proferi outras ameaças. Ao relembrá-las, não me
acho ridículo; a adolescência e a infância não são, neste ponto, ridículas; é um dos seus
privilégios. Este mal ou este perigo começa na mocidade, cresce na madureza e atinge o
maior grau na velhice. Aos quinze anos, há até certa graça em ameaçar muito e não
executar nada.
Capitu refletia. A reflexão não era coisa rara nela, e conheciam-se as ocasiões
pelo apertado dos olhos. Pediu-me algumas circunstâncias mais, as próprias palavras de
uns e de outros, e o tom delas. Como eu não queria dizer o ponto inicial da conversa,
que era ela mesma, não lhe pude dar toda a significação. A atenção de Capitu estava
agora particularmente nas lágrimas de minha mãe; não acabava de entendê-las. Em
meio disto, confessou que certamente não era por mal que minha mãe me queria fazer
padre; era a promessa antiga, que ela, temente a Deus, não podia deixar de cumprir.
Fiquei tão satisfeito de ver que assim espontaneamente reparava as injúrias que lhe
saíram do peito, pouco antes, que peguei da mão dela e apertei-a muito. Capitu deixouse
ir, rindo; depois a conversa entrou a cochilar e dormir. Tínhamos chegado à janela;
um preto, que, desde algum tempo, vinha apregoando cocadas, parou em frente e
perguntou:
– Sinhazinha, qué cocada hoje?
– Não, respondeu Capitu.
– Cocadinha tá boa.
– Vá-se embora, replicou ela sem rispidez.
– Dê cá! disse eu descendo o braço para receber duas.
Comprei-as, mas tive de as comer sozinho; Capitu recusou. Vi que, em meio da
crise, eu conservava um canto para as cocadas, o que tanto pode ser perfeição como
imperfeição, mas o momento não é para definições tais; fiquemos em que a minha
amiga, apesar de equilibrada e lúcida, não quis saber de doce, e gostava muito de doce.
Ao contrário, o pregão que o preto foi cantando, o pregão das velhas tardes, tão sabido
do bairro e da nossa infância:
Chora, menina, chora,
Chora, porque não tem
Vintém,
a modo que lhe deixara uma impressão aborrecida. Da toada não era; ela a sabia de cor e de longe, usava
repeti-la nos nossos jogos da puerícia, rindo, saltando, trocando os papéis comigo, ora vendendo, ora
comprando um doce ausente. Creio que a letra, destinada a picar a vaidade das crianças, foi que a enojou
agora, porque logo depois me disse:
– Se eu fosse rica, você fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa.
Dito isto, espreitou-me os olhos, mas creio que eles não lhe disseram nada, ou só
agradeceram a boa intenção. Com efeito, o sentimento era tão amigo que eu podia
escusar o extraordinário da aventura.
Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já idéias atrevidas, muito menos que
outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis,
sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos. Não sei
se me explico bem. Suponde uma concepção grande executada por meios pequenos.
Assim, para não sair do desejo vago e hipotético de me mandar para a Europa. Capitu,
se pudesse cumpri-lo, não me faria embarcar no paquete e fugir; estenderia uma fila de
canoas daqui até lá, por onde eu, parecendo ir à fortaleza da Laje em ponte movediça,
iria realmente até Bordéus, deixando minha mãe na praia, à espera. Tal era a feição
particular do caráter da minha amiga; pelo que, não admira que, combatendo os meus
projetos de resistência franca, fosse antes pelos meios brandos, pela ação do empenho,
da palavra, da persuasão lenta e diuturna, e examinasse antes as pessoas com quem
podíamos contar. Rejeitou tio Cosme; era um “boa-vida”; se não aprovava a minha
ordenação, não era capaz de dar um passo para suspendê-la. Prima Justina era melhor
que ele, e melhor que os dois seria o Padre Cabral, pela autoridade, mas o padre não
havia de trabalhar contra a Igreja; só se eu lhe confessasse que não tinha vocação...
– Posso confessar?
– Pois, sim, mas seria aparecer francamente, e o melhor é outra coisa. José
Dias...
– Que tem José Dias?
– Pode ser um bom empenho.
– Mas se foi ele mesmo que falou...
– Não importa, continuou Capitu; dirá agora outra coisa. Ele gosta muito de
você. Não lhe fale acanhado. Tudo é que você não tenha medo, mostre que há de vir a
ser dono da casa, mostre que quer e que pode. Dê-lhe bem a entender que não é favor.
Faça-lhe também elogios; ele gosta muito de ser elogiado. D. Glória presta-lhe atenção;
mas o principal não é isso; é que ele, tendo de servir a você, falará com muito mais calor
que outra pessoa.
– Não acho, não, Capitu.
– Então vá para o seminário.
– Isso não.
– Mas que se perde em experimentar? Experimentemos; faça o que lhe digo. D.
Glória pode ser que mude de resolução; se não mudar, faz-se outra coisa, mete-se então
o Padre Cabral. Você não se lembra como é que foi ao teatro pela primeira vez, há dois
meses? D. Glória não queria, e bastava isso para que José Dias não teimasse; mas ele
queria ir, e fez um discurso, lembra-se?
– Lembra-me; disse que o teatro era uma escola de costumes.
– Justo; tanto falou que sua mãe acabou consentindo, e pagou a entrada aos
dois... Ande, peça, mande. Olhe; diga-lhe que está pronto a ir estudar leis em São Paulo.
Estremeci de prazer, São Paulo era um frágil biombo, destinado a ser arredado
um dia, em vez da grossa parede espiritual e eterna. Prometi falar a José Dias nos
termos propostos. Capitu repetiu-os, acentuando alguns, como principais; e inquiria-me
depois sobre eles, a ver se entendera bem, se não trocara uns por outros. E insistia em
que pedisse com boa cara, mas assim como quem pede um copo de água a pessoa que
tem obrigação de o trazer. Conto estas minúcias para que melhor se entenda aquela
manhã da minha amiga; logo virá a tarde, e da manhã e da tarde se fará o primeiro dia,
como no Gênesis, onde se fizeram sucessivamente sete.
CAPÍTULO XIX
Sem Falta
Quando voltei a casa era noite. Vim depressa, não tanto, porém, que não
pensasse nos termos em que falaria ao agregado. Formulei o pedido de cabeça,
escolhendo as palavras que diria e o tom delas, entre seco e benévolo. Na chácara, antes
de entrar em casa, repeti-as comigo, depois em voz alta, para ver se eram adequadas e se
obedeciam às recomendações de Capitu: “Preciso falar-lhe, sem falta, amanhã; escolha
o lugar e diga-me.” Proferi-as lentamente, e mais lentamente ainda as palavras sem
falta, como para sublinhá-las. Repeti-as ainda, e então achei-as secas demais, quase
ríspidas, e, francamente, impróprias de um criançola para um homem maduro. Cuidei de
escolher outras, e parei.
Afinal disse comigo que as palavras podiam servir, tudo era dizê-las em tom que
não ofendesse. E a prova é que, repetindo-as novamente, saíram-me quase súplices.
Bastava não carregar tanto, nem adoçar muito, um meio-termo. “E Capitu tem razão,
pensei, a casa é minha, ele é um simples agregado. Jeitoso é, pode muito bem trabalhar
por mim, e desfazer o plano de mamãe.”
CAPÍTULO XX
Mil Padre-Nossos e Mil Ave-Marias
Levantei os olhos ao céu, que começava a embruscar-se, mas não foi para vê-lo
coberto ou descoberto. Era ao outro céu que eu erguia a minha alma; era ao meu
refúgio, ao meu amigo. E então disse de mim para mim:
– Prometo rezar mil padre-nossos e mil ave-marias, se José Dias arranjar que eu
não vá para o seminário.
