26 de nov. de 2011

TOV Internacional




OFICINAS DE ORAÇÃO E VIDA

Uma Nova Evangelização

ENDEREÇO DOS OFICINISTAS

NOME DO GUIA: Cecília e Judite 1º Semestre ( ) 2º Semestre ( ) LOCAL DAS SESSÕES: Paróquia Santa Teresa de Jesus. Clodomiro Amazonas, 50. Itaim Bibi



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5 de nov. de 2011

Leitura diária - Postagem 37/37

CAPÍTULO CXLV



O Regresso

Ora, foi já nesta casa que um dia, estando a vestir-me para almoçar, recebi um

cartão com este nome:

EZEQUIEL A. DE SANTIAGO

– A pessoa está aí? perguntei ao criado.

– Sim, senhor; ficou esperando.

Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns dez ou quinze minutos na sala. Só depois é

que me lembrou que cumpria ter certo alvoroço e correr, abraçá-lo, falar-lhe na mãe. A

mãe, – creio que ainda não disse que estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na

velha Suíça. Acabei de vestir-me às pressas. Quando saí do quarto, tomei ares de pai,

um pai entre manso e crespo, metade Dom Casmurro. Ao entrar na sala, dei com um

rapaz, de costas, mirando o busto de Massinissa, pintado na parede. Vim cauteloso, e

não fiz rumor. Não obstante, ouviu-me os passos, e voltou-se depressa. Conheceu-me

pelos retratos e correu para mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo

e jovem companheiro do seminário de S. José, um pouco mais baixo, menos cheio de

corpo e, salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. Trajava à

moderna, naturalmente, e as maneiras eram diferentes, mas o aspecto geral reproduzia a

pessoa morta. Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar. Era o meu comborço; era o

filho de seu pai. Vestia de luto pela mãe; eu também estava de preto. Sentamo-nos.

– Papai não faz diferença dos últimos retratos, disse-me ele.

A voz era a mesma de Escobar, o sotaque era afrancesado. Expliquei-lhe que

realmente pouco diferia do que era, e comecei um interrogatório para ter menos que

falar e dominar assim a minha emoção. Mas isto mesmo dava animação à cara dele, e o

meu colega do seminário ia ressurgindo cada vez mais do cemitério. Ei-lo aqui, diante

de mim, com igual riso e maior respeito; total, o mesmo obséquio e a mesma graça.

Ansiava por ver-me. A mãe falava muito em mim, louvando-me extraordinariamente,

como o homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido.

– Morreu bonita, concluiu.

– Vamos almoçar.

Se pensas que o almoço foi amargo, enganas-te. Teve seus minutos de

aborrecimento, é verdade; a princípio doeu-me que Ezequiel não fosse realmente meu

filho, que me não completasse e continuasse. Se o rapaz tem saído à mãe, eu acabava

crendo tudo, tanto mais facilmente quanto que ele parecia haver-me deixado na véspera,

evocava a meninice, cenas e palavras, a ida para o colégio...

– Papai ainda se lembra quando me levou para o colégio? perguntou rindo.

– Pois não hei de lembrar-me?

– Era na Lapa; eu ia desesperado, e papai não parava, dava-me cada puxão, e eu

com as perninhas... Sim, senhor, aceito.

Estendeu o copo ao vinho que eu lhe oferecia, bebeu um gole, e continuou a

comer. Escobar comia assim também, com a cara metida no prato. Contou-me a vida na

Europa, os estudos, particularmente os de arqueologia, que era a sua paixão. Falava da

antigüidade com amor, contava o Egito e os seus milhares de séculos, sem se perder nos

algarismos; tinha a cabeça aritmética do pai. Eu, posto que a idéia da paternidade do

outro me estivesse já familiar, não gostava da ressurreição. Às vezes, fechava os olhos

para não ver gestos nem nada, mas o diabrete falava e ria, e o defunto falava e ria por

ele.

Não havendo remédio senão ficar com ele, fiz-me pai deveras. A idéia de que

pudesse ter visto alguma fotografia de Escobar, que Capitu por descuido levasse

consigo, não me acudiu, nem, se acudisse, persistiria. Ezequiel cria em mim, como na

mãe. Se fosse vivo José Dias, acharia nele a minha própria pessoa. Prima Justina quis

vê-lo, mas, estando enferma, pediu-me que o levasse lá. Conhecia aquela parenta. Creio

que o desejo de ver Ezequiel era para o fim de verificar no moço o debuxo que

porventura houvesse achado no menino. Seria um regalo último; atalhei-o a tempo.

– Está muito mal, disse eu a Ezequiel que queria ir vê-la, qualquer emoção pode

trazer-lhe a morte. Iremos vê-la, quando ficar melhor.

Não fomos; a morte levou-a dentro de poucos dias. Ela descansa no Senhor ou

como quer que seja. Ezequiel viu-lhe a cara no caixão e não a conheceu, nem podia, tão

outra a fizeram os anos e a morte. No caminho para o cemitério, iam-lhe lembrando

uma porção de coisas, alguma rua, alguma torre, um trecho de praia, e era todo alegria.

Assim acontecia sempre que voltava para casa, ao fim do dia; contava-me as

recordações que ia recebendo das ruas e das casas. Admirava-se que muitas destas

fossem as mesmas que ele deixara, como se as casas morressem meninas.

Ao cabo de seis meses, Ezequiel falou-me em uma viagem à Grécia, ao Egito, e

à Palestina, viagem científica, promessa feita a alguns amigos.

– De que sexo? perguntei rindo.

Sorriu vexado, e respondeu-me que as mulheres eram criaturas tão da moda e do dia que nunca

haviam de entender uma ruína de trinta séculos. Eram dois colegas da universidade. Prometi-lhe recursos,

e dei-lhe logo os primeiros dinheiros precisos. Comigo disse que uma das conseqüências dos amores

furtivos do pai era pagar eu as arqueologias do filho; antes lhe pagasse a lepra... Quando esta idéia me

atravessou o cérebro, senti-me tão cruel e perverso que peguei no rapaz, e quis apertá-lo ao coração, mas

recuei; encarei-o depois, como se faz a um filho de verdade; os olhos que ele me deitou foram ternos e

agradecidos.



CAPÍTULO CXLVI

Não Houve Lepra

Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas, sejam velhas ou

novas. Onze meses depois, Ezequiel morreu de febre tifóide, e foi enterrado nas

imediações de Jerusalém, onde os dois amigos da universidade lhe levantaram um

túmulo com esta inscrição, tirada do profeta Ezequiel, em grego. “Tu eras perfeito nos

teus caminhos”. Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o desenho da sepultura,

a conta de despesas e o resto do dinheiro que ele levava; pagaria o triplo para não tornar

a vê-lo.

Como quisesse verificar o texto, consultei a minha Vulgata, e achei que era

exato, mas tinha ainda um completo; “Tu eras perfeito nos teus caminhos, desde o dia

da tua criação.” Parei e perguntei calado: “Quando seria o dia da criação de Ezequiel?”

Ninguém me respondeu. Eis aí mais um mistério para ajuntar aos tantos deste mundo.

Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro.



CAPÍTULO CXLVII

A Exposição Retrospectiva

Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou aí para

um canto como uma flor lívida e solitária. Não lhe dei essa cor ou descor. Vivi o melhor

que pude sem me faltarem amigas que me consolassem da primeira. Caprichos de pouca

dura, é verdade. Elas é que me deixavam como pessoas que assistem a uma exposição

retrospectiva, e, ou se fartam de vê-la, ou a luz da sala esmorece. Uma só dessas visitas

tinha carro à porta e cocheiro de libré. As outras iam modestamente, calcante pede, e, se

chovia, eu é que ia buscar um carro de praça, e as metia dentro, com grandes

despedidas, e maiores recomendações.

– Levas o catálogo?

– Levo; até amanhã.

– Até amanhã.

Não voltavam mais. Eu ficava à porta, esperando, ia até a esquina, espiava,

consultava o relógio, e não via nada nem ninguém. Então, se aparecia outra visita, davalhe

o braço, entrávamos, mostrava-lhe as paisagens, os quadros históricos ou de gênero,

uma aquarela, um pastel, uma gouache, e também esta cansava, e ia embora com o

catálogo na mão...



CAPÍTULO CXLVIII

E Bem, e o Resto?

Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira

amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de

cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto é

saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se foi

mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse

dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. I: “Não tenhas ciúmes

de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti.”

Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina,

hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.

E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o

resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão

extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e

enganando-me... A terra lhes seja leve! Vamos à História dos Subúrbios.

4 de nov. de 2011

Leitura diária - Postagem 36/37

CAPÍTULO CXLI



A Solução

Aqui está o que fizemos. Pegamos em nós e fomos para a Europa, não passear,

nem ver nada, novo nem velho; paramos na Suíça. Uma professora do Rio Grande, que

foi conosco, ficou de companhia a Capitu, ensinando a língua materna a Ezequiel, que

aprenderia o resto nas escolas do país. Assim regulada a vida, tornei ao Brasil.

Ao cabo de alguns meses, Capitu começara a escrever-me cartas, a que respondi com brevidade e

sequidão. As dela eram submissas, sem ódio, acaso afetuosas, e para o fim saudosas; pedia-me que a fosse

ver. Embarquei um ano depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o mesmo resultado. Na volta,

os que se lembravam dela, queriam notícias, e eu dava-lhas, como se acabasse de viver com ela;

naturalmente as viagens eram feitas com o intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião. Um dia,

finalmente...



CAPÍTULO CXLII

Uma Santa

Entenda-se que, se nas viagens que fiz à Europa, José Dias não foi comigo, não é que lhe faltasse

vontade; ficava de companhia a tio Cosme, quase inválido, e a minha mãe, que envelheceu depressa.

Também ele estava velho, posto que rijo. Ia a bordo despedir-se de mim, e as palavras que me dizia, os

gestos de lenço, os próprios olhos que enxugava eram tais que me comoviam também. A última vez não

foi a bordo.

– Venha...

– Não posso.

– Está com medo?

– Não; não posso. Agora, adeus, Bentinho, não sei se me verá mais; creio que

vou para a outra Europa, a eterna...

Não foi logo; minha mãe embarcou primeiro. Procura no cemitério de S. João

Batista uma sepultura sem nome, com esta única indicação: Uma santa. É aí. Fiz fazer

essa inscrição com alguma dificuldade. O escultor achou-a esquisita; o administrador do

cemitério consultou o vigário da paróquia; este ponderou-me que as santas estão no altar

e no céu.

– Mas, perdão, atalhei, eu não quero dizer que naquela sepultura está uma

canonizada. A minha idéia é dar com tal palavra uma definição terrena de todas as

virtudes que a finada possuiu na vida. Tanto é assim que, sendo a modéstia uma delas,

desejo conservá-la póstuma, não lhe escrevendo o nome.

– Todavia, o nome, a filiação, as datas...

– Quem se importará com datas, filiação, nem nomes, depois que eu acabar?

– Quer dizer que era uma santa senhora, não?

– Justamente. O Protonotário Cabral, se fosse vivo, confirmaria aqui o que lhe

digo.

– Nem eu contesto a verdade, hesito só na fórmula. Conheceu então o

protonotário?

– Conheci-o. Era um padre-modelo.

– Bom canonista, bom latinista, pio e caridoso, continuou o vigário.

– E possuía algumas prendas de sociedade, disse eu; lá em casa sempre ouvi que

era insigne parceiro ao gamão...

– Tinha muito bom dado! suspirou lentamente o vigário. Um dado de mestre!

– Então, parece-lhe?...

– Uma vez que não há outro sentido, nem poderia havê-lo, sim, senhor, admitese...

José Dias assistiu a estas diligências com grande melancolia. No fim, quando

saímos, disse mal do padre, chamou-lhe meticuloso. Só lhe achava desculpa por não ter

conhecido minha mãe, nem ele nem os outros homens do cemitério.

– Não a conheceram; se a conhecessem mandariam esculpir santíssima.



