2 de nov. de 2011

Leitura diária - Postagem 34/37

CAPÍTULO CXXXIII



Uma Idéia

Um dia, – era uma sexta-feira, – não pude mais. Certa idéia, que negrejava em mim, abriu as asas

e entrou a batê-las de um lado para outro, como fazem as idéias que querem sair. O ser sexta-feira creio

que foi acaso, mas também pode ter sido propósito; fui educado no terror daquele dia; ouvi cantar baladas

em casa, vindas da roça e da antiga metrópole, nas quais a sexta-feira era o dia de agouro. Entretanto, não

havendo almanaques no cérebro, é provável que a idéia não batesse as asas senão pela necessidade que

sentia de vir ao ar e à vida. A vida é tão bela que a mesma idéia da morte precisa de vir primeiro a ela,

antes de se ver cumprida. Já me vais entendendo; lê agora outro capítulo.



CAPÍTULO CXXXIV

O Dia de Sábado

A idéia saiu finalmente do cérebro. Era noite, e não pude dormir, por mais que a

sacudisse de mim. Também nenhuma noite me passou tão curta. Amanheceu, quando

cuidava não ser mais que uma ou duas horas. Saí, supondo deixar a idéia em casa; ela

veio comigo. Cá fora tinha a mesma cor escura, as mesmas asas trépidas, e posto

avoasse com elas, era como se fosse fixa; eu a levava na retina, não que me encobrisse

as coisas externas, mas via-as através dela, com a cor mais pálida que de costume, e sem

se demorarem nada.

Não me lembra bem o resto do dia. Sei que escrevi algumas cartas, comprei uma

substância, que não digo, para não despertar o desejo de prová-la. A farmácia faliu, é

verdade; o dono fez-se banqueiro, e o banco prospera. Quando me achei com a morte no

bolso senti tamanha alegria como se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior,

porque o prêmio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta. Fui à casa de minha mãe,

com o fim de despedir-me, a título de visita. Ou de verdade ou por ilusão, tudo ali me

pareceu melhor nesse dia, minha mãe menos triste, tio Cosme esquecido do coração,

prima Justina, da língua. Passei uma hora em paz. Cheguei a abrir mão do projeto. Que

era preciso para viver? Nunca mais deixar aquela casa, ou prender aquela hora a mim

mesmo...



CAPÍTULO CXXXV

Otelo

Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não

vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes

raivas do mouro, por causa de um lenço, – um simples lenço! – e aqui dou matéria à

meditação dos psicólogos deste e de outros Continentes, pois não me pude furtar à

observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais

sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se, hoje são precisos os próprios

lençóis; alguma vez nem lençóis há, e valem só as camisas. Tais eram as idéias que me

iam passando pela cabeça, vagas e turvas, à medida que o mouro rolava convulso, e

Iago destilava a sua calúnia. Nos intervalos não me levantava da cadeira; não queria

expor-me a encontrar algum conhecido. As senhoras ficavam quase todas nos

camarotes, enquanto os homens iam fumar. Então eu perguntava a mim mesmo se

alguma daquelas não teria amado alguém que jazesse agora no cemitério, e vinham

outras incoerências, até que o pano subia e continuava a peça. O último ato mostrou-me

que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras

amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos

frenéticos do público.

– E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo: – que faria o público, se ela

deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um

travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a

consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna

extinção...

Vaguei pelas ruas o resto da noite. Ceei, é verdade, um quase nada, mas o

bastante para ir até à manhã. Vi as últimas horas da noite e as primeiras do dia, vi os

derradeiros passeadores e os primeiros varredores, as primeiras carroças, os primeiros

ruídos, os primeiros albores, um dia que vinha depois do outro e me veria ir para nunca

mais voltar. As ruas que eu andava como que me fugiam por si mesmas. Não tornaria a

contemplar o mar da Glória, nem a serra dos Órgãos, nem a Fortaleza de Santa-Cruz e

as outras. A gente que passava não era tanta, como nos dias comuns da semana, mas era

já numerosa e ia a algum trabalho, que repetiria depois; eu é que não repetiria mais

nada.

Cheguei a casa, abri a porta devagarinho, subi pé ante pé, e meti-me no gabinete; iam dar seis

horas. Tirei o veneno do bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi ainda uma carta, a última, dirigida

a Capitu. Nenhuma das outras era para ela; senti necessidade de lhe dizer uma palavra em que lhe ficasse

o remorso da minha morte. Escrevi dois textos. O primeiro queimei-o por ser longo e difuso. O segundo

continha só o necessário, claro e breve. Não lhe lembrava o nosso passado, nem as lutas havidas, nem

alegria alguma; falava-lhe só de Escobar e da necessidade de morrer.



CAPÍTULO CXXXVI

A Xícara de Café

O meu plano foi esperar o café, dissolver nele a droga e ingeri-la. Até lá, não

tendo esquecido de todo a minha história romana, lembrou-me que Catão, antes de se

matar, leu e releu um livro de Platão. Não tinha Platão comigo; mas um tomo truncado

de Plutarco, em que era narrada a vida do célebre romano; bastou-me a ocupar aquele

pouco tempo, e, para em tudo imitá-lo, estirei-me no canapé. Nem era só imitá-lo nisso;

tinha necessidade de incutir em mim a coragem dele, assim como ele precisara dos

sentimentos do filósofo para intrepidamente morrer. Um dos males da ignorância é não

ter este remédio à última hora. Há muita gente que se mata sem ele, e nobremente

expira; mas estou que muita mais gente poria termo aos seus dias, se pudesse achar essa

espécie de cocaína moral dos bons livros. Entretanto, querendo fugir a qualquer suspeita

de imitação, lembra-me bem que, para não ser encontrado ao pé de mim o livro de

Plutarco, nem ser dada a notícia nas gazetas com a cor das calças que eu então vestia,

assenti de pô-lo novamente no seu lugar, antes de beber o veneno.

O copeiro trouxe o café. Ergui-me, guardei o livro, e fui para a mesa onde ficara

a xícara. Já a casa estava em rumores; era tempo de acabar comigo. A mão tremeu-me

ao abrir o papel em que trazia a droga embrulhada. Ainda assim tive ânimo de despejar

a substância na xícara, e comecei a mexer o café, os olhos vagos, a memória em

Desdêmona inocente; o espetáculo da véspera vinha intrometer-se na realidade da

manhã. Mas a fotografia de Escobar deu-me o ânimo que me ia faltando; lá estava ele,

com mão nas costas da cadeira, a olhar ao longe...

– Acabemos com isto, pensei.

Quando ia beber, cogitei se não seria melhor esperar que Capitu e o filho

saíssem para a missa; beberia depois; era melhor. Assim disposto, entrei a passear no

gabinete. Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi-o entrar e correr a mim bradando:

– Papai, papai!

Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por havê-lo inteiramente

esquecido, mas crê que foi belo e trágico. Efetivamente, a figura do pequeno fez-me

recuar até dar de costas na estante. Ezequiel abraçou-me os joelhos, esticou-se na ponta

dos pés, como querendo subir e dar-me o beijo do costume; e repetia, puxando-me:

– Papai! papai!

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