A soma era enorme. A razão é que eu andava carregado de promessas não
cumpridas. A última foi de duzentos padre-nossos e duzentas ave-marias, se não
chovesse em certa tarde de passeio a Santa Teresa. Não choveu, mas eu não rezei as
orações. Desde pequenino acostumara-me a pedir ao céu os seus favores, mediante
orações que diria, se eles viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e à
medida que se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei aos números vinte,
trinta, cinqüenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era um modo de peitar a
vontade divina pela quantia das orações; além disso, cada promessa nova era feita e
jurada no sentido de pagar a dívida antiga. Mas vão lá matar a preguiça de uma alma
que a trazia do berço e não a sentia atenuada pela vida! O céu fazia-me o favor, eu
adiava a paga. Afinal perdi-me nas contas.
– Mil, mil, repeti comigo.
Realmente, a matéria do benefício era agora imensa, não menos que a salvação
ou o naufrágio da minha existência inteira. Mil, mil, mil. Era preciso uma soma que
pagasse os atrasados todos. Deus podia muito bem, irritado com os esquecimentos,
negar-se a ouvir-me sem muito dinheiro... Homem grave, é possível que estas agitações
de menino te enfadem, se é que não as achas ridículas. Sublimes não eram. Cogitei
muito no modo de resgatar a dívida espiritual. Não achava outra espécie em que,
mediante a intenção, tudo se cumprisse, fechando a escrituração da minha consciência
moral sem déficit. Mandar dizer cem missas, ou subir de joelhos a Ladeira da Glória
para ouvir uma, ir à Terra Santa, tudo o que as velhas escravas me contavam de
promessas célebres, tudo me acudia sem se fixar de vez no espírito. Era muito duro
subir uma ladeira de joelhos; devia feri-los por força. A Terra Santa ficava muito longe.
As missas eram numerosas, podiam empenhar-me outra vez a alma...
Os Vermes
“Ele fere e cura!” Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles
também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma
dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros
enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem
comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os próprios vermes dos livros,
para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles.
– Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos
absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem
amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.
Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado
palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos
fosse ainda um modo de roer o roído.
CAPÍTULO XVIII
Um Plano
Pai nem mãe foram ter conosco, quando Capitu e eu, na sala de visitas,
falávamos do seminário. Com os olhos em mim, Capitu queria saber que notícia era a
que me afligia tanto. Quando lhe disse o que era, fez-se cor de cera.
– Mas eu não quero, acudi logo, não quero entrar em seminários; não entro, é
escusado teimarem comigo; não entro.
Capitu, a princípio, não disse nada. Recolheu os olhos, meteu-os em si e deixouse
estar com as pupilas vagas e surdas, a boca entreaberta, toda parada. Então eu, para
dar força às afirmações, comecei a jurar que não seria padre. Naquele tempo jurava
muito e rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me faltasse na
hora da morte se fosse para o seminário. Capitu não parecia crer nem descrer, não
parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quis chamá-la, sacudi-la, mas faltou-me
ânimo. Essa criatura que brincara comigo, que pulara, dançara, creio até que dormira
comigo, deixava-me agora com os braços atados e medrosos. Enfim, tornou a si, mas
tinha a cara lívida, e rompeu nestas palavras furiosas:
– Beata! carola! papa-missas!
Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto de minha mãe, e minha mãe dela, que eu
não podia entender tamanha explosão. É verdade que também gostava de mim, e
naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira, coisa bastante a explicar o despeito
que lhe trazia a ameaça da separação; mas os impropérios, como entender que lhe
chamasse nomes tão feios, e principalmente para deprimir costumes religiosos, que
eram os seus? Que ela também ia à missa, e três ou quatro vezes minha mãe é que a
levou, na nossa velha sege. Também lhe dera um rosário, uma cruz de ouro e um livro
de Horas... Quis defendê-la, mas Capitu não me deixou, continuou a chamar-lhe beata e
carola, em voz tão alta que tive medo fosse ouvida dos pais. Nunca a vi tão irritada
como então; parecia disposta a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes, abanava a
cabeça... Eu, assustado, não sabia que fizesse; repetia os juramentos, prometia ir naquela
mesma noite declarar em casa que, por nada neste mundo, entraria no seminário.
– Você? Você entra.
– Não entro.
– Você verá se entra ou não.
Calou-se outra vez. Quando tornou a falar, tinha mudado; não era ainda a Capitu
do costume, mas quase. Estava séria, sem aflição, falava baixo. Quis saber a
conversação da minha casa; eu contei-lhe toda, menos a parte que lhe dizia respeito.
– E que interesse tem José Dias em lembrar isto? perguntou-me no fim.
– Acho que nenhum; foi só para fazer mal. É um sujeito muito ruim; mas, deixe
estar que me há de pagar. Quando eu for dono da casa, quem vai para a rua é ele, você
verá; não me fica um instante. Mamãe é boa demais; dá-lhe atenção demais. Parece até
que chorou.
– José Dias?
– Não, mamãe.
– Chorou por quê?
– Não sei; ouvi só dizer que ela não chorasse, que não era coisa de choro... Ele
chegou a mostrar-se arrependido, e saiu; eu então, para não ser apanhado, deixei o canto
e corri para a varanda. Mas, deixe estar, que ele me paga!
Disse isto fechando o punho, e proferi outras ameaças. Ao relembrá-las, não me
acho ridículo; a adolescência e a infância não são, neste ponto, ridículas; é um dos seus
privilégios. Este mal ou este perigo começa na mocidade, cresce na madureza e atinge o
maior grau na velhice. Aos quinze anos, há até certa graça em ameaçar muito e não
executar nada.
Capitu refletia. A reflexão não era coisa rara nela, e conheciam-se as ocasiões
pelo apertado dos olhos. Pediu-me algumas circunstâncias mais, as próprias palavras de
uns e de outros, e o tom delas. Como eu não queria dizer o ponto inicial da conversa,
que era ela mesma, não lhe pude dar toda a significação. A atenção de Capitu estava
agora particularmente nas lágrimas de minha mãe; não acabava de entendê-las. Em
meio disto, confessou que certamente não era por mal que minha mãe me queria fazer
padre; era a promessa antiga, que ela, temente a Deus, não podia deixar de cumprir.
Fiquei tão satisfeito de ver que assim espontaneamente reparava as injúrias que lhe
saíram do peito, pouco antes, que peguei da mão dela e apertei-a muito. Capitu deixouse
ir, rindo; depois a conversa entrou a cochilar e dormir. Tínhamos chegado à janela;
um preto, que, desde algum tempo, vinha apregoando cocadas, parou em frente e
perguntou:
– Sinhazinha, qué cocada hoje?
– Não, respondeu Capitu.
– Cocadinha tá boa.
– Vá-se embora, replicou ela sem rispidez.
– Dê cá! disse eu descendo o braço para receber duas.
Comprei-as, mas tive de as comer sozinho; Capitu recusou. Vi que, em meio da
crise, eu conservava um canto para as cocadas, o que tanto pode ser perfeição como
imperfeição, mas o momento não é para definições tais; fiquemos em que a minha
amiga, apesar de equilibrada e lúcida, não quis saber de doce, e gostava muito de doce.
Ao contrário, o pregão que o preto foi cantando, o pregão das velhas tardes, tão sabido
do bairro e da nossa infância:
Chora, menina, chora,
Chora, porque não tem
Vintém,
a modo que lhe deixara uma impressão aborrecida. Da toada não era; ela a sabia de cor e de longe, usava
repeti-la nos nossos jogos da puerícia, rindo, saltando, trocando os papéis comigo, ora vendendo, ora
comprando um doce ausente. Creio que a letra, destinada a picar a vaidade das crianças, foi que a enojou
agora, porque logo depois me disse:
– Se eu fosse rica, você fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa.
Dito isto, espreitou-me os olhos, mas creio que eles não lhe disseram nada, ou só
agradeceram a boa intenção. Com efeito, o sentimento era tão amigo que eu podia
escusar o extraordinário da aventura.
Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já idéias atrevidas, muito menos que
outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis,
sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos. Não sei
se me explico bem. Suponde uma concepção grande executada por meios pequenos.