CAPÍTULO CXLIII

O Último Superlativo

Não foi o último superlativo de José Dias. Outros teve que não vale a pena

escrever aqui, até que veio o último, o melhor deles, o mais doce, o que lhe fez da morte

um pedaço de vida. Já então morava comigo; posto que minha mãe lhe deixasse uma

pequena lembrança, veio dizer-me que, com legado ou sem ele, não se separaria de

mim. Talvez a esperança dele fosse enterrar-me. Correspondia-se com Capitu, a quem

pedia que lhe mandasse o retrato de Ezequiel, mas Capitu ia adiando a remessa de

correio a correio, até que ele não pediu mais nada, a não ser o coração do jovem

estudante; pedi-lhe também que não deixasse de falar a Ezequiel no velho amigo do pai

e do avô, “destinado pelo céu a amar o mesmo sangue”. Era assim que ele preparava os

cuidados da terceira geração; mas a morte veio antes de Ezequiel. A doença foi rápida.

Mandei chamar um médico homeopata.

– Não, Bentinho, disse ele; basta um alopata; em todas as escolas se morre. De

mais, foram idéias da mocidade, que o tempo levou; converto-me à fé de meus pais. A

alopatia é o catolicismo da medicina...

Morreu sereno, após uma agonia curta. Pouco antes ouviu que o céu estava

lindo, e pediu que abríssemos a janela.

– Não, o ar pode fazer-lhe mal.

– Que mal? Ar é vida.

Abrimos a janela. Realmente, estava um céu azul e claro. José Dias soergueu-se e olhou para

fora; após alguns instantes, deixou cair a cabeça, murmurando: Lindíssimo! Foi a última palavra que

proferiu neste mundo. Pobre José Dias! Por que hei de negar que chorei por ele?



CAPÍTULO CXLIV

Uma Pergunta Tardia

Assim chorem por mim todos os olhos de amigos e amigas que deixo neste

mundo, mas não é provável. Tenho-me feito esquecer. Moro longe e saio pouco. Não é

que haja efetivamente ligado as duas pontas da vida. Esta casa do Engenho Novo,

conquanto reproduza a de Matacavalos, apenas me lembra aquela, e mais por efeito de

comparação e de reflexão que de sentimento. Já disse isto mesmo.

Hão de perguntar-me por que razão, tendo a própria casa velha, na mesma rua

antiga, não impedi que a demolissem e vim reproduzi-la nesta. A pergunta devia ser

feita a princípio, mas aqui vai a resposta. A razão é que, logo que minha mãe morreu,

querendo ir para lá, fiz primeiro uma longa visita de inspeção por alguns dias, e toda a

casa me desconheceu. No quintal a aroeira e a pitangueira, o poço, a caçamba velha e o

lavadouro, nada sabia de mim. A casuarina era a mesma que eu deixara ao fundo, mas o

tronco, em vez de reto, como outrora, tinha agora um ar de ponto de interrogação;

naturalmente pasmava do intruso. Corri os olhos pelo ar, buscando algum pensamento

que ali deixasse, e não achei nenhum. Ao contrário, a ramagem começou a sussurrar

alguma coisa que não entendi logo, e parece que era a cantiga das manhãs novas. Ao pé

dessa música sonora e jovial, ouvi também o grunhir dos porcos, espécie de troça

concentrada e filosófica.

Tudo me era estranho e adverso. Deixei que demolissem a casa, e, mais tarde, quando vim para o

Engenho Novo, lembrou-me fazer esta reprodução por explicações que dei ao arquiteto, segundo contei

em tempo.

3 de nov. de 2011

Leitura diária - Postagem 35/37

CAPÍTULO CXXXVII



Segundo Impulso

Se eu não olhasse para Ezequiel, é provável que não estivesse aqui escrevendo

este livro, porque o meu primeiro ímpeto foi correr ao café e bebê-lo. Cheguei a pegar

na xícara, mas o pequeno beijava-me a mão, como de costume, e a vista dele, como o

gesto, deu-me outro impulso que me custa dizer aqui; mas vá lá, diga-se tudo. Chamemme

embora assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo

impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomara café.

– Já, papai; vou à missa com mamãe.

– Toma outra xícara, meia xícara só.

– E papai?

– Eu mando vir mais; anda, bebe!

Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que quase a entornei,

mas disposto a fazê-la cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a

temperatura, porque o café estava frio... Mas não sei que senti que me fez recuar. Pus a

xícara em cima da mesa, e dei por mim a beijar doidamente a cabeça do menino.

– Papai! papai! exclamava Ezequiel.

– Não, não, eu não sou teu pai!



CAPÍTULO CXXXVIII

Capitu que Entra

Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitu diante de mim. Eis aí outro

lance, que parecerá de teatro, e é tão natural como o primeiro, uma vez que a mãe e o

filho iam à missa, e Capitu não saía sem falar-me. Era já um falar seco e breve; a mor

parte das vezes, eu nem olhava para ela. Ela olhava sempre, esperando.

Desta vez, ao dar com ela, não sei se era dos meus olhos, mas Capitu pareceume

lívida. Segui-se um daqueles silêncios, a que, sem mentir, se podem chamar de um

século, tal é a extensão do tempo nas grandes crises. Capitu recompôs-se; disse ao filho

que se fosse embora, e pediu-me que lhe explicasse...

– Não há que explicar, disse eu.

– Há tudo; não entendo as tuas lágrimas nem as de Ezequiel. Que houve entre

vocês?

– Não ouviu o que lhe disse?

Capitu respondeu que ouvira choro e rumor de palavras. Eu creio que ouvira

tudo claramente, mas confessá-lo seria perder a esperança do silêncio e da

reconciliação; por isso negou a audiência e confirmou unicamente a vista. Sem lhe

contar o episódio do café, repeti-lhe as palavras do final do capítulo.

– O quê? perguntou ela como se ouvira mal.

– Que não é meu filho.

Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu,

tão naturais ambas que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do nosso foro.

Já ouvi que as há para vários casos, questão de preço; eu não creio, tanto mais que a

pessoa que me contou isso acabava de perder uma demanda. Mas, haja ou não

testemunhas alugadas, a minha era verdadeira; a própria natureza jurava por si, e eu não

queria duvidar dela. Assim que, sem atender à linguagem de Capitu, aos seus gestos, à

dor que a retorcia, a coisa nenhuma, repeti as palavras ditas duas vezes com tal

resolução que a fizeram afrouxar. Após alguns instantes, disse-me ela:

– Só se pode explicar tal injúria pela convicção sincera; entretanto, você que era

tão cioso dos menores gestos, nunca revelou a menor sombra de desconfiança. Que é

que lhe deu tal idéia? Diga, – continuou vendo que eu não respondia nada, – diga tudo;

depois do que ouvi, posso ouvir o resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu agora tal

convicção? Ande, Bentinho, fale! fale! Despeça-me daqui, mas diga tudo primeiro.

– Há coisas que se não dizem.

– Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo.

Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da mesa. Podia estar um tanto confusa, o

porte não era de acusada. Pedi-lhe ainda uma vez que não teimasse.

– Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que

tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais!

– A separação é coisa decidida, redargüi, pegando-lhe na proposta. Era melhor

que a fizéssemos por meias palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida. Uma

vez, porém, que a senhora insiste, aqui vai o que lhe posso dizer, e é tudo.

Não disse tudo; mal pude aludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome.

Capitu não pôde deixar de rir, de um riso que eu sinto não poder transcrever aqui;

depois, em um tom juntamente irônico e melancólico:

– Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!

Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, enquanto eu, que

não pedia outra coisa mais que a plena justificação dela, disse-lhe não sei que palavras

adequadas a este fim. Capitu olhou para mim com desdém, e murmurou:

– Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se?

É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem

dizer mais nada.



CAPÍTULO CXXXIX

A Fotografia

Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de

alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: – “Mamãe! mamãe! é hora da missa!” restituiume

à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e

depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força

alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não

confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou do filho e saíram para a missa.



CAPÍTULO CXL

Volta da Igreja

Ficando só, era natural pegar do café e bebê-lo. Pois, não, senhor; tinha perdido

o gosto à morte. A morte era uma solução; eu acabava de achar outra, tanto melhor

quanto que não era definitiva, e deixava a porta aberta à reparação, se devesse havê-la.

Não disse perdão, mas reparação, isto é, justiça. Qualquer que fosse a razão do ato,

rejeitei a morte, e esperei o regresso de Capitu. Este foi mais demorado que de costume;

cheguei a temer que ela houvesse ido à casa de minha mãe, mas não foi.

– Confiei a Deus todas as minhas amarguras, disse-me Capitu ao voltar da

igreja; ouvi dentro de mim que a nossa separação é indispensável, e estou às suas

ordens.

Os olhos com que me disse isto eram embuçados, como espreitando um gesto de

recusa ou de espera. Contava com a minha debilidade com a própria incerteza em que

eu podia estar da paternidade do outro, mas falhou tudo. Acaso haveria em mim um

homem novo, um que aparecia agora, desde que impressões novas e fortes o

descobriam? Nesse caso era um homem apenas encoberto. Respondi-lhe que ia pensar, e

faríamos o que eu pensasse. Em verdade vos digo que tudo estava pensado e feito.

No intervalo, evocara as palavras do finado Gurgel, quando me mostrou em casa dele o retrato

da mulher, parecido com Capitu. Hás de lembrar-te delas; se não, relê o capítulo, cujo número não ponho

aqui, por não me lembrar já qual seja, mas não fica longe. Reduzem-se a dizer que há tais semelhanças

inexplicáveis... Pelo dia adiante, e nos outros dias, Ezequiel ia ter comigo ao gabinete, e as feições do

pequeno davam idéia clara das do outro, ou eu ia atentando mais nelas. De envolta, lembravam-me

episódios vagos e remotos, palavras, encontros e incidentes, tudo em que a minha cegueira não pôs

malícia, e a que faltou o meu velho ciúme. Uma vez em que os fui achar sozinhos e calados, um segredo

que me fez rir, uma palavra dela sonhando, todas essas reminiscências vieram vindo agora, em tal

atropelo que me atordoaram... E por que os não enganei um dia, quando desviei os olhos da rua onde

estavam duas andorinhas trepadas no fio telegráfico? Dentro, as minhas outras andorinhas estavam

trepadas no ar, os olhos enfiados nos olhos, mas tão cautelosos que se desenfiaram logo, dizendo-me uma

palavra amiga e alegre. Contei-lhes o namoro das andorinhas de fora, e acharam-lhe graça; Escobar

declarou que, para ele, seria melhor se as andorinhas, em vez de trepadas no fio de arame, estivessem à

mesa do jantar, cozidas. “Nunca comi os ninhos delas, continuou, mas devem ser bons, se os chins os

inventaram.” E ficamos a tratar dos chins e dos clássicos que falaram deles, enquanto Capitu, confessando

que a aborrecíamos, foi a outros cuidados. Agora lembrava-me tudo o que então me pareceu nada.

2 de nov. de 2011

Leitura diária - Postagem 34/37

CAPÍTULO CXXXIII



Uma Idéia

Um dia, – era uma sexta-feira, – não pude mais. Certa idéia, que negrejava em mim, abriu as asas

e entrou a batê-las de um lado para outro, como fazem as idéias que querem sair. O ser sexta-feira creio

que foi acaso, mas também pode ter sido propósito; fui educado no terror daquele dia; ouvi cantar baladas

em casa, vindas da roça e da antiga metrópole, nas quais a sexta-feira era o dia de agouro. Entretanto, não

havendo almanaques no cérebro, é provável que a idéia não batesse as asas senão pela necessidade que

sentia de vir ao ar e à vida. A vida é tão bela que a mesma idéia da morte precisa de vir primeiro a ela,

antes de se ver cumprida. Já me vais entendendo; lê agora outro capítulo.



CAPÍTULO CXXXIV

O Dia de Sábado

A idéia saiu finalmente do cérebro. Era noite, e não pude dormir, por mais que a

sacudisse de mim. Também nenhuma noite me passou tão curta. Amanheceu, quando

cuidava não ser mais que uma ou duas horas. Saí, supondo deixar a idéia em casa; ela

veio comigo. Cá fora tinha a mesma cor escura, as mesmas asas trépidas, e posto

avoasse com elas, era como se fosse fixa; eu a levava na retina, não que me encobrisse

as coisas externas, mas via-as através dela, com a cor mais pálida que de costume, e sem

se demorarem nada.

