CAPÍTULO CXXXVII
Segundo Impulso
Se eu não olhasse para Ezequiel, é provável que não estivesse aqui escrevendo
este livro, porque o meu primeiro ímpeto foi correr ao café e bebê-lo. Cheguei a pegar
na xícara, mas o pequeno beijava-me a mão, como de costume, e a vista dele, como o
gesto, deu-me outro impulso que me custa dizer aqui; mas vá lá, diga-se tudo. Chamemme
embora assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo
impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomara café.
– Já, papai; vou à missa com mamãe.
– Toma outra xícara, meia xícara só.
– E papai?
– Eu mando vir mais; anda, bebe!
Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que quase a entornei,
mas disposto a fazê-la cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a
temperatura, porque o café estava frio... Mas não sei que senti que me fez recuar. Pus a
xícara em cima da mesa, e dei por mim a beijar doidamente a cabeça do menino.
– Papai! papai! exclamava Ezequiel.
– Não, não, eu não sou teu pai!
CAPÍTULO CXXXVIII
Capitu que Entra
Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitu diante de mim. Eis aí outro
lance, que parecerá de teatro, e é tão natural como o primeiro, uma vez que a mãe e o
filho iam à missa, e Capitu não saía sem falar-me. Era já um falar seco e breve; a mor
parte das vezes, eu nem olhava para ela. Ela olhava sempre, esperando.
Desta vez, ao dar com ela, não sei se era dos meus olhos, mas Capitu pareceume
lívida. Segui-se um daqueles silêncios, a que, sem mentir, se podem chamar de um
século, tal é a extensão do tempo nas grandes crises. Capitu recompôs-se; disse ao filho
que se fosse embora, e pediu-me que lhe explicasse...
– Não há que explicar, disse eu.
– Há tudo; não entendo as tuas lágrimas nem as de Ezequiel. Que houve entre
vocês?
– Não ouviu o que lhe disse?
Capitu respondeu que ouvira choro e rumor de palavras. Eu creio que ouvira
tudo claramente, mas confessá-lo seria perder a esperança do silêncio e da
reconciliação; por isso negou a audiência e confirmou unicamente a vista. Sem lhe
contar o episódio do café, repeti-lhe as palavras do final do capítulo.
– O quê? perguntou ela como se ouvira mal.
– Que não é meu filho.
Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu,
tão naturais ambas que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do nosso foro.
Já ouvi que as há para vários casos, questão de preço; eu não creio, tanto mais que a
pessoa que me contou isso acabava de perder uma demanda. Mas, haja ou não
testemunhas alugadas, a minha era verdadeira; a própria natureza jurava por si, e eu não
queria duvidar dela. Assim que, sem atender à linguagem de Capitu, aos seus gestos, à
dor que a retorcia, a coisa nenhuma, repeti as palavras ditas duas vezes com tal
resolução que a fizeram afrouxar. Após alguns instantes, disse-me ela:
– Só se pode explicar tal injúria pela convicção sincera; entretanto, você que era
tão cioso dos menores gestos, nunca revelou a menor sombra de desconfiança. Que é
que lhe deu tal idéia? Diga, – continuou vendo que eu não respondia nada, – diga tudo;
depois do que ouvi, posso ouvir o resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu agora tal
convicção? Ande, Bentinho, fale! fale! Despeça-me daqui, mas diga tudo primeiro.
– Há coisas que se não dizem.
– Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo.
Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da mesa. Podia estar um tanto confusa, o
porte não era de acusada. Pedi-lhe ainda uma vez que não teimasse.
– Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que
tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais!
– A separação é coisa decidida, redargüi, pegando-lhe na proposta. Era melhor
que a fizéssemos por meias palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida. Uma
vez, porém, que a senhora insiste, aqui vai o que lhe posso dizer, e é tudo.
Não disse tudo; mal pude aludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome.
Capitu não pôde deixar de rir, de um riso que eu sinto não poder transcrever aqui;
depois, em um tom juntamente irônico e melancólico:
– Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!
Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, enquanto eu, que
não pedia outra coisa mais que a plena justificação dela, disse-lhe não sei que palavras
adequadas a este fim. Capitu olhou para mim com desdém, e murmurou:
– Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se?
É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem
dizer mais nada.
CAPÍTULO CXXXIX
A Fotografia
Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de
alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: – “Mamãe! mamãe! é hora da missa!” restituiume
à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e
depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força
alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não
confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou do filho e saíram para a missa.
CAPÍTULO CXL
Volta da Igreja
Ficando só, era natural pegar do café e bebê-lo. Pois, não, senhor; tinha perdido
o gosto à morte. A morte era uma solução; eu acabava de achar outra, tanto melhor
quanto que não era definitiva, e deixava a porta aberta à reparação, se devesse havê-la.
Não disse perdão, mas reparação, isto é, justiça. Qualquer que fosse a razão do ato,
rejeitei a morte, e esperei o regresso de Capitu. Este foi mais demorado que de costume;
cheguei a temer que ela houvesse ido à casa de minha mãe, mas não foi.
– Confiei a Deus todas as minhas amarguras, disse-me Capitu ao voltar da
igreja; ouvi dentro de mim que a nossa separação é indispensável, e estou às suas
ordens.
Os olhos com que me disse isto eram embuçados, como espreitando um gesto de
recusa ou de espera. Contava com a minha debilidade com a própria incerteza em que
eu podia estar da paternidade do outro, mas falhou tudo. Acaso haveria em mim um
homem novo, um que aparecia agora, desde que impressões novas e fortes o
descobriam? Nesse caso era um homem apenas encoberto. Respondi-lhe que ia pensar, e
faríamos o que eu pensasse. Em verdade vos digo que tudo estava pensado e feito.
No intervalo, evocara as palavras do finado Gurgel, quando me mostrou em casa dele o retrato
da mulher, parecido com Capitu. Hás de lembrar-te delas; se não, relê o capítulo, cujo número não ponho
aqui, por não me lembrar já qual seja, mas não fica longe. Reduzem-se a dizer que há tais semelhanças
inexplicáveis... Pelo dia adiante, e nos outros dias, Ezequiel ia ter comigo ao gabinete, e as feições do
pequeno davam idéia clara das do outro, ou eu ia atentando mais nelas. De envolta, lembravam-me
episódios vagos e remotos, palavras, encontros e incidentes, tudo em que a minha cegueira não pôs
malícia, e a que faltou o meu velho ciúme. Uma vez em que os fui achar sozinhos e calados, um segredo
que me fez rir, uma palavra dela sonhando, todas essas reminiscências vieram vindo agora, em tal
atropelo que me atordoaram... E por que os não enganei um dia, quando desviei os olhos da rua onde
estavam duas andorinhas trepadas no fio telegráfico? Dentro, as minhas outras andorinhas estavam
trepadas no ar, os olhos enfiados nos olhos, mas tão cautelosos que se desenfiaram logo, dizendo-me uma
palavra amiga e alegre. Contei-lhes o namoro das andorinhas de fora, e acharam-lhe graça; Escobar
declarou que, para ele, seria melhor se as andorinhas, em vez de trepadas no fio de arame, estivessem à
mesa do jantar, cozidas. “Nunca comi os ninhos delas, continuou, mas devem ser bons, se os chins os
inventaram.” E ficamos a tratar dos chins e dos clássicos que falaram deles, enquanto Capitu, confessando
que a aborrecíamos, foi a outros cuidados. Agora lembrava-me tudo o que então me pareceu nada.
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