Assim, para não sair do desejo vago e hipotético de me mandar para a Europa. Capitu,
se pudesse cumpri-lo, não me faria embarcar no paquete e fugir; estenderia uma fila de
canoas daqui até lá, por onde eu, parecendo ir à fortaleza da Laje em ponte movediça,
iria realmente até Bordéus, deixando minha mãe na praia, à espera. Tal era a feição
particular do caráter da minha amiga; pelo que, não admira que, combatendo os meus
projetos de resistência franca, fosse antes pelos meios brandos, pela ação do empenho,
da palavra, da persuasão lenta e diuturna, e examinasse antes as pessoas com quem
podíamos contar. Rejeitou tio Cosme; era um “boa-vida”; se não aprovava a minha
ordenação, não era capaz de dar um passo para suspendê-la. Prima Justina era melhor
que ele, e melhor que os dois seria o Padre Cabral, pela autoridade, mas o padre não
havia de trabalhar contra a Igreja; só se eu lhe confessasse que não tinha vocação...
– Posso confessar?
– Pois, sim, mas seria aparecer francamente, e o melhor é outra coisa. José
Dias...
– Que tem José Dias?
– Pode ser um bom empenho.
– Mas se foi ele mesmo que falou...
– Não importa, continuou Capitu; dirá agora outra coisa. Ele gosta muito de
você. Não lhe fale acanhado. Tudo é que você não tenha medo, mostre que há de vir a
ser dono da casa, mostre que quer e que pode. Dê-lhe bem a entender que não é favor.
Faça-lhe também elogios; ele gosta muito de ser elogiado. D. Glória presta-lhe atenção;
mas o principal não é isso; é que ele, tendo de servir a você, falará com muito mais calor
que outra pessoa.
– Não acho, não, Capitu.
– Então vá para o seminário.
– Isso não.
– Mas que se perde em experimentar? Experimentemos; faça o que lhe digo. D.
Glória pode ser que mude de resolução; se não mudar, faz-se outra coisa, mete-se então
o Padre Cabral. Você não se lembra como é que foi ao teatro pela primeira vez, há dois
meses? D. Glória não queria, e bastava isso para que José Dias não teimasse; mas ele
queria ir, e fez um discurso, lembra-se?
– Lembra-me; disse que o teatro era uma escola de costumes.
– Justo; tanto falou que sua mãe acabou consentindo, e pagou a entrada aos
dois... Ande, peça, mande. Olhe; diga-lhe que está pronto a ir estudar leis em São Paulo.
Estremeci de prazer, São Paulo era um frágil biombo, destinado a ser arredado
um dia, em vez da grossa parede espiritual e eterna. Prometi falar a José Dias nos
termos propostos. Capitu repetiu-os, acentuando alguns, como principais; e inquiria-me
depois sobre eles, a ver se entendera bem, se não trocara uns por outros. E insistia em
que pedisse com boa cara, mas assim como quem pede um copo de água a pessoa que
tem obrigação de o trazer. Conto estas minúcias para que melhor se entenda aquela
manhã da minha amiga; logo virá a tarde, e da manhã e da tarde se fará o primeiro dia,
como no Gênesis, onde se fizeram sucessivamente sete.
CAPÍTULO XIX
Sem Falta
Quando voltei a casa era noite. Vim depressa, não tanto, porém, que não
pensasse nos termos em que falaria ao agregado. Formulei o pedido de cabeça,
escolhendo as palavras que diria e o tom delas, entre seco e benévolo. Na chácara, antes
de entrar em casa, repeti-as comigo, depois em voz alta, para ver se eram adequadas e se
obedeciam às recomendações de Capitu: “Preciso falar-lhe, sem falta, amanhã; escolha
o lugar e diga-me.” Proferi-as lentamente, e mais lentamente ainda as palavras sem
falta, como para sublinhá-las. Repeti-as ainda, e então achei-as secas demais, quase
ríspidas, e, francamente, impróprias de um criançola para um homem maduro. Cuidei de
escolher outras, e parei.
Afinal disse comigo que as palavras podiam servir, tudo era dizê-las em tom que
não ofendesse. E a prova é que, repetindo-as novamente, saíram-me quase súplices.
Bastava não carregar tanto, nem adoçar muito, um meio-termo. “E Capitu tem razão,
pensei, a casa é minha, ele é um simples agregado. Jeitoso é, pode muito bem trabalhar
por mim, e desfazer o plano de mamãe.”
CAPÍTULO XX
Mil Padre-Nossos e Mil Ave-Marias
Levantei os olhos ao céu, que começava a embruscar-se, mas não foi para vê-lo
coberto ou descoberto. Era ao outro céu que eu erguia a minha alma; era ao meu
refúgio, ao meu amigo. E então disse de mim para mim:
– Prometo rezar mil padre-nossos e mil ave-marias, se José Dias arranjar que eu
não vá para o seminário.
A soma era enorme. A razão é que eu andava carregado de promessas não
cumpridas. A última foi de duzentos padre-nossos e duzentas ave-marias, se não
chovesse em certa tarde de passeio a Santa Teresa. Não choveu, mas eu não rezei as
orações. Desde pequenino acostumara-me a pedir ao céu os seus favores, mediante
orações que diria, se eles viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e à
medida que se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei aos números vinte,
trinta, cinqüenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era um modo de peitar a
vontade divina pela quantia das orações; além disso, cada promessa nova era feita e
jurada no sentido de pagar a dívida antiga. Mas vão lá matar a preguiça de uma alma
que a trazia do berço e não a sentia atenuada pela vida! O céu fazia-me o favor, eu
adiava a paga. Afinal perdi-me nas contas.
– Mil, mil, repeti comigo.
Realmente, a matéria do benefício era agora imensa, não menos que a salvação
ou o naufrágio da minha existência inteira. Mil, mil, mil. Era preciso uma soma que
pagasse os atrasados todos. Deus podia muito bem, irritado com os esquecimentos,
negar-se a ouvir-me sem muito dinheiro... Homem grave, é possível que estas agitações
de menino te enfadem, se é que não as achas ridículas. Sublimes não eram. Cogitei
muito no modo de resgatar a dívida espiritual. Não achava outra espécie em que,
mediante a intenção, tudo se cumprisse, fechando a escrituração da minha consciência
moral sem déficit. Mandar dizer cem missas, ou subir de joelhos a Ladeira da Glória
para ouvir uma, ir à Terra Santa, tudo o que as velhas escravas me contavam de
promessas célebres, tudo me acudia sem se fixar de vez no espírito. Era muito duro
subir uma ladeira de joelhos; devia feri-los por força. A Terra Santa ficava muito longe.
As missas eram numerosas, podiam empenhar-me outra vez a alma...
23 de set. de 2011
Leitura diária - Postagem 4/37
CAPÍTULO XIII
Capitu
De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé:
– Capitu!
E no quintal:
– Mamãe!
E outra vez na casa:
– Vem cá!
Não me pude ter. As pernas desceram-me os três degraus que davam para a
chácara, e caminharam para o quintal vizinho. Era costume delas, às tardes, e às manhãs
também. Que as pernas também são pessoas, apenas inferiores aos braços, e valem de si
mesmas, quando a cabeça não as rege por meio de idéias. As minhas chegaram ao pé do
muro. Havia ali uma porta de comunicação mandada rasgar por minha mãe, quando
Capitu e eu éramos pequenos. A porta não tinha chave nem taramela; abria-se
empurrando de um lado ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de uma pedra
pendente de uma corda. Era quase que exclusivamente nossa. Em crianças, fazíamos
visita batendo de um lado e sendo recebidos do outro com muitas mesuras. Quando as
bonecas de Capitu adoeciam, o médico era eu. Entrava no quintal dela com um pau
debaixo do braço, para imitar o bengalão do Dr. João da Costa; tomava o pulso à
doente, e pedia-lhe que mostrasse a língua. “É surda, coitada!”, exclamava Capitu.
Então eu coçava o queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe umas
sanguessugas ou dar-lhe um vomitório: era a terapêutica habitual do médico.
– Capitu.
– Mamãe!
– Deixa de estar esburacando o muro; vem cá.
A voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos fundos. Quis
passar ao quintal, mas as pernas, há pouco tão andarilhas, pareciam agora presas ao
chão. Afinal fiz um esforço, empurrei a porta, entrei. Capitu estava ao pé do muro
fronteiro, voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fê-la olhar para
trás; ao dar comigo, encostou-se ao muro, como se quisesse esconder alguma coisa.
Caminhei para ela; naturalmente levava o gesto mudado, porque ela veio a mim, e
perguntou-me inquieta:
– Que é que você tem?
– Eu? Nada.
– Nada, não; você tem alguma coisa.
Quis insistir que nada, mas não achei língua. Todo eu era olhos e coração, um
coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tirar os olhos
daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita,
meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à
outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz
reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns
ofícios rudes, eram curadas com amor; não cheiravam a sabões finos nem águas de
toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos
de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.
– Que é que você tem? repetiu.
– Não é nada, balbuciei finalmente.
E emendei logo:
– É uma notícia.
– Notícia de quê?
Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminário e espreitar a impressão que
lhe faria. Se a consternasse é que realmente gostava de mim; se não, é que não gostava.
Mas todo esse cálculo foi obscuro e rápido; senti que não poderia falar claramente, tinha
agora a vista não sei como...
– Então?
– Você sabe...
Nisto olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando, escrevendo ou
esburacando, como dissera a mãe. Vi uns riscos abertos, e lembrou-me o gesto que ela
fizera para cobri-los. Então quis vê-los de perto, e dei um passo. Capitu agarrou-me,
mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu
adiante e apagou o escrito. Foi o mesmo que acender em mim o desejo de ler o que era.
CAPÍTULO XIV
A Inscrição
Tudo o que contei no fim do outro capítulo foi obra de um instante. O que se lhe seguiu foi ainda
mais rápido. Dei um pulo, e antes que ela raspasse o muro, li estes dois nomes, abertos ao prego, e assim
dispostos:
BENTO
CAPITOLINA
Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e
ficamos a olhar um para o outro... Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três
páginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não falamos nada; o muro falou por nós.
Não nos movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegandose,
apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora exata daquele gesto. Devia tê-la
marcado; sinto a falta de uma nota escrita naquela mesma noite, e que eu poria aqui com
os erros de ortografia que trouxesse, mas não traria nenhum, tal era a diferença entre o
estudante e o adolescente. Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar;
tinha orgias de latim e era virgem de mulheres.
Não soltamos as mãos, nem elas se deixaram cair de cansadas ou de esquecidas.
Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto, tornavam a meter-se
uns pelos outros... Padre futuro, estava assim diante dela como de um altar, sendo uma
das faces a Epístola e a outra o Evangelho. A boca podia ser o cálix, os lábios a pátena.
Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguém aprende, e é a língua católica dos
homens. Não me tenhas por sacrílego, leitora minha devota; a limpeza da intenção lava
o que puder haver menos curial no estilo. Estávamos ali com o céu em nós. As mãos,
unindo os nervos, faziam das duas criaturas uma só, mas uma só criatura seráfica. Os
olhos continuaram a dizer coisas infinitas, as palavras de boca é que nem tentavam sair,
tornavam ao coração caladas como vinham...
CAPÍTULO XV
Outra Voz Repentina
Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem:
– Vocês estão jogando o siso?
Era o pai de Capitu, que estava à porta dos fundos, ao pé da mulher. Soltamos as
mãos depressa, e ficamos atrapalhados. Capitu foi ao muro, e, com o prego, disfarçadamente,
apagou os nossos nomes escritos.
– Capitu!
– Papai!
– Não me estragues o reboco do muro.
Capitu riscava sobre o riscado, para apagar bem o escrito. Pádua saiu ao quintal,
a ver o que era, mas já a filha tinha começado outra coisa, um perfil, que disse ser o
retrato dele, e tanto podia ser dele como da mãe; fê-lo rir, era o essencial. De resto, ele
chegou sem cólera, todo meigo, apesar do gesto duvidoso ou menos que duvidoso em
que nos apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e braços curtos, costas
abauladas, donde lhe veio a alcunha de Tartaruga, que José Dias lhe pôs. Ninguém lhe
chamava assim lá em casa; era só o agregado.
– Vocês estavam jogando o siso? perguntou.
Olhei para um pé de sabugueiro que ficava perto; Capitu respondeu por ambos.
– Estávamos, sim, senhor; mas Bentinho ri logo, não agüenta.
– Quando eu cheguei à porta, não ria.
– Já tinha rido das outras vezes; não pode. Papai quer ver?
E séria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto é naturalmente
sério; eu estava ainda sob a ação do que trouxe a entrada de Pádua, e não fui capaz de
rir, por mais que devesse fazê-lo, para legitimar a resposta de Capitu. Esta, cansada de
esperar, desviou o rosto, dizendo que eu não ria daquela vez por estar ao pé do pai. E
nem assim ri. Há coisas que só se aprendem tarde; é mister nascer com elas para fazêlas
cedo. E melhor é naturalmente cedo que artificialmente tarde. Capitu, após duas
voltas, foi ter com a mãe, que continuava à porta da casa, deixando-nos a mim e ao pai
encantados dela; o pai, olhando para ela e para mim, dizia-me, cheio de ternura:
– Quem dirá que esta pequena tem quatorze anos? Parece dezessete. Mamãe está
boa? continuou voltando-se inteiramente para mim.
– Está.
– Há muitos dias que não a vejo. Estou com vontade de dar um capote ao doutor,
mas não tenho podido, ando com trabalhos da repartição em casa; escrevo todas as
noites que é um desespero; negócio de relatório. Você já viu o meu gaturamo? Está ali
no fundo. Ia agora mesmo buscar a gaiola; ande ver.
Que o meu desejo era nenhum, crê-se facilmente, sem ser preciso jurar pelo céu
nem pela terra. Meu desejo era ir atrás de Capitu e falar-lhe agora do mal que nos
esperava; mas o pai era o pai, e demais amava particularmente os passarinhos. Tinha-os
de vária espécie, cor e tamanho. A área que havia no centro da casa era cercada de
gaiolas de canários, que faziam cantando um barulho de todos os diabos. Trocava
pássaros com outros amadores, comprava-os, apanhava alguns, no próprio quintal,
armando alçapões. Também, se adoeciam, tratava deles como se fossem gente.
CAPÍTULO XVI
O Administrador Interino
Pádua era empregado em repartição dependente do Ministério da Guerra. Não
ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. Demais, a casa em que
morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade dele. Comprou-a
com a sorte grande que lhe saiu num meio bilhete de loteria, dez contos de réis. A
primeira idéia do Pádua, quando lhe saiu o prêmio, foi comprar um cavalo do Cabo, um
adereço de brilhantes para a mulher, uma sepultura perpétua de família, mandar vir da
Europa alguns pássaros, etc.; mas a mulher, esta D. Fortunata que ali está à porta dos
fundos da casa, em pé, falando à filha, alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça,
os mesmos olhos claros, a mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa, e
guardar o que sobrasse para acudir às moléstias grandes. Pádua hesitou muito; afinal
teve de ceder aos conselhos de minha mãe, a quem D. Fortunata pediu auxílio. Nem foi
só nessa ocasião que minha mãe lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida ao Pádua.
Escutai; a anedota é curta.
O administrador da repartição em que Pádua trabalhava teve de ir ao Norte, em
comissão. Pádua, ou por ordem regulamentar, ou por especial designação, ficou
substituindo o administrador com os respectivos honorários. Esta mudança de fortuna
trouxe-lhe certa vertigem; era antes dos dez contos. Não se contentou de reformar a
roupa e a copa, atirou-se às despesas supérfluas, deu jóias à mulher, nos dias de festa
matava um leitão, era visto em teatros, chegou aos sapatos de verniz. Viveu assim vinte
e dois meses na suposição de uma eterna interinidade. Uma tarde entrou em nossa casa,
aflito e desvairado, ia perder o lugar, porque chegara o efetivo naquela manhã. Pediu à
minha mãe que velasse pelas infelizes que deixava; não podia sofrer a desgraça, matavase.