Não me lembra bem o resto do dia. Sei que escrevi algumas cartas, comprei uma

substância, que não digo, para não despertar o desejo de prová-la. A farmácia faliu, é

verdade; o dono fez-se banqueiro, e o banco prospera. Quando me achei com a morte no

bolso senti tamanha alegria como se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior,

porque o prêmio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta. Fui à casa de minha mãe,

com o fim de despedir-me, a título de visita. Ou de verdade ou por ilusão, tudo ali me

pareceu melhor nesse dia, minha mãe menos triste, tio Cosme esquecido do coração,

prima Justina, da língua. Passei uma hora em paz. Cheguei a abrir mão do projeto. Que

era preciso para viver? Nunca mais deixar aquela casa, ou prender aquela hora a mim

mesmo...



CAPÍTULO CXXXV

Otelo

Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não

vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes

raivas do mouro, por causa de um lenço, – um simples lenço! – e aqui dou matéria à

meditação dos psicólogos deste e de outros Continentes, pois não me pude furtar à

observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais

sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se, hoje são precisos os próprios

lençóis; alguma vez nem lençóis há, e valem só as camisas. Tais eram as idéias que me

iam passando pela cabeça, vagas e turvas, à medida que o mouro rolava convulso, e

Iago destilava a sua calúnia. Nos intervalos não me levantava da cadeira; não queria

expor-me a encontrar algum conhecido. As senhoras ficavam quase todas nos

camarotes, enquanto os homens iam fumar. Então eu perguntava a mim mesmo se

alguma daquelas não teria amado alguém que jazesse agora no cemitério, e vinham

outras incoerências, até que o pano subia e continuava a peça. O último ato mostrou-me

que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras

amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos

frenéticos do público.

– E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo: – que faria o público, se ela

deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um

travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a

consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna

extinção...

Vaguei pelas ruas o resto da noite. Ceei, é verdade, um quase nada, mas o

bastante para ir até à manhã. Vi as últimas horas da noite e as primeiras do dia, vi os

derradeiros passeadores e os primeiros varredores, as primeiras carroças, os primeiros

ruídos, os primeiros albores, um dia que vinha depois do outro e me veria ir para nunca

mais voltar. As ruas que eu andava como que me fugiam por si mesmas. Não tornaria a

contemplar o mar da Glória, nem a serra dos Órgãos, nem a Fortaleza de Santa-Cruz e

as outras. A gente que passava não era tanta, como nos dias comuns da semana, mas era

já numerosa e ia a algum trabalho, que repetiria depois; eu é que não repetiria mais

nada.

Cheguei a casa, abri a porta devagarinho, subi pé ante pé, e meti-me no gabinete; iam dar seis

horas. Tirei o veneno do bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi ainda uma carta, a última, dirigida

a Capitu. Nenhuma das outras era para ela; senti necessidade de lhe dizer uma palavra em que lhe ficasse

o remorso da minha morte. Escrevi dois textos. O primeiro queimei-o por ser longo e difuso. O segundo

continha só o necessário, claro e breve. Não lhe lembrava o nosso passado, nem as lutas havidas, nem

alegria alguma; falava-lhe só de Escobar e da necessidade de morrer.



CAPÍTULO CXXXVI

A Xícara de Café

O meu plano foi esperar o café, dissolver nele a droga e ingeri-la. Até lá, não

tendo esquecido de todo a minha história romana, lembrou-me que Catão, antes de se

matar, leu e releu um livro de Platão. Não tinha Platão comigo; mas um tomo truncado

de Plutarco, em que era narrada a vida do célebre romano; bastou-me a ocupar aquele

pouco tempo, e, para em tudo imitá-lo, estirei-me no canapé. Nem era só imitá-lo nisso;

tinha necessidade de incutir em mim a coragem dele, assim como ele precisara dos

sentimentos do filósofo para intrepidamente morrer. Um dos males da ignorância é não

ter este remédio à última hora. Há muita gente que se mata sem ele, e nobremente

expira; mas estou que muita mais gente poria termo aos seus dias, se pudesse achar essa

espécie de cocaína moral dos bons livros. Entretanto, querendo fugir a qualquer suspeita

de imitação, lembra-me bem que, para não ser encontrado ao pé de mim o livro de

Plutarco, nem ser dada a notícia nas gazetas com a cor das calças que eu então vestia,

assenti de pô-lo novamente no seu lugar, antes de beber o veneno.

O copeiro trouxe o café. Ergui-me, guardei o livro, e fui para a mesa onde ficara

a xícara. Já a casa estava em rumores; era tempo de acabar comigo. A mão tremeu-me

ao abrir o papel em que trazia a droga embrulhada. Ainda assim tive ânimo de despejar

a substância na xícara, e comecei a mexer o café, os olhos vagos, a memória em

Desdêmona inocente; o espetáculo da véspera vinha intrometer-se na realidade da

manhã. Mas a fotografia de Escobar deu-me o ânimo que me ia faltando; lá estava ele,

com mão nas costas da cadeira, a olhar ao longe...

– Acabemos com isto, pensei.

Quando ia beber, cogitei se não seria melhor esperar que Capitu e o filho

saíssem para a missa; beberia depois; era melhor. Assim disposto, entrei a passear no

gabinete. Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi-o entrar e correr a mim bradando:

– Papai, papai!

Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por havê-lo inteiramente

esquecido, mas crê que foi belo e trágico. Efetivamente, a figura do pequeno fez-me

recuar até dar de costas na estante. Ezequiel abraçou-me os joelhos, esticou-se na ponta

dos pés, como querendo subir e dar-me o beijo do costume; e repetia, puxando-me:

– Papai! papai!

1 de nov. de 2011

Leitura diária - Postagem 33/37

CAPÍTULO CXXIX



A D. Sancha

D. Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até aqui,

abandone o resto. Basta fechá-lo; melhor será queimá-lo, para lhe não dar tentação e

abri-lo outra vez. Se, apesar do aviso, quiser ir até o fim, a culpa é sua; não respondo

pelo mal que receber. O que já lhe tiver feito, contando os gestos daquele sábado, esse

acabou, uma vez que os acontecimentos, e eu com eles, desmentimos a minha ilusão;

mas o que agora a alcançar, esse é indelével. Não, amiga minha, não leia mais. Vá

envelhecendo, sem marido nem filha, que eu faço a mesma coisa, e é ainda o melhor

que se pode fazer depois da mocidade. Um dia, iremos daqui até a porta do céu, onde

nos encontraremos renovados, como as plantas novas, come piante novelle,

Rinovellate di novelle fronde.

O resto em Dante.



CAPÍTULO CXXX

Um Dia...

Porquanto um dia Capitu quis saber o que é que me fazia andar calado e

aborrecido. E propôs-me a Europa, Minas, Petrópolis, uma série de bailes, mil desses

remédios aconselhados aos melancólicos. Eu não sabia que lhe respondesse; recusei as

diversões. Como insistisse, repliquei-lhe que os meus negócios andavam mal. Capitu

sorriu para animar-me. E que tinha que andassem mal? Tornariam a andar bem, e até lá

as jóias, os objetos de algum valor seriam vendidos, e iríamos residir em algum beco.

Viveríamos sossegados e esquecidos; depois tornaríamos à tona da água. A ternura com

que me disse isto era de comover as pedras. Pois nem assim. Respondi-lhe secamente

que não era preciso vender nada. Deixei-me estar calado e aborrecido. Ela propôs-me

jogar cartas ou damas, um passeio a pé, uma visita a Matacavalos; e, como eu não

aceitasse nada, foi para a sala, abriu o piano, e começou a tocar; eu aproveitei a

ausência, peguei do chapéu e saí.

...Perdão, mas este capítulo devia ser precedido de outro, em que contasse um incidente, ocorrido

poucas semanas antes, dois meses depois da partida de Sancha. Vou escrevê-lo; podia antepô-lo a este,

antes de mandar o livro ao prelo, mas custa muito alterar o número das páginas; vai assim mesmo, depois

a narração seguirá até o fim. Demais, é curto.



CAPÍTULO CXXXI

Anterior ao Anterior

Foi o caso que a minha vida era outra vez doce e plácida, a banca do advogado

rendia-me bastante. Capitu estava mais bela, Ezequiel ia crescendo. Começava o ano de

1872.

– Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita?

perguntou-me Capitu. Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto

Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado de papai, não precisa revirar

os olhos, assim, assim...

Era depois de jantar, estávamos ainda à mesa, Capitu brincava com o filho, ou

ele com ela, ou um com outro, porque, em verdade, queriam-se muito, mas é também

certo que ele me queria ainda mais a mim. Aproximei-me de Ezequiel, achei que Capitu

tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não me pareceram esquisitos por isso.

Afinal não haveria mais que meia dúzia de expressões no mundo, e muitas semelhanças

se dariam naturalmente. Ezequiel não entendeu nada, olhou espantado para ela e para

mim, e afinal saltou-me ao colo:

– Vamos passear, papai?

– Logo, meu filho.

Capitu, alheia a ambos, fitava agora a outra borda da mesa; mas, dizendo-lhe eu que, na beleza,

os olhos de Ezequiel saíam aos da mãe, Capitu sorriu, abanando a cabeça com um ar que nunca achei em

mulher alguma, provavelmente porque não gostei tanto das outras. As pessoas valem o que vale a afeição

da gente, e é daí que mestre Povo tirou aquele adágio que quem o feio ama bonito lhe parece. Capitu tinha

meia dúzia de gestos únicos na terra. Aquele entrou-me pela alma dentro. Assim fica explicado que eu

corresse à minha esposa e amiga e lhe enchesse a cara de beijos; mas este outro incidente não é

radicalmente necessário à compreensão do capítulo passado e dos futuros; fiquemos nos olhos de

Ezequiel.



CAPÍTULO CXXXII

O Debuxo e o Colorido

Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iamse

apurando com o tempo. Eram como um debuxo primitivo que o artista vai enchendo

e colorindo aos poucos, e a figura entra a ver, sorrir, palpitar, falar quase, até que a

família pendura o quadro na parede, em memória do que foi e já não pode ser. Aqui

podia ser e era. O costume valeu muito contra o efeito da mudança; mas a mudança fezse,

não à maneira de teatro, fez-se como a manhã que aponta vagarosa, primeiro que se

possa ler uma carta, depois lê-se a carta na rua, em casa, no gabinete, sem abrir as

janelas; e a luz coada pelas persianas basta a distinguir as letras. Li a carta, mal a

princípio e não toda, depois fui lendo melhor. Fugia-lhe, é certo, metia o papel no bolso,

corria a casa, fechava-me, não abria as vidraças, chegava a fechar os olhos. Quando

novamente abria os olhos e a carta, a letra era clara e a notícia claríssima.

Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se

sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedirme

à noite a bênção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e

praticava-as, para me não descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse

dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que

ninguém. Quando nem mãe nem filho estavam comigo o meu desespero era grande, e eu

jurava matá-los a ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo da morte

todos os minutos da vida embaraçada e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via

no alto da escada a criaturinha que me queria e esperava, ficava desarmado e diferia o

castigo de um dia para outro.

O que se passava entre mim e Capitu naqueles dias sombrios, não se notará aqui,

por ser tão miúdo e repetido, e já tão tarde que não se poderá dizê-lo sem falha nem

canseira. Mas o principal irá. E o principal é que os nossos temporais eram agora

contínuos e terríveis. Antes de descoberta aquela má terra da verdade, tivemos outros de

pouca dura; não tardava que o céu se fizesse azul, o sol claro e o mar chão, por onde

abríamos novamente as velas que nos levavam às ilhas e costas mais belas do universo,

até que outro pé de vento desbaratava tudo, e nós, postos à capa, esperávamos outra

bonança, que não era tardia nem dúbia, antes total, próxima e firme.

Releva-me estas metáforas; cheiram ao mar e à maré que deram morte ao meu

amigo e comborço Escobar. Cheiram também aos olhos de ressaca de Capitu. Assim,

posto sempre fosse homem de terra, conto aquela parte da minha vida, como um marujo

contaria o seu naufrágio.

