CAPÍTULO CXXXIII
Uma Idéia
Um dia, – era uma sexta-feira, – não pude mais. Certa idéia, que negrejava em mim, abriu as asas
e entrou a batê-las de um lado para outro, como fazem as idéias que querem sair. O ser sexta-feira creio
que foi acaso, mas também pode ter sido propósito; fui educado no terror daquele dia; ouvi cantar baladas
em casa, vindas da roça e da antiga metrópole, nas quais a sexta-feira era o dia de agouro. Entretanto, não
havendo almanaques no cérebro, é provável que a idéia não batesse as asas senão pela necessidade que
sentia de vir ao ar e à vida. A vida é tão bela que a mesma idéia da morte precisa de vir primeiro a ela,
antes de se ver cumprida. Já me vais entendendo; lê agora outro capítulo.
CAPÍTULO CXXXIV
O Dia de Sábado
A idéia saiu finalmente do cérebro. Era noite, e não pude dormir, por mais que a
sacudisse de mim. Também nenhuma noite me passou tão curta. Amanheceu, quando
cuidava não ser mais que uma ou duas horas. Saí, supondo deixar a idéia em casa; ela
veio comigo. Cá fora tinha a mesma cor escura, as mesmas asas trépidas, e posto
avoasse com elas, era como se fosse fixa; eu a levava na retina, não que me encobrisse
as coisas externas, mas via-as através dela, com a cor mais pálida que de costume, e sem
se demorarem nada.
Não me lembra bem o resto do dia. Sei que escrevi algumas cartas, comprei uma
substância, que não digo, para não despertar o desejo de prová-la. A farmácia faliu, é
verdade; o dono fez-se banqueiro, e o banco prospera. Quando me achei com a morte no
bolso senti tamanha alegria como se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior,
porque o prêmio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta. Fui à casa de minha mãe,
com o fim de despedir-me, a título de visita. Ou de verdade ou por ilusão, tudo ali me
pareceu melhor nesse dia, minha mãe menos triste, tio Cosme esquecido do coração,
prima Justina, da língua. Passei uma hora em paz. Cheguei a abrir mão do projeto. Que
era preciso para viver? Nunca mais deixar aquela casa, ou prender aquela hora a mim
mesmo...
CAPÍTULO CXXXV
Otelo
Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não
vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes
raivas do mouro, por causa de um lenço, – um simples lenço! – e aqui dou matéria à
meditação dos psicólogos deste e de outros Continentes, pois não me pude furtar à
observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais
sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se, hoje são precisos os próprios
lençóis; alguma vez nem lençóis há, e valem só as camisas. Tais eram as idéias que me
iam passando pela cabeça, vagas e turvas, à medida que o mouro rolava convulso, e
Iago destilava a sua calúnia. Nos intervalos não me levantava da cadeira; não queria
expor-me a encontrar algum conhecido. As senhoras ficavam quase todas nos
camarotes, enquanto os homens iam fumar. Então eu perguntava a mim mesmo se
alguma daquelas não teria amado alguém que jazesse agora no cemitério, e vinham
outras incoerências, até que o pano subia e continuava a peça. O último ato mostrou-me
que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras
amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos
frenéticos do público.
– E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo: – que faria o público, se ela
deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um
travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a
consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna
extinção...
Vaguei pelas ruas o resto da noite. Ceei, é verdade, um quase nada, mas o
bastante para ir até à manhã. Vi as últimas horas da noite e as primeiras do dia, vi os
derradeiros passeadores e os primeiros varredores, as primeiras carroças, os primeiros
ruídos, os primeiros albores, um dia que vinha depois do outro e me veria ir para nunca
mais voltar. As ruas que eu andava como que me fugiam por si mesmas. Não tornaria a
contemplar o mar da Glória, nem a serra dos Órgãos, nem a Fortaleza de Santa-Cruz e
as outras. A gente que passava não era tanta, como nos dias comuns da semana, mas era
já numerosa e ia a algum trabalho, que repetiria depois; eu é que não repetiria mais
nada.
Cheguei a casa, abri a porta devagarinho, subi pé ante pé, e meti-me no gabinete; iam dar seis
horas. Tirei o veneno do bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi ainda uma carta, a última, dirigida
a Capitu. Nenhuma das outras era para ela; senti necessidade de lhe dizer uma palavra em que lhe ficasse
o remorso da minha morte. Escrevi dois textos. O primeiro queimei-o por ser longo e difuso. O segundo
continha só o necessário, claro e breve. Não lhe lembrava o nosso passado, nem as lutas havidas, nem
alegria alguma; falava-lhe só de Escobar e da necessidade de morrer.
CAPÍTULO CXXXVI
A Xícara de Café
O meu plano foi esperar o café, dissolver nele a droga e ingeri-la. Até lá, não
tendo esquecido de todo a minha história romana, lembrou-me que Catão, antes de se
matar, leu e releu um livro de Platão. Não tinha Platão comigo; mas um tomo truncado
de Plutarco, em que era narrada a vida do célebre romano; bastou-me a ocupar aquele
pouco tempo, e, para em tudo imitá-lo, estirei-me no canapé. Nem era só imitá-lo nisso;
tinha necessidade de incutir em mim a coragem dele, assim como ele precisara dos
sentimentos do filósofo para intrepidamente morrer. Um dos males da ignorância é não
ter este remédio à última hora. Há muita gente que se mata sem ele, e nobremente
expira; mas estou que muita mais gente poria termo aos seus dias, se pudesse achar essa
espécie de cocaína moral dos bons livros. Entretanto, querendo fugir a qualquer suspeita
de imitação, lembra-me bem que, para não ser encontrado ao pé de mim o livro de
Plutarco, nem ser dada a notícia nas gazetas com a cor das calças que eu então vestia,
assenti de pô-lo novamente no seu lugar, antes de beber o veneno.
O copeiro trouxe o café. Ergui-me, guardei o livro, e fui para a mesa onde ficara
a xícara. Já a casa estava em rumores; era tempo de acabar comigo. A mão tremeu-me
ao abrir o papel em que trazia a droga embrulhada. Ainda assim tive ânimo de despejar
a substância na xícara, e comecei a mexer o café, os olhos vagos, a memória em
Desdêmona inocente; o espetáculo da véspera vinha intrometer-se na realidade da
manhã. Mas a fotografia de Escobar deu-me o ânimo que me ia faltando; lá estava ele,
com mão nas costas da cadeira, a olhar ao longe...
– Acabemos com isto, pensei.
Quando ia beber, cogitei se não seria melhor esperar que Capitu e o filho
saíssem para a missa; beberia depois; era melhor. Assim disposto, entrei a passear no
gabinete. Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi-o entrar e correr a mim bradando:
– Papai, papai!
Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por havê-lo inteiramente
esquecido, mas crê que foi belo e trágico. Efetivamente, a figura do pequeno fez-me
recuar até dar de costas na estante. Ezequiel abraçou-me os joelhos, esticou-se na ponta
dos pés, como querendo subir e dar-me o beijo do costume; e repetia, puxando-me:
– Papai! papai!
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