Minha mãe falou-lhe com bondade, mas ele não atendia a coisa nenhuma.
– Não, minha senhora, não consentirei em tal vergonha! Fazer descer a família,
tornar atrás... Já disse, mato-me! Não hei de confessar à minha gente esta miséria. E os
outros? Que dirão os vizinhos? E os amigos? E o público?
– Que público, Sr. Pádua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre-se que sua
mulher não tem outra pessoa... e que há de fazer? Pois um homem... Seja homem, ande.
Pádua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns dias, mudo,
fechado na alcova, – ou então no quintal, ao pé do poço, como se a idéia da morte
teimasse nele. D. Fortunata ralhava:
– Joãozinho, você é criança?
Mas, tanto lhe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu a pedir à
minha mãe que lhe fizesse o favor de ver se lhe salvava o marido que se queria matar.
Minha mãe foi achá-lo à beira do poço, e intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era
aquela de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de uma gratificação menos, e
perder um emprego interino? Não, senhor, devia ser homem, pai de família, imitar a
mulher e a filha... Pádua obedeceu; confessou que acharia forças para cumprir a vontade
de minha mãe.
– Vontade minha, não; é obrigação sua.
– Pois seja obrigação; não desconheço que é assim mesmo.
Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido à parede, cara no
chão. Não era o mesmo homem que estragava o chapéu em cortejar a vizinhança,
risonho, olhos no ar, antes mesmo da administração interina. Vieram as semanas, a
ferida foi sarando. Pádua começou a interessar-se pelos negócios domésticos, a cuidar
dos passarinhos, a dormir tranqüilo as noites e as tardes, a conversar e dar notícias da
rua. A serenidade regressou; atrás dela veio a alegria, um domingo, na figura de dois
amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Já ele ria, já brincava, tinha o ar do costume; a
ferida sarou de todo.
Com o tempo veio um fenômeno interessante. Pádua começou a falar da
administração interina, não somente sem as saudades dos honorários, nem o vexame da
perda, mas até com desvanecimento e orgulho. A administração ficou sendo a héjira,
donde ele contava para diante e para trás.
– No tempo em que eu era administrador...
Ou então:
– Ah! Sim, lembra-me, foi antes da minha administração, um ou dois meses
antes... Ora, espere; a minha administração começou... É isto, mês e meio antes; foi mês
e meio antes, não foi mais.
Ou ainda:
– Justamente; havia já seis meses que eu administrava...
Tal é o sabor póstumo das glórias interinas. José Dias bradava que era a vaidade
sobrevivente; mas o Padre Cabral, que levava tudo para a Escritura, dizia que com o
vizinho Pádua se dava a lição de Elifás a Jó: “Não desprezes a correção do Senhor: Ele
fere e cura.”
Capitu
De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé:
– Capitu!
E no quintal:
– Mamãe!
E outra vez na casa:
– Vem cá!
Não me pude ter. As pernas desceram-me os três degraus que davam para a
chácara, e caminharam para o quintal vizinho. Era costume delas, às tardes, e às manhãs
também. Que as pernas também são pessoas, apenas inferiores aos braços, e valem de si
mesmas, quando a cabeça não as rege por meio de idéias. As minhas chegaram ao pé do
muro. Havia ali uma porta de comunicação mandada rasgar por minha mãe, quando
Capitu e eu éramos pequenos. A porta não tinha chave nem taramela; abria-se
empurrando de um lado ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de uma pedra
pendente de uma corda. Era quase que exclusivamente nossa. Em crianças, fazíamos
visita batendo de um lado e sendo recebidos do outro com muitas mesuras. Quando as
bonecas de Capitu adoeciam, o médico era eu. Entrava no quintal dela com um pau
debaixo do braço, para imitar o bengalão do Dr. João da Costa; tomava o pulso à
doente, e pedia-lhe que mostrasse a língua. “É surda, coitada!”, exclamava Capitu.
Então eu coçava o queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe umas
sanguessugas ou dar-lhe um vomitório: era a terapêutica habitual do médico.
– Capitu.
– Mamãe!
– Deixa de estar esburacando o muro; vem cá.
A voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos fundos. Quis
passar ao quintal, mas as pernas, há pouco tão andarilhas, pareciam agora presas ao
chão. Afinal fiz um esforço, empurrei a porta, entrei. Capitu estava ao pé do muro
fronteiro, voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fê-la olhar para
trás; ao dar comigo, encostou-se ao muro, como se quisesse esconder alguma coisa.
Caminhei para ela; naturalmente levava o gesto mudado, porque ela veio a mim, e
perguntou-me inquieta:
– Que é que você tem?
– Eu? Nada.
– Nada, não; você tem alguma coisa.
Quis insistir que nada, mas não achei língua. Todo eu era olhos e coração, um
coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tirar os olhos
daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita,
meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à
outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz
reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns
ofícios rudes, eram curadas com amor; não cheiravam a sabões finos nem águas de
toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos
de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.
– Que é que você tem? repetiu.
– Não é nada, balbuciei finalmente.
E emendei logo:
– É uma notícia.
– Notícia de quê?
Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminário e espreitar a impressão que
lhe faria. Se a consternasse é que realmente gostava de mim; se não, é que não gostava.
Mas todo esse cálculo foi obscuro e rápido; senti que não poderia falar claramente, tinha
agora a vista não sei como...
– Então?
– Você sabe...
Nisto olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando, escrevendo ou
esburacando, como dissera a mãe. Vi uns riscos abertos, e lembrou-me o gesto que ela
fizera para cobri-los. Então quis vê-los de perto, e dei um passo. Capitu agarrou-me,
mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu
adiante e apagou o escrito. Foi o mesmo que acender em mim o desejo de ler o que era.
CAPÍTULO XIV
A Inscrição
Tudo o que contei no fim do outro capítulo foi obra de um instante. O que se lhe seguiu foi ainda
mais rápido. Dei um pulo, e antes que ela raspasse o muro, li estes dois nomes, abertos ao prego, e assim
dispostos:
BENTO
CAPITOLINA
Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e
ficamos a olhar um para o outro... Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três
páginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não falamos nada; o muro falou por nós.
Não nos movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegandose,
apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora exata daquele gesto. Devia tê-la
marcado; sinto a falta de uma nota escrita naquela mesma noite, e que eu poria aqui com
os erros de ortografia que trouxesse, mas não traria nenhum, tal era a diferença entre o
estudante e o adolescente. Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar;
tinha orgias de latim e era virgem de mulheres.
Não soltamos as mãos, nem elas se deixaram cair de cansadas ou de esquecidas.
Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto, tornavam a meter-se
uns pelos outros... Padre futuro, estava assim diante dela como de um altar, sendo uma
das faces a Epístola e a outra o Evangelho. A boca podia ser o cálix, os lábios a pátena.
Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguém aprende, e é a língua católica dos
homens. Não me tenhas por sacrílego, leitora minha devota; a limpeza da intenção lava
o que puder haver menos curial no estilo. Estávamos ali com o céu em nós. As mãos,
unindo os nervos, faziam das duas criaturas uma só, mas uma só criatura seráfica. Os
olhos continuaram a dizer coisas infinitas, as palavras de boca é que nem tentavam sair,
tornavam ao coração caladas como vinham...
CAPÍTULO XV
Outra Voz Repentina
Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem:
– Vocês estão jogando o siso?
Era o pai de Capitu, que estava à porta dos fundos, ao pé da mulher. Soltamos as
mãos depressa, e ficamos atrapalhados. Capitu foi ao muro, e, com o prego, disfarçadamente,
apagou os nossos nomes escritos.
– Capitu!
– Papai!
– Não me estragues o reboco do muro.