Já entre nós só faltava dizer a palavra última; nós a líamos, porém, nos olhos um

do outro, vibrante e decisiva, e sempre que Ezequiel vinha para nós não fazia mais que

separar-nos. Capitu propôs metê-lo em um colégio, donde só viesse aos sábados; custou

muito ao menino aceitar esta situação.

– Quero ir com papai! Papai há de ir comigo! bradava ele.

Fui eu mesmo que o levei um dia de manhã, uma segunda-feira. Era no antigo

Largo da Lapa, perto da nossa casa. Levei-o a pé, pela mão, como levara o ataúde do

outro. O pequeno ia chorando e fazendo perguntas a cada passo, se voltaria para casa, e

quando, e se eu iria vê-lo...

– Vou.

– Papai não vai!

– Vou sim.

– Jura, papai!

– Pois sim.

– Papai não diz que jura.

– Pois juro.

E lá o levei e deixei. A ausência temporária não atalhou o mal, e toda a arte fina

de Capitu para fazê-lo atenuar, ao menos, foi como se não fosse; eu sentia-me cada vez

pior. A mesma situação nova agravou a minha paixão. Ezequiel vivia agora mais fora da

minha vista; mas a volta dele, ao fim das semanas, ou pelo descostume em que eu

ficava, ou porque o tempo fosse andando e completando a semelhança, era a volta de

Escobar mais vivo e ruidoso. Até a voz, dentro de pouco, já me parecia a mesma. Aos

sábados, buscava não jantar em casa e só entrar quando ele estivesse dormindo; mas não

escapava ao domingo, no gabinete, quando que me achava entre jornais e autos.

Ezequiel entrava turbulento, expansivo, cheio de riso e de amor, porque o demo do

pequeno cada vez morria mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora uma aversão

que mal podia disfarçar, tanto a ela como aos outros. Não podendo encobrir

inteiramente esta disposição moral, cuidava de me não fazer encontradiço com ele, ou

só o menos que pudesse; ora tinha trabalho que me obrigava a fechar o gabinete, ora

saía ao domingo para ir passear pela cidade e arrabaldes o meu mal secreto.

31 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 32/37

CAPÍTULO CXXV



Uma Comparação

Príamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquele que lhe matou o filho.

Homero é que relata isto, e é um bom autor, não obstante contá-lo em verso, mas há narrações exatas em

verso, e até mau verso. Compara tu a situação de Príamo com a minha; eu acabava de louvar as virtudes

do homem que recebera, defunto, aqueles olhos... É impossível que algum Homero não tirasse da minha

situação muito melhor efeito, ou quando menos, igual. Nem digas que nos faltam Homeros, pela causa

apontada em Camões; não, senhor, faltam-nos, é certo, mas é porque os Príamos procuram a sombra e o

silêncio. As lágrimas, se as têm, são enxugadas atrás da porta, para que as caras apareçam limpas e

serenas; os discursos são antes de alegria que de melancolia, e tudo passa como se Aquiles não matasse

Heitor.



CAPÍTULO CXXVI

Cismando

Pouco depois de sair do cemitério, rasguei o discurso e deitei os pedaços pela

portinhola fora, sem embargo dos esforços de José Dias para impedi-lo.

– Não presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentação de dá-lo a

imprimir, fica já destruído de uma vez. Não presta, não vale nada.

José Dias demonstrou longamente o contrário, depois elogiou o enterro, e por

último fez o panegírico do morto, uma grande alma, espírito ativo, coração reto, amigo,

bom amigo, digno da esposa amantíssima que Deus lhe dera...

Neste ponto do discurso, deixei-o falar sozinho e peguei a cismar comigo. O que

cismei foi tão escuro e confuso que não me deixou tomar pé. No Catete mandei parar o

carro, disse a José Dias que fosse buscar as senhoras ao Flamengo e as levasse para

casa; eu iria a pé.

– Mas...

– Vou fazer uma visita.

A razão disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que fosse adequada

ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas; estas iriam pausadas ou não,

podiam afrouxar o passo, parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabeça cismasse à

vontade. Fui andando e cismando. Tinha já comparado o gesto de Sancha na véspera e o

desespero daquele dia; eram inconciliáveis. A viúva era realmente amantíssima. Assim

se desvaneceu de todo a ilusão da minha vaidade. Não seria o mesmo caso de Capitu?

Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajuntamento de pessoas que

devia naturalmente impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que

aqui vai por ordem lógica e dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de idéias e

sensações, graças aos solavancos do carro e às interrupções de José Dias. Agora, porém,

raciocinava e evocava claro e bem. Concluí de mim para mim que era a antiga paixão

que me ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre.

Quando cheguei a esta conclusão final, chegava também à porta de casa, mas voltei para trás, e

subi outra vez a Rua do Catete. Eram as dúvidas que me afligiam ou a necessidade de afligir Capitu com a

minha grande demora? Ponhamos que eram as duas causas; andei largo espaço, até que me senti sossegar,

e endireitei para a casa. Batiam oito horas numa padaria.



CAPÍTULO CXXVII

O Barbeiro

Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a rabeca e

não tocava inteiramente mal. Na ocasião em que ia passando, executava não sei que

peça. Parei na calçada a ouvi-lo (tudo são pretextos a um coração agoniado), ele viu-me,

e continuou a tocar. Não atendeu a um freguês, e logo a outro, que ali foram a despeito

da hora e de ser domingo, confiar-lhe as caras à navalha. Perdeu-os sem perder uma

nota; ia tocando para mim. Esta consideração fez-me chegar francamente à porta da

loja, voltado para ele. Ao fundo, levantando a cortina de chita que fechava o interior da

casa, vi apontar uma moça trigueira, vestido claro, flor no cabelo. Era a mulher dele;

creio que me descobriu de dentro, e veio agradecer-me com a presença o favor que eu

fazia ao marido. Se me não engano, chegou a dizê-lo com os olhos. Quanto ao marido,

tocava agora com mais calor; sem ver a mulher, sem ver fregueses, grudava a face ao

instrumento, passava a alma ao arco, e tocava, tocava...

Divina arte! Ia-se formando um grupo, deixei a porta da loja e vim andando para casa; enfiei

pelo corredor e subi as escadas sem estrépito. Nunca me esqueceu o caso deste barbeiro, ou por estar

ligado a um momento grave da minha vida, ou por esta máxima, que os compiladores podem tirar daqui e

inserir nos compêndios de escola. A máxima é que a gente esquece devagar as boas ações que pratica, e

verdadeiramente não as esquece nunca. Pobre barbeiro! Perdeu duas barbas naquela noite, que eram o pão

do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um transeunte. Supõe agora que este, em vez de ir-se embora,

como eu fui, ficava à porta a ouvi-lo e a namorar-lhe a mulher; então é que ele, todo arco, todo rabeca,

tocaria desesperadamente. Divina arte!



CAPÍTULO CXXVIII

Punhado de Sucessos

Como ia dizendo, subi as escadas sem estrépito, empurrei a cancela, que estava

apenas encostada, e dei com prima Justina e José Dias jogando cartas na saleta próxima.

Capitu levantou-se do canapé e veio a mim. O rosto dela era agora sereno e puro. Os

outros suspenderam o jogo, e todos falamos do desastre e da viúva. Capitu censurou a

imprudência de Escobar, e não dissimulou a tristeza que lhe trazia a dor da amiga.

Perguntei-lhe por que não ficara com Sancha aquela noite.

– Tem lá muita gente; ainda assim ofereci-me, mas não quis. Também lhe disse

que era melhor vir para cá, e passar aqui uns dias conosco.

– Também não quis?

– Também não.

– Entretanto, a vista do mar há de ser-lhe penosa, todas as manhãs, ponderou

José Dias, e não sei como poderá...

– Mas passa; o que é que não passa? atalhou prima Justina.

E como em torno desta idéia, começássemos uma troca de palavras, Capitu saiu

para ver se o filho dormia. Ao passar pelo espelho, concertou os cabelos tão demoradamente

que pareceria afetação, se não soubéssemos que ela era muito amiga de si.

Quando tornou trazia os olhos vermelhos; disse-nos que, ao mirar o filho dormindo,

pensara na filhinha de Sancha, e na aflição da viúva. E, sem se lhe dar das visitas, nem

reparar se havia algum criado, abraçou-me e disse-me que, se quisesse pensar nela, era

preciso pensar primeiro na minha vida. José Dias achou a frase “líndíssima”, e

perguntou a Capitu por que é que não fazia versos. Tentei meter o caso à bulha, e assim

a noite.

No dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, não que quisesse dálo

a imprimir, mas era lembrança do finado. Pense em recompô-lo, mas só achei frases

soltas, que uma vez juntas não tinham sentido. Também pensei em fazer outro, mas era

já difícil, e podia ser apanhado em falso pelos que me tinham ouvido no cemitério.

Quanto a recolher os pedacinhos de papel deitados à rua, era tarde; estariam já varridos.

Inventariei as lembranças de Escobar, livros, um tinteiro de bronze, uma bengala

de marfim, um pássaro, o álbum de Capitu, duas paisagens do Paraná e outras. Também

ele as possuía de minha mão. Vivemos assim a trocar memórias e regalos, ora em dia de

anos, ora sem razão particular. Tudo isso me empanava os olhos... Vieram os jornais do

dia: davam notícia do desastre e da morte de Escobar, os estudos e os negócios deste, as

qualidades pessoais, a simpatia do comércio, e também falavam dos bens deixados, da

mulher e da filha. Tudo isso foi na segunda-feira. Na terça-feira foi aberto o testamento,

que me nomeava segundo testamenteiro; o primeiro lugar cabia à mulher. Não me

deixava nada, mas as palavras que me escrevera em carta separada eram sublimes de

amizade e estima. Capitu desta vez chorou muito; mas compôs-se depressa.

Testamento, inventário, tudo andou quase tão depressa como aqui vai dito. Ao cabo de pouco

tempo, Sancha retirou-se para a casa dos parentes no Paraná.

29 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 31/37

CAPÍTULO CXXI



A Catástrofe

No melhor deles, ouvi passos precipitados na escada, a campainha soou, soaram

palmas, golpes na cancela, vozes, acudiram todos, acudi eu mesmo. Era um escravo da

casa de Sancha que me chamava:

– Para ir lá... sinhô nadando, sinhô morrendo.

Não disse mais nada, ou eu não lhe ouvi o resto. Vesti-me, deixei recado a

Capitu e corri ao Flamengo.

Em caminho, fui adivinhando a verdade. Escobar meteu-se a nadar, como usava fazer, arriscouse

um pouco mais fora que de costume, apesar do mar bravio, foi enrolado e morreu. As canoas que

acudiram mal puderam trazer-lhe o cadáver.



CAPÍTULO CXXII

O Enterro

A viúva... Poupo-vos as lágrimas da viúva, as minhas, as da outra gente. Saí de

lá cerca de onze horas; Capitu e prima Justina esperavam-me, uma com o parecer

abatido e estúpido, outra enfastiada apenas.

– Vão fazer companhia à pobre Sanchinha; eu vou cuidar do enterro.

Assim fizemos. Quis que o enterro fosse pomposo, e a afluência dos amigos foi

numerosa. Praia, ruas, Praça da Glória, tudo eram carros, muitos deles particulares. A

casa não sendo grande, não podiam lá caber todos; muitos estavam na praia, falando do

desastre, apontando o lugar em que Escobar falecera, ouvindo referir a chegada do

morto. José Dias ouviu também falar dos negócios do finado, divergindo alguns na

avaliação dos bens, mas havendo acordo em que o passivo devia ser pequeno. Elogiavam

as qualidades de Escobar. Um ou outro discutia o recente gabinete Rio Branco;

estávamos em março de 1871. Nunca me esqueceu o mês nem o ano.

Como eu houvesse resolvido falar no cemitério, escrevi algumas linhas e

mostrei-as em casa a José Dias, que as achou realmente dignas do morto e de mim.

Pediu-me o papel, recitou lentamente o discurso, pesando as palavras, e confirmou a

primeira opinião; no Flamengo espalhou a notícia. Alguns conhecidos vieram

interrogar-me:

– Então, vamos ouvi-lo?

– Quatro palavras.

Poucas mais seriam. Tinha-as escrito com receio de que a emoção me impedisse de improvisar.

No tílburi em que andei uma ou duas horas, não fizera mais que recordar o tempo do seminário, as

relações de Escobar, as nossas simpatias, a nossa amizade, começada, continuada e nunca interrompida,

até que um lance da fortuna fez separar para sempre duas criaturas que prometiam ficar por muito tempo

unidas. De quando em quando enxugava os olhos. O cocheiro aventurou duas ou três perguntas sobre a

minha situação moral; não me arrancando nada, continuou o seu ofício. Chegando a casa, deitei aquelas

emoções ao papel; tal seria o discurso.



CAPÍTULO CXXIII

Olhos de Ressaca

Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do

marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam

também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si

mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela,

Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que

não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...

As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela. Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para

a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a

retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o

pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos; como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar

também o nadador da manhã.



CAPÍTULO CXXIV

O Discurso

– Vamos, são horas...

Era José Dias que me convidava a fechar o ataúde. Fechamo-lo, e eu peguei

numa das argolas; rompeu o alarido final. Palavra que, quando cheguei à porta, vi o sol

claro, tudo gente e carros, as cabeças descobertas, tive um daqueles meus impulsos que

nunca chegavam à execução: foi atirar à rua caixão, defunto e tudo. No carro disse a

José Dias que se calasse. No cemitério tive de repetir a cerimônia da casa, desatar as

correias, e ajudar a levar o féretro à cova. O que isto me custou imagina. Descido o

cadáver à cova, trouxeram a cal e a pá; sabes disto, terás ido a mais de um enterro, mas

o que não sabes nem pode saber nenhum dos teus amigos, leitor, ou qualquer outro

estranho, é a crise que me tomou quando vi todos os olhos em mim, os pés quietos, as

orelhas atentas, e, ao cabo de alguns instantes de total silêncio, um sussurro vago,

algumas vozes interrogativas, sinais, e alguém, José Dias, que me dizia ao ouvido:

– Então, fale.

Era o discurso. Queriam o discurso. Tinham jus ao discurso anunciado. Maquinalmente, meti a

mão no bolso, saquei o papel e li-o aos trambolhões, não todo, nem seguido, nem claro; a voz parecia-me

entrar em vez de sair, as mãos tremiam-me. Não era só a emoção nova que me fazia assim, era o próprio

texto, as memórias do amigo, as saudades confessadas, os louvores à pessoa e aos seus méritos; tudo isto

que eu era obrigado a dizer e dizia mal. Ao mesmo tempo, temendo que me adivinhassem a verdade,

forcejava por escondê-la bem. Creio que poucos me ouviram, mas o gesto geral foi de compreensão e de

aprovação. As mãos que me deram a apertar eram de solidariedade; alguns diziam: “Muito bonito! muito

bem! magnífico!” José Dias achou que a eloqüência estivera na altura da piedade. Um homem, que me

pareceu jornalista, pediu-me licença para levar o manuscrito e imprimi-lo. Só a minha grande turvação

recusaria um obséquio tão simples.

28 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 30/37

CAPÍTULO CXVII



Amigos Próximos

Já então Escobar deixara Andaraí e comprara uma casa no Flamengo, casa que

ainda ali vi, há dias, quando me deu na gana experimentar se as sensações antigas

estavam mortas ou dormiam só; não posso dizê-lo bem, porque os sonos quando são

pesados, confundem vivos e defuntos, a não ser a respiração. Eu respirava um pouco,

mas pode ser que fosse do mar, meio agitado. Enfim, passei, acendi um charuto, e dei

por mim no Catete; tinha subido pela Rua da Princesa, uma rua antiga... Ó ruas antigas!

ó casas antigas! ó pernas antigas! Todos nós éramos antigos, e não é preciso dizer que

no mau sentido, no sentido de velho e acabado.

Velha é a casa, mas não lhe alteraram nada. Não sei até se ainda tem o mesmo

número. Não digo que número é para não irem indagar e cavar a história. Não é que

Escobar ainda lá more nem sequer viva; morreu pouco depois, por um modo que hei de

contar. Enquanto viveu, uma vez que estávamos tão próximos, tínhamos por assim dizer

uma só casa, eu vivia na dele, ele na minha, e o pedaço de praia entre a Glória e o

Flamengo era como um caminho de uso próprio e particular. Fazia-me pensar nas duas

casas de Matacavalos, com o seu muro de permeio.

Um historiador da nossa língua, creio que João de Barros, põe na boca de um rei

bárbaro algumas palavras mansas, quando os portugueses lhe propunham estabelecer ali

ao pé uma fortaleza; dizia o rei que os bons amigos deviam ficar longe uns dos outros,

não perto, para se não zangarem como as águas do mar que batiam furiosas no rochedo

que eles viam dali. Que a sombra do escritor me perdoe, se eu duvido que o rei dissesse

tal palavra nem que ela seja verdadeira. Provavelmente foi o mesmo escritor que a

inventou para adornar o texto, e não fez mal, porque é bonita; realmente, é bonita. Eu

creio que o mar então batia na pedra, como é seu costume, desde Ulisses e antes. Agora

que a comparação seja verdadeira é que não. Seguramente há inimigos contíguos, mas

também há amigos de perto e do peito. E o escritor esquecia (salvo se ainda não era do

seu tempo), esquecia o adágio: longe dos olhos, longe do coração. Nós não podíamos ter

os corações agora mais perto. As nossas mulheres viviam na casa uma da outra, nós

passávamos as noites cá ou lá conversando, jogando ou mirando o mar. Os dois

pequenos passavam dias, ora no Flamengo, ora na Glória.

Como eu observasse que podia acontecer com eles o que se dera entre mim e

Capitu, acharam todos que sim, e Sancha acrescentou que até já se iam parecendo. Eu

expliquei:

– Não; é porque Ezequiel imita os gestos dos outros.

Escobar concordou comigo, e insinuou que alguma vez as crianças que se

freqüentam muito acabam parecendo-se umas com as outras. Opinei de cabeça, como

me sucedia nas matérias que eu não sabia bem nem mal. Tudo podia ser. O certo é que

eles se queriam muito, e podiam acabar casados, mas não acabaram casados.



CAPÍTULO CXVIII

A Mão de Sancha

Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo

o que dura dura muito tempo. Esta segunda parte não acha crentes fáceis; ao contrário, a

idéia de que um castelo de vento dura mais que o mesmo vento de que é feito,

dificilmente se despegará da cabeça, e é bom que seja assim, para que se não perca o

costume daquelas construções quase eternas.

O nosso castelo era sólido, mas um domingo... Na véspera tínhamos passado a

noite no Flamengo, não só os dois casais inseparáveis, como ainda o agregado e prima

Justina. Foi então que Escobar, falando-me à janela, disse-me que fossemos lá jantar no

dia seguinte; precisávamos falar de um projeto em família, um projeto para os quatro.

– Para os quatro? Uma contradança.

– Não. Não és capaz de adivinhar o que seja, nem eu digo. Vem amanhã.

Sancha não tirava os olhos de nós durante a conversa, ao canto da janela. Quando o marido saiu,

veio ter comigo. Perguntou-me de que é que faláramos; disse-lhe que de um projeto que eu não sabia qual

fosse; ela pediu-me segredo, e revelou-me o que era: uma viagem à Europa dali a dois anos. Disse isto de

costas para dentro, quase suspirando. O mar batia com grande força na praia; havia ressaca.

– Vamos todos? perguntei por fim.

– Vamos.

Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, graças às

relações dela e Capitu, não se me daria beijá-la na testa. Entretanto, os olhos de Sancha

não convidavam a expansões fraternais, pareciam quentes e intimativos, diziam outra

coisa, e não tardou que se afastassem da janela, onde eu fiquei olhando para o mar,

pensativo. A noite era clara.

Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os em

caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns dos outros, uns esperando que os

outros passassem, mas nenhuns passavam. Tal se dá na rua entre dois teimosos. A

cautela desligou-nos; eu tornei a voltar-me para fora. E assim posto entrei a cavar na

memória se alguma vez olhara para ela com a mesma expressão, e fiquei incerto. Tive

uma certeza só, é que um dia pensei nela, como se pensa na bela desconhecida que

passa; mas então dar-se-ia que ela adivinhando... Talvez o simples pensamento me

transluzisse cá fora, e ela me fugisse outrora irritada ou acanhada, e agora por um

movimento invencível... invencível; esta palavra foi como uma bênção de padre à missa,

que a gente recebe e repete em si mesma.

– O mar amanhã está de desafiar a gente, disse-me a voz de Escobar, ao pé de

mim.

– Você entra no mar amanhã?

– Tenho entrado com mares maiores, muito maiores. Você não imagina o que é

um bom mar em hora bravia. É preciso nadar bem, como eu, e ter estes pulmões, disse

ele batendo no peito, e estes braços; apalpa.

Apalpei-lhe os braços, como se fosse os de Sancha. Custa-me esta confissão,

mas não posso suprimi-la; era jarretar a verdade. Não só os apalpei com essa idéia, mas

ainda senti outra coisa: achei-os mais grossos e fortes que os meus, e tive-lhes inveja;

acresce que sabiam nadar.

Quando saímos, tornei a falar com os olhos à dona da casa. A mão dela apertou

muito a minha, e demorou-se mais que de costume.

A modéstia pedia então, como agora, que eu visse naquele gesto de Sancha uma

sanção ao projeto do marido e um agradecimento. Assim devia ser, mas um fluido

particular que me correu todo o corpo desviou de mim a conclusão que deixo escrita.

Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante

de vertigem e de pecado. Passou depressa no relógio do tempo; quando cheguei o

relógio ao ouvido trabalhavam só os minutos da virtude e da razão.

– ...Uma senhora deliciosíssima, concluiu José Dias um discurso que vinha

fazendo.

– Deliciosíssima! repeti com algum ardor, que moderei logo, emendando-me:

Realmente, uma bela noite!

– Como devem ser todas as daquela casa, continuou o agregado. Cá fora, não; cá

fora o mar está zangado; escute.

Ouvia-se o mar forte, – como já se ouvia de casa, – a ressaca era grande e, a

distância, viam-se crescer as ondas. Capitu e prima Justina, que iam adiante, detiveramse

numa das voltas da praia, e fomos conversando os quatro; mas eu conversava mal.

Não havia meio de esquecer inteiramente a mão de Sancha nem os olhos que trocamos.

Agora achava-lhes isto, agora aquilo. Os instantes do diabo intercalavam-se nos minutos

de Deus, e o relógio foi assim marchando alternativamente a minha perdição e a minha

salvação. José Dias despediu-se de nós à porta. Prima Justina dormiu em nossa casa; iria

embora, no dia seguinte, depois do almoço e da missa. Eu recolhi-me ao meu gabinete,

onde me demorei mais que de costume.

O retrato de Escobar, que eu tinha ali, ao pé do de minha mãe, falou-me como se

fosse a própria pessoa. Combati sinceramente os impulsos que trazia do Flamengo;

rejeitei a figura da mulher do meu amigo, e chamei-me desleal. Demais, quem me

afirmava que houvesse alguma intenção daquela espécie no gesto da despedida e nos

anteriores? Tudo podia ligar-se ao interesse da nossa viagem. Sancha e Capitu eram tão

amigas que seria um prazer mais para elas irem juntas. Quando houvesse alguma

intenção sexual, quem me provaria que não era mais que uma sensação fulgurante,

destinada a morrer com a noite e o sono? Há remorsos que não nascem de outro pecado,

nem têm maior duração. Agarrei-me a esta hipótese que se conciliava com a mão de

Sancha, que eu sentia de memória dentro da minha mão, quente e demorada, apertada e

apertando...