Capitu riscava sobre o riscado, para apagar bem o escrito. Pádua saiu ao quintal,
a ver o que era, mas já a filha tinha começado outra coisa, um perfil, que disse ser o
retrato dele, e tanto podia ser dele como da mãe; fê-lo rir, era o essencial. De resto, ele
chegou sem cólera, todo meigo, apesar do gesto duvidoso ou menos que duvidoso em
que nos apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e braços curtos, costas
abauladas, donde lhe veio a alcunha de Tartaruga, que José Dias lhe pôs. Ninguém lhe
chamava assim lá em casa; era só o agregado.
– Vocês estavam jogando o siso? perguntou.
Olhei para um pé de sabugueiro que ficava perto; Capitu respondeu por ambos.
– Estávamos, sim, senhor; mas Bentinho ri logo, não agüenta.
– Quando eu cheguei à porta, não ria.
– Já tinha rido das outras vezes; não pode. Papai quer ver?
E séria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto é naturalmente
sério; eu estava ainda sob a ação do que trouxe a entrada de Pádua, e não fui capaz de
rir, por mais que devesse fazê-lo, para legitimar a resposta de Capitu. Esta, cansada de
esperar, desviou o rosto, dizendo que eu não ria daquela vez por estar ao pé do pai. E
nem assim ri. Há coisas que só se aprendem tarde; é mister nascer com elas para fazêlas
cedo. E melhor é naturalmente cedo que artificialmente tarde. Capitu, após duas
voltas, foi ter com a mãe, que continuava à porta da casa, deixando-nos a mim e ao pai
encantados dela; o pai, olhando para ela e para mim, dizia-me, cheio de ternura:
– Quem dirá que esta pequena tem quatorze anos? Parece dezessete. Mamãe está
boa? continuou voltando-se inteiramente para mim.
– Está.
– Há muitos dias que não a vejo. Estou com vontade de dar um capote ao doutor,
mas não tenho podido, ando com trabalhos da repartição em casa; escrevo todas as
noites que é um desespero; negócio de relatório. Você já viu o meu gaturamo? Está ali
no fundo. Ia agora mesmo buscar a gaiola; ande ver.
Que o meu desejo era nenhum, crê-se facilmente, sem ser preciso jurar pelo céu
nem pela terra. Meu desejo era ir atrás de Capitu e falar-lhe agora do mal que nos
esperava; mas o pai era o pai, e demais amava particularmente os passarinhos. Tinha-os
de vária espécie, cor e tamanho. A área que havia no centro da casa era cercada de
gaiolas de canários, que faziam cantando um barulho de todos os diabos. Trocava
pássaros com outros amadores, comprava-os, apanhava alguns, no próprio quintal,
armando alçapões. Também, se adoeciam, tratava deles como se fossem gente.
CAPÍTULO XVI
O Administrador Interino
Pádua era empregado em repartição dependente do Ministério da Guerra. Não
ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. Demais, a casa em que
morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade dele. Comprou-a
com a sorte grande que lhe saiu num meio bilhete de loteria, dez contos de réis. A
primeira idéia do Pádua, quando lhe saiu o prêmio, foi comprar um cavalo do Cabo, um
adereço de brilhantes para a mulher, uma sepultura perpétua de família, mandar vir da
Europa alguns pássaros, etc.; mas a mulher, esta D. Fortunata que ali está à porta dos
fundos da casa, em pé, falando à filha, alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça,
os mesmos olhos claros, a mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa, e
guardar o que sobrasse para acudir às moléstias grandes. Pádua hesitou muito; afinal
teve de ceder aos conselhos de minha mãe, a quem D. Fortunata pediu auxílio. Nem foi
só nessa ocasião que minha mãe lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida ao Pádua.
Escutai; a anedota é curta.
O administrador da repartição em que Pádua trabalhava teve de ir ao Norte, em
comissão. Pádua, ou por ordem regulamentar, ou por especial designação, ficou
substituindo o administrador com os respectivos honorários. Esta mudança de fortuna
trouxe-lhe certa vertigem; era antes dos dez contos. Não se contentou de reformar a
roupa e a copa, atirou-se às despesas supérfluas, deu jóias à mulher, nos dias de festa
matava um leitão, era visto em teatros, chegou aos sapatos de verniz. Viveu assim vinte
e dois meses na suposição de uma eterna interinidade. Uma tarde entrou em nossa casa,
aflito e desvairado, ia perder o lugar, porque chegara o efetivo naquela manhã. Pediu à
minha mãe que velasse pelas infelizes que deixava; não podia sofrer a desgraça, matavase.
Minha mãe falou-lhe com bondade, mas ele não atendia a coisa nenhuma.
– Não, minha senhora, não consentirei em tal vergonha! Fazer descer a família,
tornar atrás... Já disse, mato-me! Não hei de confessar à minha gente esta miséria. E os
outros? Que dirão os vizinhos? E os amigos? E o público?
– Que público, Sr. Pádua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre-se que sua
mulher não tem outra pessoa... e que há de fazer? Pois um homem... Seja homem, ande.
Pádua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns dias, mudo,
fechado na alcova, – ou então no quintal, ao pé do poço, como se a idéia da morte
teimasse nele. D. Fortunata ralhava:
– Joãozinho, você é criança?
Mas, tanto lhe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu a pedir à
minha mãe que lhe fizesse o favor de ver se lhe salvava o marido que se queria matar.
Minha mãe foi achá-lo à beira do poço, e intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era
aquela de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de uma gratificação menos, e
perder um emprego interino? Não, senhor, devia ser homem, pai de família, imitar a
mulher e a filha... Pádua obedeceu; confessou que acharia forças para cumprir a vontade
de minha mãe.
– Vontade minha, não; é obrigação sua.
– Pois seja obrigação; não desconheço que é assim mesmo.
Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido à parede, cara no
chão. Não era o mesmo homem que estragava o chapéu em cortejar a vizinhança,
risonho, olhos no ar, antes mesmo da administração interina. Vieram as semanas, a
ferida foi sarando. Pádua começou a interessar-se pelos negócios domésticos, a cuidar
dos passarinhos, a dormir tranqüilo as noites e as tardes, a conversar e dar notícias da
rua. A serenidade regressou; atrás dela veio a alegria, um domingo, na figura de dois
amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Já ele ria, já brincava, tinha o ar do costume; a
ferida sarou de todo.
Com o tempo veio um fenômeno interessante. Pádua começou a falar da
administração interina, não somente sem as saudades dos honorários, nem o vexame da
perda, mas até com desvanecimento e orgulho. A administração ficou sendo a héjira,
donde ele contava para diante e para trás.
– No tempo em que eu era administrador...
Ou então:
– Ah! Sim, lembra-me, foi antes da minha administração, um ou dois meses
antes... Ora, espere; a minha administração começou... É isto, mês e meio antes; foi mês
e meio antes, não foi mais.
Ou ainda:
– Justamente; havia já seis meses que eu administrava...
Tal é o sabor póstumo das glórias interinas. José Dias bradava que era a vaidade
sobrevivente; mas o Padre Cabral, que levava tudo para a Escritura, dizia que com o
vizinho Pádua se dava a lição de Elifás a Jó: “Não desprezes a correção do Senhor: Ele
fere e cura.”
22 de set. de 2011
leitura diária - Postagem 3/37
CAPÍTULO IX
A Ópera
Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. “O desuso é que me faz
mal”, acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia ao
empresário e expunha-lhe toda as injustiças da terra e do céu; o empresário cometia
mais uma, e ele saía a bradar contra a iniqüidade. Trazia ainda os bigodes dos seus
papéis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa de Babilônia. Às
vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais idoso que ele ou tanto;
vozes assim abafadas são sempre possíveis. Vinha aqui jantar comigo algumas vezes.
Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a definição do costume, e como eu lhe
dissesse que a vida tanto podia ser uma ópera como uma viagem de mar ou uma batalha,
abanou a cabeça e replicou:
– A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo
soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o soprano e o
contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos
comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados, e a orquestração é excelente...
– Mas, meu caro Marcolini...
– Quê?...
E, depois de beber um gole de licor, pousou o cálix, e expôs-me a história da
criação, com palavras que vou resumir.