Sinceramente, eu achava-me mal entre um amigo e a atração. A timidez pode ser que fosse outra

causa daquela crise; não é só o céu que dá as nossas virtudes, a timidez também, não contando o acaso,

mas o acaso é um mero acidente; a melhor origem delas é o céu. Entretanto, como a timidez vem do céu,

que nos dá a compleição, a virtude, filha dela, é, genealogicamente, o mesmo sangue celestial. Assim

refletiria, se pudesse; mas a princípio vaguei à toa. Paixão não era, nem inclinação. Capricho seria ou

quê? Ao fim de vinte minutos era nada, inteiramente nada. O retrato de Escobar pareceu falar-me; vi-lhe a

atitude franca e simples, sacudi a cabeça e fui deitar-me.



CAPÍTULO CXIX

Não Faça Isso, Querida!

A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar a cavatina de ontem para

a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida; eu

mudo de rumo.



CAPÍTULO CXX

Os Autos

Na manhã seguinte acordei livre das abominações da véspera; chamei-lhes

alucinações, tomei café, percorri os jornais e fui estudar uns autos. Capitu e prima

Justina saíram para a missa das nove, na Lapa. A figura de Sancha desapareceu

inteiramente no meio das alegações da parte adversa, que eu ia lendo nos autos,

alegações falsas, inadmissíveis, sem apoio na lei nem nas praxes. Vi que era fácil

ganhar a demanda, consultei Dalloz, Pereira e Sousa...

Uma só vez olhei para o retrato de Escobar. Era uma bela fotografia tirada um

ano antes. Estava de pé, sobrecasaca abotoada, a mão esquerda no dorso de uma cadeira,

a direita metida ao peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo e

naturalidade. A moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatória, escrita

embaixo, não nas costas do cartão: “Ao meu querido Bentinho o seu querido Escobar.

20-4-70.” Estas palavras fortaleceram-me os pensamentos daquela manhã, e espancaram

de todo as recordações da véspera. Naquele tempo a minha vista era boa; eu podia lê-las

do lugar em que estava. Tornei aos autos.

27 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 29/37

CAPÍTULO CXIII



Embargos de Terceiro

Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso dela, não

continuei a sê-lo apesar do filho e dos anos. Sim, senhor, continuei. Continuei a tal

ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer;

muita vez só a indiferença bastava. Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um

vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou

desconfiança. É certo que Capitu gostava de ser vista, e o meio mais próprio a tal fim

(disse-me uma senhora, um dia) é ver também, e não há ver sem mostrar que se vê.

A senhora que me disse isto cuido que gostou de mim, e foi naturalmente por

não achar da minha parte correspondência aos seus afetos que me explicou daquela

maneira os seus olhos teimosos. Outros olhos me procuravam também, não muitos, e

não digo nada sobre eles, tendo aliás confessado a princípio as minhas aventuras

vindouras, mas eram ainda vindouras. Naquele tempo, por mais mulheres bonitas que

achasse, nenhuma receberia a mínima parte do amor que tinha a Capitu. A minha

própria mãe não queria mais que metade. Capitu era tudo e mais que tudo; não vivia

nem trabalhava que não fosse pensando nela. Ao teatro íamos juntos; só me lembra que

fosse duas vezes sem ela, um benefício de ator, e uma estréia de ópera, a que ela não foi

por ter adoecido, mas quis por força que eu fosse. Era tarde para mandar o camarote a

Escobar; saí, mas voltei no fim do primeiro ato. Encontrei Escobar à porta do corredor.

– Vinha falar-te, disse-me ele.

Expliquei que tinha saído para o teatro donde voltara receoso de Capitu, que

ficara doente.

– Doente de quê? perguntou Escobar.

– Queixava-se da cabeça e do estômago.

– Então, vou-me embora. Vinha para aquele negócio dos embargos...

Eram uns embargos de terceiros; ocorrera um incidente importante, e, tendo ele

jantado na cidade, não quis ir para casa sem dizer-me o que era, mas já agora falaria

depois...

– Não, falemos já, sobe, ela pode estar melhor. Se estiver pior, desces.

Capitu estava melhor e até boa. Confessou-me que apenas tivera uma dor de

cabeça de nada, mas agravara o padecimento para que eu fosse divertir-me. Não falava

alegre, o que me fez desconfiar que mentia, para me não meter medo, mas jurou que era

a verdade pura. Escobar sorriu e disse:

– A cunhadinha está tão doente como você ou eu. Vamos aos embargos.



CAPÍTULO CXIV

Em que se Explica o Explicado

Antes de ir aos embargos, expliquemos ainda um ponto que já ficou explicado,

mas não bem explicado. Viste que eu pedi (cap. CX) a um professor de música de S.

Paulo que me escrevesse a toada daquele pregão de doces de Matacavalos. Em si, a

matéria é chocha, e não vale a pena de um capítulo, quanto mais dois; mas há matérias

tais que trazem ensinamentos interessantes, se não agradáveis. Expliquemos o

explicado.

Capitu e eu tínhamos jurado não esquecer mais aquele pregão; foi em momento

de grande ternura, e o tabelião divino sabe as coisas que se juram em tais momentos, ele

que as registra nos livros eternos.

– Você jura?

– Juro, disse ela estendendo tragicamente o braço.

Aproveitei o gesto para beijar-lhe a mão; estava ainda no seminário. Quando fui

para S. Paulo, querendo um dia relembrar a toada, vi que a ia perdendo inteiramente;

consegui recordá-la e corri ao professor, que me fez o obséquio de a escrever no

pedacinho de papel. Foi para não faltar ao juramento que fiz isto. Mas hás de crer que,

quando corri aos papéis velhos, naquela noite da Glória, também me não lembrava já da

toada nem do texto? Fiz-me de pontual ao juramento, e este é que foi o meu pecado;

esquecer, qualquer esquece.

Ao certo, ninguém sabe se há de manter ou não um juramento. Coisas futuras! Portanto, a nossa

constituição política, transferindo o juramento à afirmação simples, é profundamente moral. Acabou com

um pecado terrível. Faltar ao compromisso é sempre infidelidade, mas a alguém que tenha mais temor a

Deus que aos homens não lhe importará mentir, uma vez ou outra, desde que não mete a alma no

purgatório. Não confundam purgatório com inferno, que é o eterno naufrágio. Purgatório é uma casa de

penhores, que empresta sobre todas as virtudes, a juro alto e prazo curto. Mas os prazos renovam-se, até

que um dia uma ou duas virtudes medianas pagam os pecados grandes e pequenos.



CAPÍTULO CXV

Dúvidas sobre Dúvidas

Vamos agora aos embargos... E por que iremos aos embargos? Deus sabe o que

custa escrevê-los, quanto mais contá-los. Da circunstância nova que Escobar me trazia

apenas digo o que lhe disse então, isto é, que não valia nada.

– Nada?

– Quase nada.

– Então vale alguma coisa.

– Para reforçar as razões que já temos vale menos que o chá que você vai tomar

comigo.

– É tarde para tomar chá.

– Tomaremos depressa.

Tomamos depressa. Durante ele, Escobar olhava para mim desconfiado, como se

cuidasse que recusava a circunstância nova por forrar-me a escrevê-la; mas tal suspeita

não ia com a nossa amizade.

Quando ele saiu, referi as minhas dúvidas a Capitu; ela as desfez com a arte fina

que possuía, um jeito, uma graça toda sua, capaz de dissipar as mesmas tristezas de

Olímpio.

– Seria o negócio dos embargos, concluiu; e ele que veio até aqui, a esta hora, é

que está impressionado com a demanda.

– Tens razão.

Palavra puxa palavra, falei outras dúvidas. Eu era então um poço delas;

coaxavam dentro de mim, como verdadeiras rãs, a ponto de me tirarem o sono algumas

vezes. Disse-lhe que começava a achar minha mãe um tanto fria e arredia com ela. Pois

aqui mesmo valeu a arte fina de Capitu!

– Já disse a você o que é; coisas de sogra. Mamãezinha tem ciúmes de você;

logo que eles passem e as saudades aumentem, ela torna a ser o que era. Em lhe faltando

o neto...

– Mas eu tenho notado que já é fria também com Ezequiel. Quando ele vai

comigo, mamãe não lhe faz as mesmas graças.

– Quem sabe se não anda doente?

– Vamos nós jantar com ela amanhã?

– Vamos... Não... Pois vamos.

Fomos jantar com a minha velha. Já lhe podia chamar assim, posto que os seus

cabelos brancos não o fossem todos nem totalmente, e o rosto estivesse

comparativamente fresco; era uma espécie de mocidade qüinquagenária ou de

ancianidade viçosa, à escolha... Mas nada de melancolias; não quero falar dos olhos

molhados, à entrada e à saída. Pouco entrou na conversação. Também não era diferente

da costumada. José Dias falou do casamento e suas belezas, da política, da Europa e da

homeopatia, tio Cosme das suas moléstias, prima Justina da vizinhança, ou de José

Dias, quando este saía da sala.

Quando voltamos, à noite, viemos por ali a pé, falando das minhas dúvidas. Capitu novamente

me aconselhou que esperássemos. Sogras eram todas assim; lá vinha um dia e mudavam. Ao passo que

me falava, recrudescia de ternura. Dali em diante foi cada vez mais doce comigo; não me ia esperar à

janela, para não espertar-me os ciúmes, mas quando eu subia, via no alto da escada, entre as grades da

cancela, a cara deliciosa da minha amiga e esposa, risonha como toda a nossa infância. Ezequiel às vezes

estava com ela; nós o havíamos acostumado a ver o ósculo da chegada e da saída, e ele enchia-me a cara

de beijos.



CAPÍTULO CXVI

Filho do Homem

Apalpei José Dias sobre as maneiras novas de minha mãe; ficou espantado. Não

havia nada, nem podia haver coisa nenhuma, tantos eram os louvores incessantes que

ele ouvia “à bela e virtuosa Capitu”.

– Agora, quando os ouço, entro também no coro; mas a princípio ficava

envergonhadíssimo. Para quem chegou, como eu, a arrenegar deste casamento, era duro

confessar que ele foi uma verdadeira bênção do céu. Que digna senhora nos saiu a

criança travessa de Matacavalos! O pai é que nos separou um pouco, enquanto não nos

conhecíamos, mas tudo acabou em bem. Pois, sim, senhor, quando D. Glória elogia a

sua nora e comadre...

– Então mamãe?...

– Perfeitamente!

– Mas, por que é que não nos visita há tanto tempo?

– Creio que tem andado mais achacada dos seus reumatismos. Este ano tem feito

muito frio... Imagine a aflição dela, que andava o dia inteiro, agora é obrigada a estar

quieta, ao pé do irmão, que lá tem o seu mal...

Quis observar-lhe que tal razão explicava a interrupção das visitas, e não a frieza

quando íamos nós a Matacavalos; mas não estendi tão longe a intimidade do agregado.

José Dias pediu para ver o nosso “profetazinho” (assim chamava o Ezequiel) e fez-lhe

as festas do costume. Desta vez falou ao modo bíblico (estivera na véspera a folhear o

livro de Ezequiel, como soube depois) e perguntava-lhe: “Como vai isso, filho do

homem?” “Dize-me, filho do homem, onde estão os teus brinquedos?” “Queres comer

doce, filho do homem?”

– Que filho do homem é esse? perguntou Capitu agastada.

– São os modos de dizer da Bíblia.

– Pois eu não gosto deles, replicou ela com aspereza.

– Tem razão, Capitu, concordou o agregado. Você não imagina como a Bíblia é

cheia de expressões cruas e grosseiras. Eu falava assim para variar... Tu como vais, meu

anjo? Meu anjo, como é que eu ando na rua?

– Não, atalhou Capitu; já lhe vou tirando esse costume de imitar os outros.

– Mas tem muita graça; a mim, quando ele copia os meus gestos, parece-me que

sou eu mesmo, pequenino. Outro dia chegou a fazer um gesto de D. Glória, tão bem que

ela lhe deu um beijo em paga. Vamos, como é que eu ando?

– Não, Ezequiel, disse eu, mamãe não quer.

Eu mesmo achava feio tal sestro. Alguns dos gestos já lhe iam ficando mais

repetidos, como o das mãos e pés de Escobar; ultimamente, até apanhara o modo de

voltar a cabeça deste, quando falava, e o de deixá-la cair, quando ria. Capitu ralhava.

Mas o menino era travesso, como o diabo; apenas começávamos a falar de outra coisa,

saltou ao meio da sala, dizendo a José Dias:

– O senhor anda assim.

Não pudemos deixar de rir, eu mais que ninguém. A primeira pessoa que fechou

a cara, que o repreendeu e chamou a si foi Capitu.

– Não quero isso, ouviu?

26 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 28/37

CAPÍTULO CIX



Um Filho Único

Ezequiel, quando começou o capítulo anterior, não era ainda gerado; quando

acabou era cristão e católico. Este outro é destinado a fazer chegar o meu Ezequiel aos

cinco anos, um rapagão bonito, com os seus olhos claros, já inquietos, como se

quisessem namorar todas as moças da vizinhança, ou quase todas.

Agora, se considerares que ele foi único, que nenhum outro veio, certo nem incerto, morto nem

vivo, um só e único, imaginarás os cuidados que nos deu, os sonos que nos tirou, e que sustos nos

meteram as crises dos dentes e outras, a menor febrícula, toda a existência comum das crianças. A tudo

acudíamos, segundo cumpria e urgia, coisa que não era necessário dizer, mas há leitores tão obtusos, que

nada entendem, se se lhes não relata tudo e o resto. Vamos ao resto.



CAPÍTULO CX

Rasgos da Infância

O resto come-me ainda muitos capítulos; há vidas que os têm menos, e fazem-se

ainda assim completas e acabadas.

Aos cinco e seis anos, Ezequiel não parecia desmentir os meus sonhos da praia

da Glória; ao contrário, adivinhavam-se nele todas as vocações possíveis, desde vadio

até apóstolo. Vadio é aqui posto no bom sentido, no sentido de homem que pensa e cala;

metia-se às vezes consigo, e nisto fazia lembrar a mãe, desde pequena. Assim também,

agitava-se todo e instava por ir persuadir às vizinhas que os doces que eu lhe trazia eram

doces deveras; não o fazia antes de farto deles, mas também os apóstolos não levam a

boa doutrina senão depois de a terem toda no coração. Escobar, bom negociante,

opinava que a causa principal desta outra inclinação, talvez fosse convidar

implicitamente as vizinhas a igual apostolado, quando os pais lhe trouxessem doces; e

ria-se da própria graça, e anunciava-me que o faria seu sócio.

Gostava de música, não menos que de doce, e eu disse a Capitu que lhe tirasse

ao piano o pregão do preto das cocadas de Matacavalos...

– Não me lembra.

– Não diga isso; você não se lembra daquele preto que vendia doce, às tardes...

Lembro-me de um preto que vendia doce, mas não sei mais da toada.

– Nem das palavras?

– Nem das palavras.

– A leitora, que ainda se lembrará das palavras, dado que me tenha lido com

atenção, ficará espantada de tamanho esquecimento, tanto mais que lhe lembrarão ainda

as vozes da sua infância e adolescência; haverá olvidado algumas, mas nem tudo fica na

cabeça. Assim me replicou Capitu, e não achei tréplica. Fiz, porém, o que ela não

esperava; corri aos meus papéis velhos. Em S. Paulo, quando estudante, pedi a um

professor de música que me transcrevesse a toada do pregão; ele o fez com prazer

(bastou-me repetir-lho de memória), e eu guardei o papelinho; fui procurá-lo. Daí a

pouco interrompi um romance que ela tocava, com o pedacinho de papel na mão.

Expliquei-lho; ela teclou as dezesseis notas.

Capitu achou à toada um sabor particular, quase delicioso; contou ao filho a

história do pregão, e assim o cantava e teclava. Ezequiel aproveitou a música para pedirme

que desmentisse o texto, dando-lhe algum dinheiro.

Fazia de médico, de militar, de ator e bailarino. Nunca lhe dei oratórios; mas

cavalos de pau e espada à cinta eram com ele. Já não falo dos batalhões que passavam

na rua, e que ele corria a ver; todas as crianças o fazem. O que nem todos fazem é ter os

olhos que esta tinha. Em nenhuma vi as ânsias de gosto com que assistia à passagem da

tropa e ouvia a marcha dos tambores.

– Olha, papai! olha!

– Estou vendo, meu filho!

– Olha o comandante! Olha o cavalo do comandante! Olha os soldados!

Um dia amanheceu tocando corneta com a mão; dei-lhe uma cornetinha de

metal. Comprei-lhe soldadinhos de chumbo, gravuras de batalhas que ele mirava por

muito tempo, querendo que lhe explicasse uma peça de artilharia, um soldado caído,

outro de espada alçada, e todos os seus amores iam para o de espada alçada. Um dia

(ingênua idade!) perguntou-me impaciente:

– Mas, papai, por que é que ele não deixa cair a espada de uma vez?

– Meu filho, é porque é pintado.

– Mas então por que é que ele se pintou?

Ri-me do engano e expliquei que não era o soldado que se tinha pintado no

papel, mas o gravador, e tive de explicar também o que era gravador e o que era

gravura: as curiosidades de Capitu, em suma.

Tais são os principais rasgos da infância: mais um e acabo o capítulo. Um dia, na

chácara de Escobar, deu com um gato que tinha um rato atravessado na boca. O gato

nem deixava a presa, nem via por onde fugisse. Ezequiel não disse nada, deteve-se,

acocorou-se, e ficou olhando. Ao vê-lo assim atento, perguntamos-lhe de longe o que

era; fêz-nos sinal que nos calássemos. Escobar concluiu:

– Vão ver que é o gato que apanhou algum rato. Os ratos continuam a infestar-se

a casa, que é o diabo. Vamos ver.

Capitu quis também ver o filho; acompanhei-os. Efetivamente, era um gato e um

rato, lance banal, sem interesse nem graça. A única circunstância particular era estar o

rato vivo, esperneando, e o meu pequeno enlevado. De resto, o instante foi curto. O

gato, logo que sentiu mais gente, dispôs-se a correr; o menino, sem tirar-lhes os olhos de

cima, fez-nos outro sinal de silêncio; e o silêncio não podia ser maior. Ia dizer religioso,

risquei a palavra, mas aqui a ponho outra vez, não só por significar a totalidade do

silêncio, mas também porque havia naquela ação do gato e do rato alguma coisa que

prendia com ritual. O único rumor eram os últimos guinchos do rato, aliás frouxíssimos,

as pernas mal se lhe moviam e desordenadamente. Um tanto aborrecido, bati palmas

para que o gato fugisse, e o gato fugiu. Os outros nem tiveram tempo de atalhar-me,

Ezequiel ficou abatido.

– Ora, papai!!

– Que foi? A esta hora o rato está comido.

– Pois sim, mas eu queria ver.

Os dois riram-se; eu mesmo achei-lhe graça.



CAPÍTULO CXI

Contado Depressa

Achei-lhe graça, e não lha nego ainda agora, apesar do tempo passado, dos

sucessos ocorridos e da tal ou qual simpatia ao rato que acho em mim; teve graça. Não

me pesa dizê-lo; os que amam a natureza como ela quer ser amada, sem repúdio parcial

nem exclusões injustas, não acham nela nada inferior. Amo o rato, não desamo o gato.

Já pensei em os fazer viver juntos, mas vi que são incompatíveis. Em verdade, um róime

os livros, outro o queijo; mas não é muito que eu lhes perdoe, se já perdoei a um

cachorro que me levou o descanso em piores circunstâncias. Contarei o caso depressa.

Foi quando nasceu Ezequiel; a mãe estava com febre, Sancha vivia ao pé dela, e três cães na

rua latiam toda a noite. Procurei o fiscal, e foi como se procurasse o leitor, que só agora sabe disto. Então

resolvi matá-los; comprei veneno, mandei fazer três bolas de carne, e eu mesmo inseri nelas a droga. De

noite, saí; era uma hora; nem a doente, nem a enfermeira podiam dormir, com a bulha dos cães. Quando

eles me viram, afastaram-se, dois desceram para o lado da praia do Flamengo, um ficou a curta distância,

como que esperando. Fui-me a ele, assobiando e dando estalinhos com os dedos. O diabo ainda latiu, mas

fiado nos sinais de amizade, foi-se calando, até que se calou de todo. Como eu continuasse, ele veio a

mim, devagar, mexendo a cauda, que é o seu modo de rir deles; eu tinha já na mão as bolas envenenadas,

e ia deitar-lhe uma delas, quando aquele riso especial, carinho, confiança ou o que quer que seja, me atou

a vontade; fiquei assim não sei como, tocado de pena e guardei as bolas no bolso. Ao leitor pode parecer

que foi o cheiro da carne que remeteu o cão ao silêncio. Não digo que não; eu cuido que ele não me quis

atribuir perfídia ao gesto, e entregou-se-me. A conclusão é que se livrou.



CAPÍTULO CXII

As Imitações de Ezequiel

Tal não faria Ezequiel. Não comporia bolas envenenadas, suponho, mas não as recusaria

também. O que faria com certeza era ir atrás dos cães, à pedrada, até onde lhe dessem as pernas. E se

tivesse um pau, iria a pau. Capitu morria por aquele batalhador futuro.

– Não sai a nós, que gostamos da paz, disse-me ela um dia, mas papai em moço

era assim também; mamãe é que contava.

– Sim, não sairá maricas, repliquei; eu só lhe descubro um defeitozino, gosta de

imitar os outros.

– Imitar como?

– Imitar os gestos, os modos, as atitudes; imita prima Justina, imita José Dias; já

lhe achei até um jeito dos pés de Escobar e dos olhos...

Capitu deixou-se estar pensando e olhando para mim, e disse afinal que era

preciso emendá-lo. Agora reparava que realmente era vezo do filho, mas parecia-lhe que

era só imitar por imitar, como sucede a muitas pessoas grandes, que tomam as maneiras

dos outros; e para que não fosse mais longe...

– Também não vamos mortificá-lo. Sempre há tempo de corrigi-lo.

– Há, vou ver. Você também não era assim, quando se zangava com alguém...

– Quando me zangava, concordo; vingança de menino.

– Sim, mas eu não gosto de imitações em casa.

– E naquele tempo gostavas de mim? disse eu batendo-lhe na face.

A resposta de Capitu foi um riso doce de escárnio, um desses risos que não se

descrevem, e apenas se pintarão; depois estirou os braços e atirou-os sobre os ombros,

tão cheios de graça que pareciam (velha imagem!) um colar de flores. Eu fiz o mesmo

aos meus, e senti não haver ali um escultor que nos transferisse a atitude a um pedaço de

mármore. Só brilharia o artista, é certo. Quando uma pessoa ou um grupo saem bem,

ninguém quer saber do modelo, mas da obra, e a obra é que fica. Não importa; nós

saberíamos que éramos nós.

25 de out. de 2011

Leitura diária - Postagem 27/37

CAPÍTULO CV



Os Braços

No mais, tudo corria bem. Capitu gostava de rir e divertir-se, e, nos primeiros

tempos, quando íamos a passeios ou espetáculos, era como um pássaro que saísse da

gaiola. Arranjava-se com graça e modéstia. Embora gostasse de jóias, como as outras

moças, não queria que eu lhe comprasse muitas nem caras, e um dia afligiu-se tanto que

prometi não comprar mais nenhuma; mas foi só por pouco tempo.

A nossa vida era mais ou menos plácida. Quando não estávamos com a família

ou com amigos, ou se não íamos a algum espetáculo ou serão particular (e estes eram

raros), passávamos as noites à nossa janela da Glória, mirando o mar e o céu, a sombra

das montanhas e dos navios, ou a gente que passava na praia. Às vezes, eu contava a

Capitu a história da cidade, outras dava-lhe notícias de astronomia; notícias de amador

que ela escutava atenta e curiosa, nem sempre tanto que não cochilasse um pouco. Não

sabendo piano, aprendeu depois de casada, e depressa, e daí a pouco tocava nas casas de

amizade. Na Glória era uma das nossas recreações; também cantava, mas pouco e raro,

por não ter voz; um dia chegou a entender que era melhor não cantar nada e cumpriu o

alvitre. De dançar gostava, e enfeitava-se com amor quando ia a um baile; os braços é

que... Os braços merecem um período.