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que
aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a
precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música
em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio
essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso
do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não houvesse escrito
um libreto de ópera, do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era
impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o
fim de mostrar que valia mais que os outros – e acaso para reconciliar-se com o céu –,
compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
– Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura,
escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com
ela a vossos pés...
– Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.
– Mas, senhor...
– Nada! nada!
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de
misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um
teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes,
primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
– Ouvi agora alguns ensaios!
– Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou
pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a
audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com efeito, há lugares em que o
verso vai para a direita e a música para a esquerda. Não falta quem diga que nisso
mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto
do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os
mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de
repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo
muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são aliás tratadas com
grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais.
Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa achar obra tão bem
acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da
ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas desapareçam
inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde
de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem o mesmo os amigos deste. Juram
que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja
bonita em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e
até contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma
excrescência para imitar as Mulheres patuscas de Windsor. Este ponto é contestado
pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o
jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos.
Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da
ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição; mas,
evidentemente, é um plagiário.
– Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se
podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica. O êxito é
crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais, que não são
os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: “Muitos são os chamados,
poucos os escolhidos”. Deus recebe em ouro, Satanás em papel.
– Tem graça...
Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou:
– Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a
verdade pura e última. Um dia, quando todos os livros forem queimados por inúteis, há
de haver alguém, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos
homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e o dó fez-se ré etc. Este
cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também
não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera...
CAPÍTULO X
Aceito a Teoria
Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há dúvida; mas a perda da voz explica tudo, e
há filósofos que são, em resumo, tenores desempregados.
Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança,
que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição.
Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas não adiantemos;
vamos à primeira parte, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de
José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me
denunciou.
CAPÍTULO XI
A Promessa
Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri
à varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas nem da causa que as fazia verter a
minha mãe. A causa eram provavelmente os seus projetos eclesiásticos, e a ocasião
destes é a que vou dizer, por ser já então história velha; datava de dezesseis anos.
Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o
primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse,
prometendo, se fosse varão, metê-lo na Igreja. Talvez esperasse uma menina. Não disse
nada a meu pai, nem antes, nem depois de me dar à luz; contava fazê-lo quando eu
entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viúva, sentiu o terror de separar-se de
mim; mas era tão devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da obrigação,
confiando a promessa a parentes e familiares. Unicamente, para que nos separássemos o
mais tarde possível, fez-me aprender em casa primeiras letras, latim e doutrina, por
aquele Padre Cabral, velho amigo do tio Cosme, que ia lá jogar às noites.
Prazos largos são fáceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos. Minha mãe
esperou que os anos viessem vindo. Entretanto, ia-me afeiçoando à idéia da Igreja;
brincos de criança, livros devotos, imagens de santo, conversações de casa, tudo
convergia para o altar. Quando íamos à missa, dizia-me sempre que era para aprender a
ser padre, e que reparasse no padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa, brincava de
missa, – um tanto às escondidas, porque minha mãe dizia que missa não era coisa de
brincadeira. Arranjávamos um altar, Capitu e eu. Ela servia de sacristão, e alterávamos
o ritual, no sentido de dividirmos a hóstia entre nós; a hóstia era sempre um doce. No
tempo em que brincávamos assim, era muito comum ouvir à minha vizinha: “Hoje há
missa?” Eu já sabia o que isto queria dizer, respondia afirmativamente, e ia pedir hóstia
por outro nome. Voltava com ela, arranjávamos o altar, engrolávamos o latim e
precipitávamos as cerimônias. Dominus, non sum dignus... Isto, que eu devia dizer três
vezes, penso que só dizia uma, tal era a gulodice do padre e do sacristão. Não bebíamos
vinho nem água; não tínhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do
sacrifício.
Ultimamente não me falavam já do seminário, a tal ponto que eu supunha ser
negócio findo. Quinze anos, não havendo vocação, pediam antes o seminário do mundo
que o de S. José. Minha mãe ficava muita vez a olhar para mim, como alma perdida, ou
pegava-me na mão, a pretexto de nada, para apertá-la muito.
CAPÍTULO XII
Na Varanda
Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo
querer sair-me pela boca fora. Não me atrevia a descer à chácara, e passar ao quintal
vizinho. Comecei a andar de um lado para outro, estacando para amparar-me, e andava
outra vez e estacava. Vozes confusas repetiam o discurso do José Dias:
“Sempre juntos...”
“Em segredinhos...”
“Se eles pegam de namoro...”
Tijolos que pisei e repisei naquela tarde, colunas amareladas que me passastes à
direita ou à esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vós me ficou a melhor parte da crise,
a sensação de um gozo novo, que me envolvia em mim mesmo, e logo me dispersava, e
me trazia arrepios, e me derramava não sei que bálsamo interior. Às vezes dava por
mim, sorrindo, um ar de riso de satisfação, que desmentia a abominação do meu pecado.
E as vozes repetiam-se confusas:
“Em segredinhos...”
“Sempre juntos...”
“Se eles pegam de namoro...”
Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de
si que não era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as meninas
de quatorze; ao contrário, os adolescentes daquela idade não tinham outro ofício, nem
os cantos outra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais
ainda que nos velhos livros. Pássaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o estio, toda
a gente viva do ar era da mesma opinião.
Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido às
saias dela, mas não me ocorria nada entre nós que fosse deveras secreto. Antes dela ir
para o colégio, eram tudo travessuras de criança; depois que saiu do colégio, é certo que
não restabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no
último ano era completa. Entretanto, a matéria das nossas conversações era a de sempre.
Capitu chamava-me às vezes bonito, mocetão, uma flor; outras pegava-me nas mãos
para contar-me os dedos. E comecei a recordar esses e outros gestos e palavras, o prazer
que sentia quando ela me passava a mão pelos cabelos, dizendo que os achava
lindíssimos. Eu, sem fazer o mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos
que os meus. Então Capitu abanava a cabeça com uma grande expressão de desengano e
melancolia, tanto mais de espantar quanto que tinha os cabelos realmente admiráveis;
mas eu retorquia chamando-lhe maluca. Quando me perguntava se sonhara com ela na
véspera, e eu dizia que não, ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram aventuras
extraordinárias, que subíamos ao Corcovado pelo ar, que dançávamos na lua, ou então
que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar a outros anjos que
acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andávamos unidinhos. Os que eu tinha com
ela não eram assim, apenas reproduziam a nossa familiaridade, e muita vez não
passavam da simples repetição do dia, alguma frase, algum gesto. Também eu os
contava. Capitu um dia notou a diferença, dizendo que os dela eram mais bonitos que os
meus; eu, depois de certa hesitação, disse-lhe que eram como a pessoa que sonhava...
Fez-se cor de pitanga.
Pois, francamente, só agora entendia a emoção que me davam essas e outras
confidências. A emoção era doce e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu a
buscasse nem suspeitasse. Os silêncios dos últimos dias, que me não descobriam nada,
agora os sentia como sinais de alguma coisa, e assim as meias palavras, as perguntas
curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto de recordar a infância. Também
adverti que era fenômeno recente acordar com o pensamento em Capitu, e escutá-la de
memória, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nela, em minha casa,
prestava mais atenção que dantes, e, segundo era louvor ou crítica, assim me trazia
gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando éramos somente companheiros de
travessuras. Cheguei a pensar nela durante as missas daquele mês, com intervalos, é
verdade, mas com exclusivismo também.
Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a
mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que
pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade não valeria mais que
ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu! Capitu
amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, trêmulas e crentes de
abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da consciência a si
própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe fosse comparável qualquer outra
sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente também por ser
a primeira.
A Ópera
Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. “O desuso é que me faz
mal”, acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia ao
empresário e expunha-lhe toda as injustiças da terra e do céu; o empresário cometia
mais uma, e ele saía a bradar contra a iniqüidade. Trazia ainda os bigodes dos seus
papéis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa de Babilônia. Às
vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais idoso que ele ou tanto;
vozes assim abafadas são sempre possíveis. Vinha aqui jantar comigo algumas vezes.
Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a definição do costume, e como eu lhe
dissesse que a vida tanto podia ser uma ópera como uma viagem de mar ou uma batalha,
abanou a cabeça e replicou:
– A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo
soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o soprano e o
contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos
comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados, e a orquestração é excelente...
– Mas, meu caro Marcolini...
– Quê?...
E, depois de beber um gole de licor, pousou o cálix, e expôs-me a história da
criação, com palavras que vou resumir.
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que
aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a
precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música
em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio
essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso
do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não houvesse escrito
um libreto de ópera, do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era
impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o
fim de mostrar que valia mais que os outros – e acaso para reconciliar-se com o céu –,
compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
– Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura,
escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com
ela a vossos pés...
– Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.
– Mas, senhor...
– Nada! nada!
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de
misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um
teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes,
primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
– Ouvi agora alguns ensaios!
– Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou
pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a
audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com efeito, há lugares em que o
verso vai para a direita e a música para a esquerda. Não falta quem diga que nisso
mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto
do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os
mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de
repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo
muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são aliás tratadas com
grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais.
Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa achar obra tão bem
acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da
ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas desapareçam
inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde
de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem o mesmo os amigos deste. Juram
que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja
bonita em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e
até contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma
excrescência para imitar as Mulheres patuscas de Windsor. Este ponto é contestado
pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o
jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos.
Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da
ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição; mas,
evidentemente, é um plagiário.
– Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se
podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica. O êxito é
crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais, que não são
os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: “Muitos são os chamados,
poucos os escolhidos”. Deus recebe em ouro, Satanás em papel.
– Tem graça...
Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou:
– Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a
verdade pura e última. Um dia, quando todos os livros forem queimados por inúteis, há
de haver alguém, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos
homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e o dó fez-se ré etc. Este
cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também
não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera...
CAPÍTULO X
Aceito a Teoria
Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há dúvida; mas a perda da voz explica tudo, e
há filósofos que são, em resumo, tenores desempregados.
Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança,
que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição.
Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas não adiantemos;
vamos à primeira parte, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de
José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me
denunciou.
CAPÍTULO XI
A Promessa
Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri
à varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas nem da causa que as fazia verter a
minha mãe. A causa eram provavelmente os seus projetos eclesiásticos, e a ocasião
destes é a que vou dizer, por ser já então história velha; datava de dezesseis anos.
Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o
primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse,
prometendo, se fosse varão, metê-lo na Igreja. Talvez esperasse uma menina. Não disse
nada a meu pai, nem antes, nem depois de me dar à luz; contava fazê-lo quando eu
entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viúva, sentiu o terror de separar-se de
mim; mas era tão devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da obrigação,
confiando a promessa a parentes e familiares. Unicamente, para que nos separássemos o
mais tarde possível, fez-me aprender em casa primeiras letras, latim e doutrina, por
aquele Padre Cabral, velho amigo do tio Cosme, que ia lá jogar às noites.
Prazos largos são fáceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos. Minha mãe
esperou que os anos viessem vindo. Entretanto, ia-me afeiçoando à idéia da Igreja;
brincos de criança, livros devotos, imagens de santo, conversações de casa, tudo
convergia para o altar. Quando íamos à missa, dizia-me sempre que era para aprender a
ser padre, e que reparasse no padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa, brincava de
missa, – um tanto às escondidas, porque minha mãe dizia que missa não era coisa de
brincadeira. Arranjávamos um altar, Capitu e eu. Ela servia de sacristão, e alterávamos
o ritual, no sentido de dividirmos a hóstia entre nós; a hóstia era sempre um doce. No
tempo em que brincávamos assim, era muito comum ouvir à minha vizinha: “Hoje há
missa?” Eu já sabia o que isto queria dizer, respondia afirmativamente, e ia pedir hóstia
por outro nome. Voltava com ela, arranjávamos o altar, engrolávamos o latim e
precipitávamos as cerimônias. Dominus, non sum dignus... Isto, que eu devia dizer três
vezes, penso que só dizia uma, tal era a gulodice do padre e do sacristão. Não bebíamos
vinho nem água; não tínhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do
sacrifício.
Ultimamente não me falavam já do seminário, a tal ponto que eu supunha ser
negócio findo. Quinze anos, não havendo vocação, pediam antes o seminário do mundo
que o de S. José. Minha mãe ficava muita vez a olhar para mim, como alma perdida, ou
pegava-me na mão, a pretexto de nada, para apertá-la muito.
CAPÍTULO XII
Na Varanda
Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo
querer sair-me pela boca fora. Não me atrevia a descer à chácara, e passar ao quintal
vizinho. Comecei a andar de um lado para outro, estacando para amparar-me, e andava
outra vez e estacava. Vozes confusas repetiam o discurso do José Dias:
“Sempre juntos...”
“Em segredinhos...”
“Se eles pegam de namoro...”
Tijolos que pisei e repisei naquela tarde, colunas amareladas que me passastes à
direita ou à esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vós me ficou a melhor parte da crise,
a sensação de um gozo novo, que me envolvia em mim mesmo, e logo me dispersava, e
me trazia arrepios, e me derramava não sei que bálsamo interior. Às vezes dava por
mim, sorrindo, um ar de riso de satisfação, que desmentia a abominação do meu pecado.
E as vozes repetiam-se confusas:
“Em segredinhos...”
“Sempre juntos...”
“Se eles pegam de namoro...”
Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de
si que não era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as meninas
de quatorze; ao contrário, os adolescentes daquela idade não tinham outro ofício, nem
os cantos outra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais
ainda que nos velhos livros. Pássaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o estio, toda
a gente viva do ar era da mesma opinião.
Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido às
saias dela, mas não me ocorria nada entre nós que fosse deveras secreto. Antes dela ir
para o colégio, eram tudo travessuras de criança; depois que saiu do colégio, é certo que
não restabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no
último ano era completa. Entretanto, a matéria das nossas conversações era a de sempre.
Capitu chamava-me às vezes bonito, mocetão, uma flor; outras pegava-me nas mãos
para contar-me os dedos. E comecei a recordar esses e outros gestos e palavras, o prazer
que sentia quando ela me passava a mão pelos cabelos, dizendo que os achava
lindíssimos. Eu, sem fazer o mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos
que os meus. Então Capitu abanava a cabeça com uma grande expressão de desengano e
melancolia, tanto mais de espantar quanto que tinha os cabelos realmente admiráveis;
mas eu retorquia chamando-lhe maluca. Quando me perguntava se sonhara com ela na
véspera, e eu dizia que não, ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram aventuras
extraordinárias, que subíamos ao Corcovado pelo ar, que dançávamos na lua, ou então
que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar a outros anjos que
acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andávamos unidinhos. Os que eu tinha com
ela não eram assim, apenas reproduziam a nossa familiaridade, e muita vez não
passavam da simples repetição do dia, alguma frase, algum gesto. Também eu os
contava. Capitu um dia notou a diferença, dizendo que os dela eram mais bonitos que os
meus; eu, depois de certa hesitação, disse-lhe que eram como a pessoa que sonhava...
Fez-se cor de pitanga.
Pois, francamente, só agora entendia a emoção que me davam essas e outras
confidências. A emoção era doce e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu a
buscasse nem suspeitasse. Os silêncios dos últimos dias, que me não descobriam nada,
agora os sentia como sinais de alguma coisa, e assim as meias palavras, as perguntas
curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto de recordar a infância. Também
adverti que era fenômeno recente acordar com o pensamento em Capitu, e escutá-la de
memória, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nela, em minha casa,
prestava mais atenção que dantes, e, segundo era louvor ou crítica, assim me trazia
gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando éramos somente companheiros de
travessuras. Cheguei a pensar nela durante as missas daquele mês, com intervalos, é
verdade, mas com exclusivismo também.
Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a
mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que
pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade não valeria mais que
ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu! Capitu
amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, trêmulas e crentes de
abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da consciência a si
própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe fosse comparável qualquer outra
sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente também por ser
a primeira.
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