Eram belos, e na primeira noite que os levou nus a um baile, não creio que

houvesse iguais na cidade, nem os seus, leitora, que eram então de menina, se eram

nascidos, mas provavelmente estariam ainda no mármore, donde vieram, ou nas mãos

do divino escultor. Eram os mais belos da noite, a ponto que me encheram de

desvanecimento. Conversava mal com as outras pessoas, só para vê-los, por mais que

eles se entrelaçassem aos das casacas alheias. Já não foi assim no segundo baile; nesse,

quando vi que os homens não se fartavam de olhar para eles, de os buscar, quase de os

pedir, e que roçavam por eles as mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido. Ao terceiro

não fui, e aqui tive o apoio de Escobar, a quem confiei candidamente os meus tédios;

concordou logo comigo.

– Sanchinha também não vai, ou irá de mangas compridas; o contrário pareceme

indecente.

– Não é? Mas não diga o motivo; hão de chamar-nos seminaristas. Capitu já me

chamou assim.

Nem por isso deixei de contar a Capitu a aprovação de Escobar. Ela sorriu e respondeu que os

braços de Sanchinha eram malfeitos, mas cedeu depressa, e não foi ao baile; a outros foi, mas levou-os

meio vestidos de escumilha ou não sei que, que nem cobria nem descobria inteiramente, como o cendal de

Camões.



CAPÍTULO CVI

Dez Libras Esterlinas

Já disse que era poupada, ou fica dito agora, e não só de dinheiro mas também

de coisas usadas, dessas que se guardam por tradição, por lembrança ou por saudade.

Uns sapatos, por exemplo, uns sapatinhos rasos de fitas pretas que se cruzavam no peito

do pé e princípio da perna, os últimos que usou antes de calçar botinas, trouxe-os para

casa, e tirava-os de longe em longe da gaveta da cômoda, com outras velharias,

dizendo-me que eram pedaços de criança. Minha mãe, que tinha o mesmo gênio,

gostava de ouvir falar e fazer assim.

Quanto às puras economias de dinheiro, direi um caso, e basta. Foi justamente

por ocasião de uma lição de astronomia, à praia da Glória. Sabes que alguma vez a fiz

cochilar um pouco. Uma noite perdeu-se em fitar o mar, com tal força e concentração,

que me deu ciúmes.

– Você não me ouve, Capitu.

– Eu? Ouço perfeitamente.

– O que é que eu dizia?

– Você... você falava de Sírio.

– Qual Sírio, Capitu. Há vinte minutos que eu falei de Sírio.

– Falava de... falava de Marte, emendou ela apressada.

Realmente, era de Marte, mas é claro que só apanhara o som da palavra, não o

sentido. Fiquei sério, e o ímpeto que me deu foi deixar a sala; Capitu, ao percebê-lo,

fez-se a mais mimosa das criaturas, pegou-me na mão, confessou-me que estivera

contando, isto é, somando uns dinheiros para descobrir certa parcela que não achava.

Tratava-se de uma conversão de papel em ouro. A princípio supus que era um recurso

para desenfadar-me, mas daí a pouco estava eu mesmo calculando também, já então

com papel e lápis, sobre o joelho, e dava a diferença que ela buscava.

– Mas que libras são essas? perguntei-lhe no fim.

Capitu fitou-me rindo, e replicou que a culpa de romper o segredo era minha.

Ergueu-se, foi ao quarto e voltou com dez libras esterlinas, na mão; eram as sobras do

dinheiro que eu lhe dava mensalmente para as despesas.

– Tudo isto?

– Não é muito, dez libras só; é o que a avarenta de sua mulher pôde arranjar, em

alguns meses, concluiu fazendo tinir o ouro na mão.

– Quem foi o corretor?

– O seu amigo Escobar.

– Como é que ele não me disse nada?

– Foi hoje mesmo.

– Ele esteve cá?

– Pouco antes de você chegar; eu não disse para que você não desconfiasse.

Tive vontade de gastar o dobro do ouro em algum presente comemorativo, mas

Capitu deteve-me. Ao contrário, consultou-me sobre o que havíamos de fazer daquelas

libras.

– São suas, respondi.

– São nossas, emendou.

– Pois você guarde-as.

No dia seguinte, fui ter com Escobar ao armazém, e ri-me do segredo de ambos.

Escobar sorriu e disse-me que estava para ir ao meu escritório contar-me tudo. A cunhadinha

(continuava a dar este nome a Capitu) tinha-lhe falado naquilo por ocasião de

nossa última visita a Andaraí, e disse-lhe a razão do segredo.

– Quando contei isto a Sanchinha, concluiu ele, ficou espantada: “Como é que

Capitu pode economizar, agora que tudo está tão caro?” – “Não sei, filha; sei que

arranjou dez libras.”

– Vê se ela aprende também.

– Não creio; Sanchinha não é gastadeira, mas também não é poupada; o que lhe

dou chega, mas só chega.

Eu, depois de alguns instantes de reflexão:

– Capitu é um anjo!

Escobar concordou de cabeça, mas sem entusiasmo, como quem sentia não poder dizer o mesmo

da mulher. Assim pensarias tu também, tão certo é que as virtudes das pessoas próximas nos dão tal ou

qual vaidade, orgulho ou consolação.



CAPÍTULO CVII

Ciúmes do Mar

Se não fosse a astronomia, não descobriria eu tão cedo as dez libras de Capitu;

mas não é por isso que torno a ela, é para que não cuide que a vaidade de professor é

que me fez padecer com a desatenção de Capitu e ter ciúmes do mar. Não, meu amigo.

Venho explicar-te que tive tais ciúmes pelo que podia estar na cabeça de minha mulher,

não fora ou acima dela. É sabido que as distrações de uma pessoa podem ser culpadas,

metade culpadas, um terço, um quinto, um décimo de culpadas, pois que em matéria de

culpa a graduação é infinita. A recordação de uns simples olhos basta para fixar outros

que os recordem e se deleitem com a imaginação deles. Não é mister pecado efetivo e

mortal, nem papel trocado, simples palavra, aceno, suspiro ou sinal ainda mais miúdo e

leve. Um anônimo ou anônima que passe na esquina da rua faz com que metamos Sírio

dentro de Marte, e tu sabes, leitor, a diferença que há de um a outro na distância e no

tamanho, mas a astronomia tem dessas confusões. Foi isto que me fez empalidecer,

calar e querer fugir da sala para voltar, Deus sabe quando; provavelmente, dez minutos

depois. Dez minutos depois, estaria eu outra vez na sala, ao piano ou à janela,

continuando a lição interrompida:

– Marte está a distância de...

Tão pouco tempo? Sim, tão pouco tempo, dez minutos. Os meus ciúmes eram

intensos, mas curtos; com pouco derrubaria tudo, mas com o mesmo pouco ou menos

reconstruiria o céu, a terra e as estrelas.

A verdade é que fiquei mais amigo de Capitu, se era possível, ela ainda mais meiga, o ar mais

brando, as noites mais claras, e Deus mais Deus. E não foram propriamente as dez libras esterlinas que

fizeram isto, nem o sentimento de economia que revelavam e que eu conhecia, mas as cautelas que Capitu

empregou para o fim de descobrir-me um dia o cuidado de todos os dias. Escobar também se me fez mais

pegado ao coração. As nossas visitas foram-se tornando mais próximas, e as nossas conversações mais

íntimas.



CAPÍTULO CVIII

Um Filho

Pois nem tudo isso me matava a sede de um filho, um triste menino que fosse,

amarelo e magro, mas um filho, um filho próprio da minha pessoa. Quando íamos a

Andaraí e víamos a filha de Escobar e Sancha, familiarmente Capituzinha, por

diferençá-la de minha mulher, visto que lhe deram o mesmo nome à pia, ficávamos

cheios de invejas. A pequena era graciosa e gorducha, faladeira e curiosa. Os pais, como

os outros pais, contavam as travessuras e agudezas da menina, e nós, quando

voltávamos à noite para a Glória, vínhamos suspirando as nossas invejas, e pedindo

mentalmente ao céu que no-las matassem...

...As invejas morreram, as esperanças nasceram, e não tardou que viesse ao

mundo o fruto delas. Não era escasso nem feio, como eu já pedia, mas um rapagão

robusto e lindo.

A minha alegria quando ele nasceu, não sei dizê-la; nunca a tive igual, nem creio

que a possa haver idêntica, ou que de longe ou de perto se pareça com ela. Foi uma

vertigem e uma loucura. Não cantava na rua por natural vergonha, nem em casa para

não afligir Capitu convalescente. Também não caía, porque há um deus para os pais

novos. Fora, vivia com o espírito no menino; em casa, com os olhos, a observá-lo, a

mirá-lo, a perguntar-lhe donde vinha, e por que é que eu estava tão inteiramente nele, e

várias outras tolices sem palavras, mas pensadas ou deliradas a cada instante. Talvez

perdi algumas causas no foro por descuido.

Capitu não era menos terna para ele e para mim. Dávamos as mãos um ao outro,

e, quando não olhávamos para o nosso filho, conversávamos de nós, do nosso passado e

do nosso futuro. As horas de maior encanto e mistério eram as de amamentação.

Quando eu via o meu filho chupando o leite da mãe, e toda aquela união da natureza

para a nutrição e vida de um ser que não fora nada, mas que o nosso destino afirmou

que seria, e a nossa constância e o nosso amor fizeram que chegasse a ser, ficava que

não sei dizer nem digo; positivamente não me lembra, e receio que o que dissesse me

saísse escuro.

Escusai minúcias. Assim que, não é preciso contar a dedicação de minha mãe e

de Sancha, que também foi passar com Capitu os primeiros dias e noites. Quis rejeitar o

obséquio de Sancha; respondeu-me que eu não tinha nada com isso; também Capitu, em

solteira, fora tratá-la à Rua dos Inválidos.

– Não se lembra que o senhor foi lá vê-la?

– Lembra-me; mas Escobar...

– Eu virei jantar com vocês, e às noites sigo para Andaraí; oito dias, e está tudo

passado. Bem se vê que você é pai de primeira viagem.

– Também você; onde está a segunda?

Usávamos então estas graças em família. Hoje, que me recolhi à minha

casmurrice, não sei se ainda há tal linguagem, mas deve haver. Escobar cumpriu o que

disse; jantava conosco, e ia-se à noite. Sobretarde descíamos à praia ou íamos ao

Passeio Público, fazendo ele os seus cálculos, eu os meus sonhos. Eu via o meu filho

médico, advogado, negociante, meti-o em várias universidades e bancos, e até aceitei a

hipótese de ser poeta. A possibilidade de político foi consultada, e cri que me saísse

orador, e grande orador.

– Pode ser, redargüia Escobar; ninguém diria o que veio a ser Demóstenes.

Escobar acompanhava muita vez as minhas criancices; também interrogava o

futuro. Chegou a falar da hipótese de casar o pequeno com a filha. A amizade existe;

esteve toda nas mãos com que apertei as de Escobar, ao ouvir-lhe isto, e na total

ausência de palavras com que ali assinei o pacto; estas vieram depois, de atropelo,

afinadas pelo coração, que batia com grande força. Aceitei a lembrança, e propus que os

encaminhássemos a este fim, pela educação igual e comum, pela infância unida e

correta.

Era minha idéia que Escobar fosse padrinho do pequeno; a madrinha devia ser e

seria minha mãe. Mas a primeira parte se trocou por intervenção do tio Cosme, que, ao

ver a criança, disse-lhe entre outros carinhos.

– Anda, toma a bênção a teu padrinho, velhaco.

E, voltando-se para mim:

– Não desisto do favor; e há de ser depressa o batizado, antes que a minha

doença me leve de vez.

Contei discretamente a anedota a Escobar, para que ele me compreendesse e desculpasse; riu-se

e não se magoou. Fez mais, quis que o almoço do batizado fosse na chácara dele, e foi. Eu ainda tentei

espaçar a cerimônia a ver se tio Cosme sucumbia primeiro à doença, mas parece que esta era mais de

aborrecer que de matar. Não houve remédio senão levar o menino à pia, onde se lhe deu o nome de

Ezequiel; era o de Escobar, e eu quis suprir deste modo a falta de compadrio.